junho 30, 2006

Depoimento de Maíra Pessoa

Foto: Palace Hotel, Manaus-AM













Com a criação da Zona Franca de Manaus, o estado do Amazonas
sai da estagnação econômica que sobreveio ao Ciclo da Borracha.
Hoje são mais de 100 mil empregos existentes no parque industrial.
Em compensação subiram os índices de violência, de degradação e
ocupação desordenada do solo, de poluição ambiental e de crescente
migração de outros brasileiros em busca de oportunidades.

Nota: Maíra Pessoa é jornalista, assessora de comunicação do Instituto Alfredo da Matta, respeitada instituição de saúde dermatológica do estado do Amazonas. Além de ser uma gracinha de pessoa, é muito querida pelos colegas de trabalho pela sua contagiante alegria... e é minha sobrinha. Leia seu depoimento enviado por e-mail.

Depoimento de Maíra Pessoa

Tio, interessante essa pesquisa!

Estudei grande parte do tempo, no Colégio Santa Dorotéia, na Rua Joaquim Nabuco. Isso no período de 1993 a 1998, no horário matutino. Naquele tempo, havia um "maluco beleza", que assustava a meninda, principalmente quando era dia da educação física, pois usavamos saias brancas, com micro shorts; ele custumava pegar nas pernas das meninas, na parada do ônibus, da Av. Getúlio Vargas. O seu aspecto era de mendigo, não falava, carregava um imenso saco nas costas, raspava o cabelo com gilette. As poucas vezes, que o vi comer, eram resto de comida encontrada na lixeira. Aquele personagem segundo a lenda, vagava durante o dia pela rua, mas a noite estava sempre bem vestido pela família que morava na Av. 7 de Setembro. Muitas coisas eram inventadas, até que ele era filho de pais muito velhos e por isso fazia esse tipo de coisa. Outros diziam que sofria maus-tratos e por isso ficou maluco. O certo é que o meu grupo de amigos tinha medo dele, pois algumas vezes, ele era violento. Algum tempo atrás, o encontrei vagando pela Praça da Saudade, do mesmo jeito, como naqueles velhos tempos.

Beijos em seu coração,

Maíra
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Depoimento de Edson dos Anjos

Foto: Cidade Flutuante, Manaus-AM, Cartão Postal - A Favorita













Nos anos 50/60, proliferou na orla de Manaus, entre o Mercado
Municipal e a entrada do Igarapé de Manaus, na altura da Praia
de Monte Cristo, uma cidade flutuante. Ela foi exaustivamente
mostrada em todo o país pelo cine-jornal de Herbert Richers, como
retaliação depois que sua empresa teve negada a liberação de
impostos para manutenção da sua cadeia de cinemas, tendo sido
considerado persona non grata pela Assembléia Legislativa do
Estado do Amazonas. Por quase todos os anos 70, Manaus ficaria
praticamente sem cinemas.

Nota: Edson Ramos é médico formado pela Universidade Federal do Amazonas. Começou sua militância política no PC do B. Atualmente integra os quadros do PSB. Através da sua gestão à frente do Sindicato dos Médicos do Estado do Amazonas, ganhou o respeito da opinião pública e dos seus companheiros de categoria. Orgulha-se de ter vivido parte da sua vida acadêmica nos tempos pioneiros da construção da Reforma Psiquiátrica no estado do Amazonas. Leia seu sepoimento enviado por e-mail.

Depoimento de Edson Ramos

Querido Rogelio Casado,

Parabéns pelo Blog.

Na oportunidade quero relembrar a nossa experiência à frente do Centro Psiquiátrico Eduardo Ribeiro - eu e muitos outros acadêmicos de Medicina, inspirados pelas idéias da Reforma Sanitária e Psiquiátrica, encabeçadas por você e pelo Silvério Tundis no início da década de 80.

Penso que é necessário contar esta história para que a sociedade amazonense e brasileira conheçam os detalhes desta história pioneira na luta pela Saúde Mental.

Um grande abraço

Do amigo e admirador,

Edson Ramos
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Depoimento de Nália Almeida

Foto: Palácio Rodoviário e Cine Ypiranga, Manaus-AM, Cartão Postal - A Favorita













O bairro da Cachoeirinha, nos anos 50/60, era praticamente o limite
da cidade de Manaus ao leste, local de inúmeras chácaras que cederam
lugar a um bairro essencialmente residencial. Um cinema, uma
repartição pública e uma praça, construídos em frente de um Sanatório,
constituiam o principal patrimônio do lugar. O cinema fechou e a praça
desapareceu para dar lugar a uma edificação da Universidade Estadual
do Amazonas. A Cachoerinha não está só; muito outros bairros não têm
uma praçinha sequer.

Nota: Nália Almeida é médica, da gloriosa turma de 1977. Esposa do deputado estadual Risonildo Almeida, é sobrinha do festejado poeta Thiago de Mello, o poeta que no artigo 4 dos Estatutos do Homem escreveu: "Fica decretado que o homem / não precisará nunca mais / duvidar do homem. / Que o homem confiará no homem / como a palmeira confia no vento, / como o vento confia no ar, / como o ar confia no campo azul do céu./ Parágrafo único / O homem confiará no homem como um menino confia em outro menino. Leia o depoimento de Nália Almeida enviado por e-mail.

Depoimento de Nália Almeida

Olá Rogelio,

Gostei muito de ler "about you", quando cita o grande amor de sua vida. Risonildo e eu que já estamos com 30 anos de casados, sabemos da benção de encontrarmos a pessoa certa para dividirmos a vida.

Dentre os loucos de minha infância cito, além de Carmem doida, o Bombalá e a Nega Charuta (nem sei se era doida), mas tínhamos medo dela porque sempre ameaçava correr atrás dos meninos da rua quando riam dela.

Lembro também do Zé Bundinha, um rapaz da Cachoeirinha que também corria atrás da meninada.

Um grande abraço da amiga,

Nália
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Depoimento de Emília Castro

Foto: Praça da Saudade, Manaus-AM - Cartão Postal - A Favorita













Na Manaus dos anos 50/60, a Praça da Saudade fazia
um harmonioso conjunto com a sede do Atlético Rio
Negro Clube. Diz a lenda que um governador do estado,
contrariado por ter sido ali barrado, mandou erguer um
monstrengo arquitetônico defronte da praça, que hoje
sedia a Secretaria de Estado de Justiça e Cidadania: um horror.

Nota: Emília de Castro é médica da Unidade Básica de Saúde da Secretaria Municipal de Saúde no bairro da Betânia, zona Sul de Manaus. Até recentemente, dividia os sonhos e ideais de vida com o saudoso Aristófanes Castro, o Velho, a quem ela chamava carinhosamente de "o Danton da minha vida". Leia o depoimento enviado por e-mail.

Depoimento de Emília Castro

Olá amigo!

Fico alegre em ajudá-lo ao meu modo e relembrar meus tempos de infância, mesmo que com medo, da inofensiva # Carmem Doida#. Me alegro por você ser um estudioso do comportamento humano e seus desvios, com suas neuroses e psicoses; próprias de nós mortais. Lembro de Carmem Doida, sim. Carmem era uma pessoa de estatura longilínea, esbelta, elegante ao natural, de postura ereta, magérrima porém musculosa, sem frequentar academias (espaços inexistentes na época, como pedem os padrões de beleza atuais). Vestia-se com simplicidade, e comportadamente; seus vestidos, listrados de fundo escuro, tendiam para o verde, azul, que mais pareciam tingido ou mistura de tons sobre tons de azul verde e marrons, sempre escuros. Religiosa, assistia a missa compenetradamente em um canto; distante de quase todos ou próximo da porta da igreja; acompanhava às procissões devotadamente, com ou sem pedra na cabeça, como se estivesse pagando promessa. Nas procissões era sempre recatada, ouvindo toda sorte de impropérios e apelidos calada, como se não fora com ela: "A Carmem Doida!" Porém, após o ritual das procissões ou se noutro dia, alguém porventura lhe chamasse CARMEM DOIDA!! ela atirava ao chão o saco de estopa ou de trigo encardido, ou branco alvo, que ora trazia às costas, ou na cabeça em uma rodilha bem feita, cheio de farinha, capim para os animais, terra, ou adubo; olhava e respondia "Carmem Doida, é a tua mãe vagabundo!" Horas quando a gritaria era demais, apelava e dizia "é a tua mãe Filho da P...!" Hora chamava-os "é a tua mãe desgraçado", e lá se ia pela cidade, caminhando apressada, sempre trabalhando, indo, ouvindo. Ocupada com saco ou muito raramente uma cesta, sempre carregada, caminhava só e se alguém de sua casa estava por perto, ela estava a alguns metros à frente ou atrás. "Carmem Doida"! Ela logo parava, olhava procurando e respondia; apanhava uma pedra e tentava atirá-las na meninada ou nos homens que se escondiam, e quem levava por vezes nada tinha com os insultos; nesta horas causava medo. Fico devendo o relato sobre outras duas pessoas que ainda não lembrei os nomes. Vou lhe enviar um número de telefone em outra ocasião, após consulta ao referido, o nome de um amigo nosso que tem uma memória de elefante; fale em nome do nosso velho Aristófanes de quem ele foi mais amigo que meu; ele certamente lhe dará grandes informações. Abraços afetuosos.

Emília
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junho 28, 2006

Depoimento de Deocleciano Bentes de Souza

Foto: Colégio Dom Bosco, Manaus-AM, Cartão Postal - A Favorita













Na Manaus dos anos 50/60, educação de qualidade
estava presente tanto nas escolas públicas quanto
nas escolas particulares, como o Colégio Salesiano
Dom Bosco. Memorialistas da infância dizem que
este colégio só era "freguês" do Colégio Estadual do
Amazonas na festa cívica do 7 de Setembro.

Nota: O jornalista amazonense Diocleciano Bentes de Souza, antes de se aposentar como professor da Universidade Federal do Amazonas trabalhou em São Paulo na Folha de São Paulo nos anos 70/80; presidiu, por duas vezes, o Sindicato dos Jornalistas do Amazonas, e esteve à frente da criação de pelo menos dois jornais em Manaus. Reconhecido memorialista da vida política e social de Manaus, seu livro "Por trás das Rotativas" é aguardado com grande expectativa. Mantém em sua casa um pequeno cinema - Cine Yayá, em homenagem à proprietária do extinto Cine Avenida -, aberto às terças-feiras para os amigos diletos. Na sua última gestão frente ao Sindicato dos Jornalistas, abrigou a Associação Chico Inácio - ong composta por familiares, usuários e técnicos de saúde mental - que passaram a dispor de uma base física para organização do movimento por uma sociedade sem manicômios: por um cochilo histórico, esse movimento simbolicamente criado em São Paulo em 1987, só passou a despertar os corações e mentes dos amazonenses a partir dos anos 2000. Leia o seu depoimento sobre os loucos de rua, enviado por e-mail: uma pequena amostra do exercício de tolerância praticado na acolhedora cidade da Manaus dos anos 50/60.

Depoimento de Deocleciano Bentes de Souza

Meu caro Rogelio,

Ela perambulava com seu filho no colo no centro de Manaus nos idos de 60. Vivia próxima dos veículos de comunicação que a cidade possuía. Na Eduardo Ribeiro, a Rádio Baré, o Jornal do Commércio, o Jornal e o Diário da Tarde. Na Saldanha Marinho, A Gazeta. Na Henrique Martins, A Tarde. Na Joaquim Sarmento, a Rádio Difusora e na Lobo D'Almada, A Crítica. Era a "Nega Maluca" uma mulher de cor que carregava seu filho de um ano de idade para todo o canto, caracterizando muito bem o personagem da marcha de carnaval "Nega Maluca" cantada pelo Black-out, com acompanhamento de Severino Araujo e seu conjunto, sucesso do carnaval daquele ano, e que chegava a Manaus através das chanchadas da Atlântida que faziam sucesso nas sessões das 16 horas no luxuoso cinema Odeon, o único lugar em Manaus que tinha um clima decente.

"Nega Maluca" vivia da caridade das pessoas sensibilizadas com a criança, que com seu amor de mãe ela não largava para nada. Suas refeições eram feitas com as sobras da Pensão Maranhense, ali na Eduardo Ribeiro. Seu filho mamava café com leite em uma garrafa de refrigerante com um bico de borracha vermelho, que ela conseguia na Leiteria Amazonas, uma das lanchonetes chiques. No finalzinho das tardes ela ia até a Rua Tapajós, levar o seu filho, para o padrinho, o Desembargador André Vidal de Araujo, ver, quando ganhava de dona Milburges algumas roupas.

Era gostoso quando a malta gritava "Nega Maluca"e ela respondia com os mais cabeludos impropérios de seu parco vocabulário, fazendo as alunas da Escola Normal ficarem ruborizadas, naquela provinciana e ingênua Manaus. Não sei do seu fim nem do seu filho.

O outro era de família tradicional de Manaus, tinha estudado música, e morava em uma bela residência na Av. Joaquim Nabuco. Todas as manhãs, bem cedinho conseguia driblar a vigilância da familia e ia para a Praça da Polícia. Era o Bombalá, o melhor maestro que a Banda de Música da nossa briosa Policia Militar já teve. Marchava garbosamente com sua batuta à frente da banda durante os exercícios de formatura que a PM realizava com seus oficiais e praças pela Av. Floriano Peixoto.

Aos domingos, Bombalá exercitava o seu trabalho de maestro durante as apresentações que a banda fazia no coreto da Praça Eliodoro Balbi. Não fazia mal a ninguem, e quando recebia aplausos respondia com um sorriso alegre com sua boca desdentada. Era o tempo em que a operação mais perigosa que a Polícia Militar executava era correr atrás dos empinadores de papagaios. Nas paradas cívicas do 5 e do 7 de setembro, lá estava o Bombalá, envergando seu pijama de listas azuis, como um prisioneiro de seus próprios sonhos. Pela sua dedicação, acredito que tenha sido reformado como oficial músico.

Tinha outro maravilhoso. Era o Tom Mix, que fazia ponto na porta do Cine Gaurany, nas sessões das 13 horas, impecavelmente vestido com seu chapéu de vaqueiro, sua blusa quadriculada, seu colete, sua calça de brim azul, suas longas botas e suas cartucheiras com os dois coltes 45 da Estrela na cintura. O filme do Roy Rogers levava uma multidão de garotos ávidos por aventura para o cinema, e ao encontrar o Tom Mix na porta do cinema fazia a nossa imaginação acreditar que o artista estava ali, vivo e a cores. Eu mesmo tinha esperança de um dia encontrar o Tom Mix montado em seu cavalo. Tom Mix era irmão do Coronel Trigueiro, comandante da Policia Militar do Amazonas, que era vizinho do Colégio Estadual e seu Velho Oeste estava restrito aos cinemas Polyteama e Guarany, onde perseguia os bandidos e os índios sioux de seus devaneios. Até hoje quando cruzo a esquina da Getúlio Vargas com a Sete de Setembro vejo o Tom Mix, com seus revólveres de espoletas, perseguindo uma quadrilha de malfeitores.

Foi uma época muito boa de Manaus.

Um abraço,

Deocleciano Bentes de Souza Posted by Picasa

Depoimento de Eliana Simonetti

Foto: Museu do Estado de São Paulo - MASP








O movimento antimanicomial paulistano
tem feito do MASP o local simbólico da luta
pela inlcusão social dos portadores de
sofrimento psíquico.

Nota: A paulistana Eliana Simonetti é jornalista. Seu depoimento sobre os loucos de rua lança um outro olhar sobre as relações entre eles e a comunidade da região onde vivem. Mas, é quando, generosamente, disponibiliza as memórias do seu pai, Irineu João Simonetti, advogado, 76 anos, nascido na região do Vale do Ribeira, uma das regiões mais pobres do estado de São Paulo, que se percebe uma matriz inspiradora de que uma outra relação é possível com os loucos, para por fim à violência da psiquiatria institucional. Casada com o psiquiatra Paulo Barnabé, um dos tradutores de um artigo do psiquiatra Franco Basaglia, intitulado "O Homem no Pelourinho", que está por merecer publicação por uma editora de porte nacional. Com Paulo fotografei Dirce, uma louca de rua na cidade de Diadema, onde fazíamos residência médica em psiquiatria social (a ser publicada brevemente neste blog). Leia o depoimento sobre os loucos de rua enviado por Eliana através de e-mail.

Depoimento de Eliana Simonetti

Rogelio,

Tenho algumas histórias sobre loucos de rua.
Uma, de minha infância, era de um homem que vivia na avenida Santo Amaro, em São Paulo, próximo à antiga fábrica do laboratório farmacêutico Wellcom.
Era um homem barbudo, sempre muito sujo, com folhas secas penduradas na barba, que andava o dia inteiro, e de vez em quando falava alto, coisas sem nexo.
Não conversava com ninguém. As pessoas do bairro lhe davam comida, naquele tempo em que ninguém tinha medo de sair de casa com um prato de comida na mão e oferecer a um passante, sem que ele precisasse pedir.
Viveu anos assim. Talvez dez. Depois, desapareceu, sem mais nem menos. Nunca mais foi visto.

Há um louco famoso em São Paulo que vive na avenida Pedroso de Moraes, no alto de Pinheiros. Montou uma cabana de plástico e lá dentro guarda suas coisas... sabe-se lá o que. De vez em quando, a polícia retira os mendigos de rua para realizar eventos (como maratonas e coisas do tipo), mas ninguém toca nesse homem. Ele é calígrafo. Muita gente leva coisas para que ele copie, com letra bonita. A molecada fica batendo papo com ele, mas fala sozinha, porque ele não tem disposição para responder muita coisa. Escreve o dia inteiro. E observa o movimento. Não sei de onde veio, ou porque se tornou morador de rua, mas é um homem forte, que não está ali por acaso. Escolheu viver assim, e ninguém é capaz de tirá-lo dali. Como ele se alimenta? Muita gente leva coisas para ele. Comida, agasalhos, água limpa... ele vive bem. Escova os dentes de manhã, fecha bem sua barraquinha, senta no gramado e escreve, escreve, escreve... está lá, que eu saiba, há 15 anos no mesmo lugar. Bairro de gente rica. E é gostado por todos os vizinhos.

Há uma mulher que de vez em quando aparece na praça Panamericana, em Pinheiros, São Paulo, fazendo discursos em altos brados, sem pé nem cabeça. Sempre bem arrumadinha, cabelo penteado, não deve morar na rua. Não pede nada a ninguém. Deve ter família e sai durante o dia para fazer seus discursos. À tarde desaparece.

No centro vive um morador de rua que conheço bem. Foi jornalista em Brasília durante muitos anos. É epilético, e enquanto trabalhou tomava os medicamentos direitinho. Um dia parou de se medicar, começou a ver discos voadores, veio para São Paulo e vive na rua, contando casos para quem quiser ouvir. Os bares e restaurantes do centro sempre têm alguma coisa para dar a ele quando tem fome. Antigos colegas jornalistas levam roupas e agasalhos no inverno. Ele não reconhece ninguém. Fala de seres extra-terrestres, recusa-se a ser medicado ou internado, diz que conhece seus direitos e que só sai de onde está morto. Então vai ficando, há 12 anos. Chamase Walter Marques. Seu irmão é um importante correspondente de um grande jornal paulista nos Estados Unidos.

Todos os loucos de rua que conheci eram mansos, ficavam na deles, não incomodavam ninguém. E eram bem tratados pela comunidade que vivia na região em que estavam.

São histórias curtas, não sei se te servem.
São Paulo tem muitos loucos de rua. E muitos moradores de rua que não tem nada de loucos. Além de muitos loucos que vivem bem, em casas bacanas, com bons empregos. Não acho que haja muita diferença entre essas gentes.

Mas além dessas lembranças, meio vagas, tenho aqui um depoimento bacana do meu pai. Ele tem 76 anos. Nasceu no interior de São Paulo, no Vale do Ribeira, região mais pobre do estado, em 1930. Um dia resolveu escrever suas reminiscências de infância, um livro de memórias que é um pouco da história de Pariquera-açu. Esse é um trecho.

Vou transcrever pra você:

"Os ensandecidos, os alienados, os loucos, são aqueles que fogem, mais que nós à curva da normalidade. Não me refiro aos que perdem seu controle crítico por bebida, e depois voltam às atividades úteis e ao convívio da família. Há os alienados agressivos em relação aos outros e a si próprios e há os mansos. Destes há os macambúzios, enfezados, introvertidos e há os de uma mansitude quase alegre.

Antonio Felipe compunha o último grupo. Morava em Iguape. Dele dizia-se haver sido contador, de boa letra e muitas letras, leitor de livros, até que lhe fugiu o tino. Homem na quadra dos 40, alto, de bom porte. Quando ele chegava corria a notícia entre a molecada que logo lhe fazia cortejo, chamava seu nome, pedia-lhe que declamasse... Barítono, de timbre tonitroante, declamava Gonçalves Dias e outros. A figura era ridícula, vestido ao normal, de sapatos ou tamancos, chapéu de palha de aba estreita na cabeça e quase sempre com uma lata, dessas que vinham com querosene, de 20 litros, sobre o chapéu (sem rodilha), meiada de água. Para que a carregava? A sua loucura devia dar-lhe as razões, para que andasse a prumo, a conduzir tão incomodo objeto, a forçar-lhe o equilíbrio, a determinar-lhe o passo ritmado, corpo estável, para que não entornasse. Por vezes vinha do lado de Registro, com destino a Iguape, outras na mão contrária, sempre a pé.

Conta-se que, vezes várias, sua mãe dava-lhe dinheiro para que fosse comprar um pão ou um maço de fósforos e Antonio Felipe sumia. Vinte dias após, lá vinha ele com o item encomendado. Onde você foi? perguntava-lhe a mãe. Até Santos, sob a linha do telégrafo, andara ele longa caminhada -- de 200 quilômetros ou mais -- para comprar os produtos que havia em qualquer venda da cidade.

Alegrava-nos ver aquele homem ereto, caminhando como se tivesse de ir a algum lugar -- e tinha, e ia -- descompromissado com a vida, com a sociedade, com a sua própria subsistência. Não causava piedade, a sua figura despojada, algo alegre, algo cômico. Na porta em que parasse havia um copo de água fresca ou um prato de comida, como se cada qual expiasse, na assistência que lhe dava, as loucuras que lhe iam na alma.

Não sei quando deixou de percorrer as estradas e as picadas, nem se morreu algures, no afã de vencê-las... A loucura de Antonio Felipe tinha algo de etéreo, de sonhador...é como se ele pousasse, ao entrar nas cidades, para percorrer o casario, declamar seus versos, mitigar sua sede e depois, ao ultrapassá-los, alçasse vôo até seu próximo pouso sem nunca interromper sua jornada.

De outro feitio era Maximiano, de Pariquera. Morava num sítio atrás da caieira, na linha Senador Prado. Inteligente, sagaz, calado e oportunista. Andava de bengala, e quase sempre com um saco às costas, vazio ou com alguma coisa: banana, mandioca, mangarito, para vender. Tinha as mãos rápidas e os braços longos e, segundo se dizia, pilhava à noite. Seu sítio? Chão de terra batida, algumas bananeiras, uma toça de bambu, casa tosca de taipa, mais embaixo, por caminho batido a pé, o rio onde se abastecia. Casmurro, não tolerava visitas. Corria todas, de bengala alçada.

Ouvi, não sei se é verdade, que morreu à míngua, em seu casebre, assistido por poucos que tomaram consciência de sua ausência e se apiedaram dele.

João Euzébio, o tenente, remanescente dos tempos da colônia. Tenente do que? Não há registro. Morava numa chácara. João Euzébio, o eremita, fechado em sua casa alta do chão para não pegar as águas das cheias, assoalhada, com paredes em jissara madura rachada e amarrada com cipó, formando um telado grosso de ripas verticais e horizontais, sobre as quais fora aplicada argila batida, solta aqui e ali, coberta de telhas, sem forro, com janelas pequenas.
Papai dizia-me que ele tivera comércio e fora abastado. Sobre seu comércio, conta-se que seu comportamento iracundo dava oportunidade a situações constrangedoras. Se estava sentado, atrás do balcão, e chegava freguês que lhe pedia 100g de fumo de corda, respondia em sua linguagem sincopada que não se levantaria para vender 100g de fumo, e assim despedia o comprador.

Tomei consciência de sua presença quando, com meus seis ou sete anos, demandava o campo de futebol. Ele devia ter para mais de 60 anos. Nessa época, se nas nossas peladas deixávamos, por descuido ou imperícia, que a bola lhe atingisse a casa, saía bravo, prometendo cortar a bola e nos bater.

São três tipos diferentes. O primeiro andarilho, portador de uma bonomia que nos encantava. O segundo prestava-se às nossas folias, algazarras e provocações. O terceiro, furibundo, nos atemorizava.

As histórias são dos anos 1940. Quem conta é Irineu João Simonetti, que hoje é advogado em São Paulo".

Espero que alguma coisa possa ser útil ao seu projeto.

Beijos,

Eliana
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Depoimento de Elcy de Souza Machado

Foto: Cemitério S. João Batista, Manaus-AM









O cemitério São João Batista
está situado há menos de 10
quadras do centro histórico de
Manaus, constituindo, ao norte,

o limite urbano da cidade nos
anos 50/60.

Nota: Elcy de Souza Machado é enfermeira e fonoaudióloga. Trabalha num dos dois únicos ambulatórios para tratamento de pessoas com transtornos mentais, numa cidade que beira os 2 milhões de habitantes e que tem apenas 1 hospital psiquiátrico público, desde 1894. Desativá-lo e criar uma rede substitutiva ao manicômio, como preconiza a Lei de Saúde Mental vigente no país, teria sido o desdobramento "natural" da Reforma Psiquiátrica implantada no Amazonas a partir de 1980, não fosse a proverbial indiferença das autoridades sanitárias dos últimos 20 anos. Leia o depoimento de Elcy sobre os loucos de rua da nossa infância enviado por e-mail.

Depoimento de Elcy de Souza Machado

Olá Rogelio,

Eu lembro de uma pessoa que ficava em uma residência próximo ao cemitério São João Batista. Figura aliás muito conhecida de toda cidade chamada de Carmem Doida. Quando as pessoas passavam ela balançava as mãos dando tchau, agora se mexessem chamando pelo seu nome ela ficava furiosa e mandava pedras etc. Eu particularmente morria de medo. Pedia para passar bem longe dela e se possível nem olhar. Nunca vi aquela pessoa com alguém do seu lado, sempre sozinha. Meus pais falavam que ela era sozinha por isso não tinha com quem conversar e que não precisava ter medo dela. Até que um dia fiquei sabendo que tinha falecido. Hoje, passo todos os dias pelo mesmo lugar e não tenho mais medo. Acho que esqueci aquela figura tão conhecida da cidade e que um dia tive tanto medo e que nunca me fez nada de mal. Gostei da idéia , voltei ao passado um pouco. Quero ti dizer que ainda temos muitos loucos pela cidade, mas nenhum igual ou parecido com a Carmem.

Elcy
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junho 27, 2006

Depoimento de Elvira França

Bandeira de Osasco/SP









Osasco/SP é considerada o berço da aviação da América do Sul; tem 70 dos seus 100 anos como subúrbio industrial e operário.

Nota: Elvira França, paulista de Osasco, reside desde os anos 80 na cidade de Manaus. A ela se incorporou com uma das suas personagens. Professora, pesquisadora, através da neurolinguística atua no campo da prevenção às drogas; é membro atuante do Conselho Estadual de Entorpecentes. Talvez, por tudo isso, em seu depoimento sobre os loucos de rua da nossa infância, não conseguiu enxergá-los em sua cidade natal. Neste caso, está explicado os Mamonas Assassinas: alguém tinha que enlouquecer aquela cidade.

Depoimento de Elvira França

Rogelio,

Na minha infância em Osasco, São Paulo, não havia propriamente louco de rua, e sim alguns bêbados. A gente ficava sempre com medo quando eles passavam, porque os adultos nos ameaçavam que eles iam nos pegar se nós não fizéssemos o que eles estavam mandando. O contato com o bêbado era uma ameaça de castigo, e por isso crescíamos com medo deles, e ao mesmo tempo com vontade de desafiá-los, porque eles representavam um poder misterioso sobre nós e nosso comportamento. "Olha o bêbado! Ele vai te pegar!" Aí, corríamos todos pra dentro de casa, mas não sem antes fazermos caretas, sons vocais que expressavam desprezo e ousadia ao mesmo tempo. Às vezes, eles se irritavam, faziam gestos de ameaça, deixavam as crianças perto da porta da escola assustadas, e elas se espremiam para entrar pelo portão, com medo que alguma agressão continuasse. Os meninos eram mais ousados, porque às vezes chegavam a se aproximar, tocar e correr, deixando o bêbado agressivo e ainda mais defensivo. Em casa, ouvíamos falar sobre os bêbados mais como ameaças e raramente era comentada sua origem, família, onde viviam. Os adultos até podiam conversar sobre eles, mas isso não ficou na memória, porque na época o mistério e o desconhecimento era mais importante para os efeitos de causar medo.

Hoje, depois de estudar sobre alcoolismo e ter vivenciado problemas de alcoolismo na família, percebi que essas pessoas sofrem de transtorno mental e seu comportamento estranho e permanência na bebida ocorre porque as alterações cerebrais afetam o controle sobre a própria vontade de deixar de beber. Tudo começa como brincadeira entre amigos, e depois pode virar dependência química. Por isso, quando vejo alguém depreciando ou maltratando alguém alcoolizado, converso com as pessoas e repasso informações a elas. Elaboro materiais didáticos para instruir as pessoas sobre o problema e sensibilizá-las para darem apoio. Enquanto no passado o "louco" que eu tive contato era o bêbado, geralmente um adulto com mais de 30 anos, hoje temos muitos jovens bebendo e é com grande tristeza que os vemos caídos pelo chão, sujos, urinados. Há algum tempo, era preciso mentir, dizer que a pessoa estava tendo ataque epiléptico, quando era necessário chamar uma ambulância de emergência, para socorrer uma pessoa alcoolizada caídas e machucadas, porque os profissionais se recusavam a atender alcoolizados, ou mendigos doentes. Felizmente, tenho experiências positivas de prestação de socorro pela SAMU, fone 192, na prestação de socorro a alcoolizados e meninos de rua agredidos.

Nesta semana encontrei um menino de rua, dependente de cola de sapateiro, que foi agredido por um adulto na rua, como reação a um palavrão, segundo o menino contou. Ele sofreu uma fratura no osso da face, estava chorando, com o rosto ensangüentado devido ao corte que sofreu na sombrancelha, e foi muito bem atendido no Hospital Infantil da Zona Leste, e depois pela Central de Resgate. O que mais me entristece é a falta de conhecimento das pessoas em relação às alterações mentais de dependentes químicos, o que faz com que ajam de modo a intensificar o problema. Por isso, acho que muitas das pessoas que consideramos "normais", quando agem agressivamente contra os "loucos", estão em piores condições, porque além de ignorantes também não têm compaixão em relação a um ser humano em condições de desvantagem física, intelectual e moral.

Elvira Eliza França

Manaus, 26 de Junho de 2006.

junho 26, 2006

Pausa para uma dica: Henrique Nardi lança livro















Imperdível: lançamento do livro de Henrique Caetano Nardi Ética, Trabalho e Subjetividade pela editora da UFRGS.
Data: 27/06/2006, a partir da 19 horas.
Local: Palavraria, Rua Vasco da Gama, 165.

Se você não está em Porto Alegre, mande buscar pelas melhores casas do ramo. Em Manaus, apenas uma livraria trabalha com a maioria das editoras universitárias: Livraria Nacional, do Paulo, João e Zemaria Pinto, na rua Vinte e Quatro de Maio. Posted by Picasa

Depoimento de Humberto Amorim

Foto: Gymnasio Pedro II, famosa Escola Estadual do Amazonas, anos 60












Pedro II, imperador do Brasil, tem uma praça com
seu nome em Manaus, porém um decreto federal não
permite que nenhuma outra escola fora da cidade do
Rio de Janeiro ostente o seu nome.

Nota: Humberto Amorim é jornalista, radialista, tradutor, intérprete simultâneo diplomado pela Universidade de Michigan e Universidade de Cambridge, jazzófilo e enófilo... e é meu amigo. Sua façanha recente: é o mais novo membro do fechadíssimo "The Wine Century Club" com sede em New York City; são 145 membros de vários países do mundo dentre os quais somente dez são brasileiros; Humberto passou a vestir a camisa 11. Próxima façanha: deve entrar para o Guinness Book por manter há 11 anos o único programa de jazz transmitido para o mundo a partir da floresta amazônica. No momento, ele pode ser visto e ouvido no Café Adrianópolis com o seu All That Jazz Band. Leia o depoimento de Humberto Amorim sobre os loucos de rua da nossa infância, enviada por e-mail.

Depoimento de Humberto Amorim

Meu caro,

Impossível esquecer o Antonio Doido que perambulava pelas ruas da Cachoeirinha e também na Praça São Sebastião. Ele não paravava de sorrir e fazia uma "aeróbica" murmurrando uma canção com as pernas em V, em movimento compassado pra-frente-pra-trás. Quando cansava se auto-aplaudia. Não incomodava ninguém. Era alimentado pelas pessoas. Não sei de onde vinha. Pelo que sei, ao se aproximar a molecada ele ia embora.

Carmem Doida. Ficava sentada todos os dias em um pequeno barranco na esquina da rua por trás do cemitério São João Batista com o Boulevard Amazonas dando "ciao" para quem passava. vestia roupas coloridas e não parava de pentear os cabelos. De vez em quando punha-se a falar muito alto como estivesse reclamando de alguma coisa.

Cabecinha - Deste não sei nada, pois tivemos um breve, porém, marcante encontro, nos idos de 1983 em frente a antiga Amacom da Marcilio Dias; quando eu atuava como guia de um grupo de turistas, me atingiu pelas costas com uma pequena pernamanca. Como resultado fui levado, sangrando um bocado para o Pronto Socorro São José (lembra?) onde levei 8 pontos.

O resultado positivo desse episódio foi o início de uma grande amizade entre eu e o dono da loja Stephen Hamilton e seu sócio Richard Bryan, ambos de saudosa memória, que foram os primeiros a me socorrer. Os turistas hospedados no Hotel Amazonas correram apavorados. Por volta das 2 horas da tarde, recuperado, levei-os para o aeroportop naquele mesmo dia. Foram generosos com as gorgetas para "eu tratar melhor do ferimento".

Um abraço,

Humberto

P.S - Se quiseres saber das minhas loucuras, temos primeiro que abrir uma garrafa de carmenere, ampará-la com um t-bone steak, e terás os relatos de quase todas, tendo em vista que posso perder o senso.
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Depoimento de Aristófanes Castro Filho

Foto: Palácio da Justiça, Manaus-AM, anos 60













O Palácio da Justiça da cidade Manaus era adornado
por vários benjaminzeiros, que não resistiram à ação
dos novos tempos trazidos pela Zona Franca.

Nota: O advogado Aristófanes Castro Filho nasceu numa época em que a cidade de Manaus conhecia a dacadência depois que o ciclo econômico da borracha foi para o beleléu (expressão popular muito usada nos anos 60). Santa decadência. Depois do surto malárico, a cidade seria poupada durante muitos anos da depredação que se instalaria com a Zona Franca de Manaus: igarapés gelados e árvores que sombreavam o passeio público vivam em harmonia com a população. Leia o depoimento de Aristófanes Castro Filho, enviado por e-mail. Lacônico, ele prefere que seja publicada a crônica escrita pelo seu pai Aristófanes Castro, o Velho, sobre os loucos públicos de Manaus. Aguarde.

Depoimento de Aristófanes Castro Filho

Comandante Rogelio,

Do meu tempo, me lembro da Carmem Doida. Que vivia com o saco de farelo de arroz na costas subindo e descendo a Eduardo Ribeiro. O meu pai tem até uma crônica sobre ela.

Depois os doidos passaram a ser todos nós. Uns de mais coragem largam tudo e passam a curtir a própria loucura, os falsos loucos ficam fazendo maldade a todos passando por normais.

Um abração,

Ary

Manaus, 23 de Junho de 2006.
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Depoimento do Prefeito Serafim Corrêa

Foto: Praça D. Pedro II, ao fundo o
Paço da Liberdade, antiga sede da
Prefeitura de Manaus









Na Manaus dos anos 50/60, cada
comunidade possuia sua praça.
Na sociedade de massas, elas foram
sendo degradadas.

Nota: O economista Serafim Corrêa foi eleito prefeito no pleito eleitoral de 2004. Goza de prestígio popular, sendo carinhosamente chamado por Sarafa nos bairros por onde passa. Sua paixão como folião do carnaval manauara atende pelo nome de BICA - Banda Independente Confraria do Armando, temida pelas letras das marchinhas que não poupam políticos que saem da linha. Entre inúmeros desafios, deve enfrentar a reurbanização das praças de Manaus, agora num contexto de sociedade de massas. Leia o depoimento de Serafim Corrêa, enviado por e-mail.

Depoimento do Prefeito Serafim Corrêa

Oi Rogelio,

Lembro de pelo menos duas figuras: a Carmem Doida e a Nega Maluca.

A Carmem andava pelas ruas e aos gritos da molecada de "Carmem Doida" ela jogava pedras, virava bicho.

Já a Nega Maluca tinha um filho pequeno que andava com ela no colo. Ela parava num bar e partia para cima de um homem, em geral o mais bem vestido, e colocava a criança nos braços dele dizendo: "Toma que o filho é teu". Os outros presentes pegavam no pé do "escolhido".

Elas se alimentavam da caridade das pessoas, principalmente dos donos da padarias. No caso das duas, quase sempre pegavam pão na Padaria Mimi na Rua 24 de maio.

Um abraço,

Serafim

Manaus, 23 de Junho de 2006.
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Depoimento de Itamara De Masi Scaini

Cartum: Rio de Janeiro-RJ, Cidade Maravilhosa







O Rio de Janeiro continua lindo, o que não presta
é a impunidade, o crime organizado e os políticos
oportunistas - praga disseminada por todo o país.

Nota: Itamara Scaini viveu parte da infância e da adolescência no Rio de Janeiro e reside em Manaus uma pá de tempo (gíria, hoje usada raramente). Psicóloga, acaba de descobrir as cidades do interior do estado do Amazonas. Seguramente está surpresa com o que viu, pois quem só conhece a beira do Rio Negro, que banha a cidade de Manaus, ainda não pode dizer que conhece a diversidade cultural indígena do estado do Amazonas. Leia seu depoimento, enviado por e-mail.

Depoimento de Itamara Scaini

Minha primeira experiência?
Claro que lembro!
Foi algo estarrecedor. Tinha 7 anos e minha família acabara de mudar de SP para o RJ. Depois de alguma procura encontramos um ótimo apartamento em Laranjeiras.

SP e RJ em 1960 eram duas cidades absolutamente diferentes e apesar de termos saído de um bairro de classe média para outro, a diferença no vestir, no relacionar-se com os vizinhos, na estrutura do bairro eram enormes.

Certo dia, indo para o Colégio - minha mãe levava diariamente minha irmã e eu - ao atravessar a Rua Gago Coutinho senti uma "presença" do meu lado e um aperto de mão da minha mãe. Olhei. Deparei-me com um enorme, mas enorme mesmo, homem de cor preta, careca, vestindo um sobretudo que lhe chegava nas canelas - era um dia de calor insuportável, e por baixo vestia uma calça amarrada por uma corda. Não vestia camisa.

A primeira coisa que me lembro é ter pensado que não havia diferença entre a cor do homem e a cor da roupa que vestia. Ele, além de falar sózinho, olhava as pessoas com um olhar de muita raiva, de provocação, de intimidação.

Aberto o sinal minha mãe quase nos fez voar para o outro lado da rua e para o outro lado ainda, oposto ao que o homem andava.

Não precisamos perguntar nada. Logo ela nos explicou que se tratava de um louco e que poderia nos fazer algum mal e que nunca, jamais, nos aproximassemos dele.

Durante décadas percorri a Rua das Laranjeiras em ambos os sentidos. Duas ou três vezes por semana encontrava com ele. Sempre vestindo as mesmas roupas. Às vezes andando frenéticamente em linha reta , falando muito e encarando todos; outras sentado, comendo um pedaço de pão.

O lugar onde ele costumava sentar-se, embaixo de uma árvore, fedia. Ele urinava, defecava e dormia sobre seus excrementos.

Alguns meninos, pequenos , às vezes gritavam com ele - não me lembro o que, e ele ameaçava jogar pedras.

Nunca soube quem o alimentava, de onde vinha, quem era.

Um dia , sem esta nem aquela, dei-me conta de que há algum tempo ele sumira. Desapareceu assim como desapareceu a lembrança dele até o momento em que recebi sua mensagem.

Tinha muito medo daquele homem, mas sempre tive muita pena também.

Um grande abraço,

Itamara

Manaus, 22 de Junho de 2006. Posted by Picasa

Depoimento de Fátima Monteiro

Foto: Igreja de São Sebastião, Manaus-AM, anos 60













Até hoje, os loucos de rua que entram na igreja de
São Sebastião não são molestados.


Nota: Fátima Monteiro foi sindicalista nos anos 80 em Manaus. Nos anos 90, atuou no campo dos direitos humanos, junto com o advogado Nestor Nascimento, de saudosa memória. Atualmente vive à beira do rio Uatumã, na comunidade de São José do Uatumã, município de Presidente Figueiredo-AM, onde vivem 150 famílias. Até hoje, por onde passa, não deixa de realizar seu trabalho de organização política do povo do lugar. Fátima é uma dessas mulheres que não perdem jamais a ternura, pero quando hay que undurecer, não queira estar na pele do adversário. Leia o seu depoimento sobre os loucos de rua da nossa infância enviado por e-mail.

Depoimento de Fátima Monteiro

Olá meu amigo,

Que belo reencontro!

Eu acabei de chegar de Presidente Figueiredo, onde gostaria muito de ter uma palestra sua por lá.

Eu moro às margens do Rio Uatumã - Comunidade São José do Uatumã -, que tem cerca de 150 famílias.

Você me fez voltar à minha infância, recordando-me da "Carmem Doida", "Gesebel", dois loucos de rua que me fascinavam! Quando meu tio levava eu e minhas duas irmãs Gracinha e Rose para a missa na Igreja de São Sebastião aos domingos de tarde, a Carmem Doida, que gostava de andar de ônibus (os primeiros de Manaus), com uma saca de estopa nas mãos, quando nos via, virava-se para meu tio Wilson e dizia com todo aquele sorriso grandioso: "Olha, lá vai ele com as suas borboletinhas lindas!..." (tô com vontade de chorar...). Eu e minhas irmãs ficávamos cheias de alegria ao ver e ouvir Carmem DDoida falando. Carmem Doida também andava pela rua com a sua saca de estopa nas mãos. Ela não fazia mal a ninguém, apenas alegrava os transeuntes de Manaus daqueles bons tempos.

O "Gesebel"era um caixeiro-viajante (hoje vendedor ou representante comercial) que trabalhava de segunda a sexta de terno e gravata. Na sexta-feira, após o almoço, o Gesebel rumava para os bares da cidade tomando todas e voltava para casa, na Praça 14, algumas vezes apenas de gravata no pescoço e sunga, cantando pelas ruas da Praça 14: "GESEBEL, GESEBEL, GESEBEL...". À época, eu devia ter 6/7 anos de idade e morava na Jonathas Pedrosa. Ah, como eu gostava de ver e ouvir o Gesebel!

Um beijo da amiga e companheira Fátima Monteiro.

ET.: Meus parabéns pelo filhote.

Manaus, 20 de Junho de 2006. Posted by Picasa

junho 25, 2006

A cidade e os loucos públicos dos anos 50/60

Cartão Postal: A Favorita - Vista geral de Manaus













Alguns amigos(as) me honraram com seus depoimentos sobre os loucos de rua da nossa infância na cidade de Manaus, vista acima num cartão postal clássico da loja de fotografia "A Favorita", situada quase esquina da rua Henrique Martins com Av. Eduardo Ribeiro.

No primeiro plano, vê-se o cais flutuante sobre a baía do Rio Negro. Rivalizava com a Catedral de N.S. da Conceição - bem defronte - a atenção dos manauras. Aos domingos, era batata (gíria dos anos 50/60), lá estavam as classes sociais mais populares, em seus vestidos de passeio domingueiro, a usufruir as belezas do coração da cidade.

Se a Catedral oferecia no seu entorno um agradável passeio público, arborizado e com pequenos lagos artificiais, o cais flutuante era imbatível; nele fruia-se a mais bela paisagem conhecida pelos povos da floresta: o rio. Beira de rio é coisa que encanta qualquer amazônida que se preze. A da baía do Rio Negro, com pores-de-sol inesquecíveis no verão abrasador de Manaus, nem se fala; contempla-se deitando olhares cumpridos até perder de vista. Espaços de convívio por excelência, notadamente as crianças, no seu eterno brincar, eram seus principais beneficiários: ou "danavam-se" a correr pelo passeio público, a bom comer pipoca, quebra-queixo, algodão doce, ou divertiam-se alimentando peixes no cais da Manaus Harbour. Tudo era festa.

Ancorado no cais, há pelo menos um navio da Booth Line, companhia inglesa de navegação, onde trabalhou como prático da bacia amazônica o comandante Rogelio Casado, meu pai, com quem fiz muitas viagens até Belém do Pará, sua terra natal, em navios de nomes castelhanos: Vamos, Venimos, Valiente.

Cortada por dois grandes igarapés, o de São Raimundo está fora do quadro, vendo-se apenas à direita o igarapé de Educandos, por onde podia-se atingir o bairro do mesmo nome através de catraias, embarcações rústicas movidas por dois longos remos dispostos em duas forquetas laterais.

Aos fundos pode-se ver a mata que cercava a cidade, ainda intacta. A malha de igarapés nela existente possibilitou uma rede de balneários púbicos e privados. A qualidade de vida da população de pouco mais de 300 mil manauaras jamais seria reproduzida. A mata viria abaixo e os igarapés seriam assoreados e/ou canalizados para dar lugar a dezenas de novos bairros, a partir do final dos anos 60 com a criação da Zona Franca de Manaus. Não são poucos os que afirmam que há males que vem para o bem: a zona franca depredou o patrimônio paisagístico de Manaus, porém teria deixada intacta a floresta amazônica, como se pode obervar ao comparar com a trágica depredação das florestas do Pará. Até quando?

O limite urbano da cidade, ao norte, era dado pelo Boulevard Amazonas; ao leste, pelo igarapé da Cachoerinha. Para além do boulevard, no final do bairro de Flores, ficava o Hospital Colônia Eduardo Ribeiro, criado em 1894 numa dependência da Santa Casa de Misericórdia, tendo sido transferido para a Rua Ramos Ferreira no dia 18 de fevereiro de 1898, onde funcionou até 1926, para finalmente ocupar um asilo de mendicidade denominado Colônia dos Alienados Eduardo Ribeiro; mais tarde receberia duas outras denominações: Hospital e Centro Psiquiátrico Eduardo Ribeiro.

Mas essa é uma outra história. Por ora, acompanhe o depoimento sobre os loucos de rua. Na sua maioria, personagens célebres da Manaus dos anos 50/60. Outros relatos vieram de fora do estado do Amazonas. Desde já convido-os a refletir sobre o papel que esses loucos representaram e continuam representando na imaginação popular? E mais: como nossas memórias podem contribuir para a inclusão social dos loucos na cultura dos nossos tempos? A todos que colaboraram com seus generosos testemunhos, meus agradedimentos. Posted by Picasa

junho 22, 2006

O Delegado do Diabo e a Gaivota
















Chamava-se em vida José Ribamar Affonso. Mas era conhecido, carinhosamente, como "Delegado do Diabo". Consta que o apelido lhe foi dado pela imprensa dos anos 1960/1970, quando Ribamar assumiu o Departamento Estadual de Trânsito. Tentou-se identificá-lo com um outro "delegado", de nome Fontenelle, que no Rio de Janeiro se notabilizou por comandar, com mão de ferro, o trânsito caótico da Cidade Maravilhosa. Confrontada as duas experiências, o nosso "delegado" se distinguiu pelo uso de métodos educativos. Por exemplo: para disciplinar o cidadão mal educado, do interior de um fusca, munido de um megafone, advertia os infratores sem usar o talonário de multas. Quanta falta fez Ribamar, quando a cidade cresceu vertiginosamente devido a migração provocada pela emergente Zona Franca de Manaus. Despreparadas, autoridades sem nenhuma vocação pedagógica deixaram crescer a indústria das multas, deixando para trás o exemplo de respeito à cidadania do velho "Delegado do Diabo".

Ribamar era um homem de múltiplas qualidades. Dizem que, se queremos conhecer um homem, devemos visitar sua casa. A moradia de Ribamar na Avenida Getúlio Vargas, quase esquina com a Rua Henrique Martins, onde ainda moram seus familares, até hoje é um exemplo de amor à cidade. Na frente da casa, das dezenas de oitis plantados pela municipalidade em via pública, foi a única que mereceu um cuidado especial: aos pés da árvore foram plantados delicados arranjos florais, embelezando um dos raros passeios públicos de uma cidade de calçamento precário. Mas é o no interior da casa que o "Delegado" cultivava outras paixões, como a dos livros e revistas da época, estas cuidadosamente encadernadas.

Num artigo memorável, publicado, salvo engano pelo jornalista Mário Adolfo, no Jornal Amazonas em Tempo, tomei conhecimento de um fato pelo qual José Ribamar Affonso ganhou para sempre meu profundo respeito. Havia uma das nossas loucas de rua de nome "Gaivota"; alta e magra, vestida com roupas surradas e encardidadas, cabelos em desalinho, ela vivia a subir e descer a Avenida Getúlio Vargas acompanhada de dezenas de cachorros. Era Ribamar quem a alimentava diariamente. "Gaivota" recusava receber o prato das mãos de um outro humano; ele respeitava seu gesto de recusa. Sem dúvida uma recusa simbólica. Por isso, ele colocava o prato de comida no chão; só então, ela aceitava a oferta daquele homem de baixa estatura e de uma generosidade grandiosa. Esse tipo de solidariedade é uma dessas qualidades típicas dos habitantes de pequenas cidades, como era a Manaus do início da Zona Franca, lá pelo final dos anos 1960, e que ainda não foi de toda perdida, apesar do cenário de competição homicida e camaradagem hipócrita da sociedade pós-moderna. Ribamar foi um desses cidadãos que soube honrar a tradição da outrora "Cidade Sorriso".

Hoje, quando já não estão mais entre nós essas duas personagens singulares, a cidade de Manaus vive o desafio do desmonte da instituição psiquiátrica e a criação de serviços que substituam o hospício. Que o exemplo de José Ribamar Affonso, o querido "Delegado do "Diabo", ilumine os caminhos da construção de uma sociedade sem manicômios. Que as novas "Gaivotas" continuem a merecer a generosidade dos seus contemporâneos nesse desafio civilizatório que é incluir os loucos na cultura dos nossos tempos. Com isto, a sociedade civil e a sociedade política estarão ajudando a abrandar um preconceito social fruto de 250 anos de confinamento dos loucos em manicômios, que lhes subtraiu a humanidade e a cidadania. Posted by Picasa

junho 20, 2006

Loucos de rua da nossa infância

Foto: Rogelio Casado, Praça São Sebastião, 2005
Manaus-AM




















Para Lúcia Antony

Quando saia do plenário da Câmara dos Vereadores de Manaus, onde participei da Tribuna Popular em comemoração ao Dia Nacional de Luta Antimanicomial - dia 18 de Maio - como fundador da Associação Chico Inácio (ong de familiares, usuários e técnicos de saúde mental), a vereadora Lúcia Antony, do PC do B, sensibilizada com o empenho dessa entidade na construção da cidadania e na inclusão dos loucos na vida da cidade, parou para dois dedos de prosa.

Emocionada, Lucia Antony lembrou dos loucos da nossa infância, principalmente dos que escaparam da psiquiatria, da medicalização e do hospício. Chamou atenção para a importância de resgatarmos a memória dos nossos "loucos de rua", que, diferentemente dos andarilhos, têm uma forte ligação com o ambiente onde vivem, ao traçar seus misteriosos percursos afetivos. Ainda hoje eles estão presentes no cenário urbano, lembrando a mobilidade social da loucura na Europa do final do século XV, embora desprovidos da representação a ela conferida no "teatro do mundo", a que se referiu o filósofo Michael Foulcault.

O desafio está lançado. Quem se habilita a escrever lembranças sobre os loucos da nossa infância?

Como fonte de estímulo, leia esse belo poema, que dedico à companheira Lúcia Antony.

LOUCOS

José Paulo Paes Leme

“Ninguém com um grão de juízo ignora estarem os loucos
muito mais perto do mundo das crianças do que do mundo
dos adultos. Eu pelo menos não esqueci os loucos da minha
infância.
Havia o Elétrico, um homenzinho atarracado de cabeça
pontuda que dormia à noite no vão das portas mas de dia
rondava sem descanso as ruas da cidade.
Quando topava com um poste de iluminação, punha-se a
dar voltas em torno dele. Ao fim de certo número de voltas,
rompia o círculo e seguia seu caminho em linha reta até o
poste seguinte.
Nós crianças, não tínhamos dúvida de que se devia aos
círculos mágicos do Elétrico a circunstância de jamais
faltar luz em Taquaritinga e de os seus postes, por altos
que fossem, nunca terem desabado.
Havia também o João Bobo, um caboclo espigado,
barbicha rala a lhe apontar o queixo, olhos lacrimejantes
e riso sem causa na boca desdentada sempre a escorrer de
baba.
Adorava crianças de colo. Quando lhe punham uma nos braços,
seus olhos se acendiam se acendiam, seu riso de idiota ganhava
a mesma expressão de materna beatitude que eu me
acostumara a ver, assustado com a semelhança, no rosto
da Virgem do altar-mor da igreja.
E havia finalmente o Félix, um preto de meia idade sempre
a resmungar consigo num incompreensível monólogo. A
molecada o perseguia ao refrão de ‘Felix morreu na guerra!
Félix morreu na guerra!’
Ele respondia com os palavrões mais cabeludos porque o
refrão lhe lembrava que, numa das revoluções, a mãe o
escondera no mato com medo do recrutamento, a ele que
abominava todas formas de violência.
Quando Félix rachava lenha cantando, no quintal de nossa
casa, e, em briga de meninos, um mais taludo batia num
menor, ele se punha a berrar desesperadamente: ‘Acuda!
Acuda!’ até um adulto aparecer para salvar a vítima.
Como se vê, os loucos de nossa infância eram loucos úteis.
Deles aprendemos coisas que os professores do grupo e do
e do ginásio não os poderia ensinar, mesmo porque,
desconfio, nada sabiam delas”.
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junho 19, 2006

Hospício: o fim está próximo?

Foto: Rogelio Casado, Hospital Psiquiátrico Eduardo Ribeiro, 1892-...












Ao ler um livro de cartuns antigos, deparei-me com um clássico no qual o personagem anuncia apocalíptico: "O Fim está próximo".

No momento em que se anuncia o desmonte progressivo da instituição psiquiátrica no estado do Amazonas, é de se perguntar: o manicômio está próximo do fim? Pelo andar da carruagem, sim.

Nesse percurso, algumas questões apontadas num artigo publicado no Jornal Amazonas em Tempo, em junho de 2005, merecem reflexão sobre o desafio que é a desinstitucionalização em saúde mental.

O fim do manicômio

Mesmo fora do manicômio, a assistência aos portadores de sofrimento psíquico ainda sofre a influência dos dispositivos manicomiais. A clínica, que campeia nos serviços, públicos e privados, baseia-se em fortes efeitos apassivadores. Não é nenhuma novidade que os conflitos vividos em sociedade estão sendo medicalizados. Há um público refém do monopólio de técnicas estandarizadas, na medida em que foram desprezadas as questões culturais, cognitivas e subjetivas que tornam o funcionamento dos serviços de saúde alvo do monopólio de um modelo obsoleto.

Quando, então, serão enfrentadas as diversas demandas da “população psiquiátrica”? Qual o papel das instituições de ensino? Qual o perfil desejável dos profissionais “psi”, diante da emergência de novos paradigmas de atenção em saúde mental?

Na academia não há quem desconheça a importância de combater o estigma social provocado pelos transtornos subjetivos. Porém, como sustentar os direitos dos portadores de sofrimento psíquico se o modelo manicomial insiste em pairar sobre nossas cabeças? Ao modelo clássico de segregação da diferença, baseado numa falsa moral, a nova discriminação aos transtornos psiquiátricos ganha suporte na suposição de que a “dor de existir” é produto de complexas interações neuro-químicas, daí o uso abusivo de psicofármacos.

Porém, há academia e academia. Na primeira há mera reprodução do saber. Mas é da última, onde há constante produção do saber, que chovem advertências: “Tratar os efeitos da 'doença mental' e impedir o estigma e a discriminação implica muito mais do que o domínio de uma técnica. Faz-se necessário a criação de dispositivos grupais e institucionais que estimulem a análise e a quebra de defesas corporativas. Faz-se necessário o confronto diário com nossas próprias dimensões subjetivas e pessoais. Faz-se necessário romper com a colonização mental a que fomos submetidos. Faz-se necessário a análise dos processos de poder e conflitos políticos, ideológicos e institucionais vividos no cotidiano dos serviços”.

Desinstitucionalização em saúde mental é um processo que requer a recuperação da complexidade e do desenvolvimento das diversas aptidões de nossas vidas e de nossas clientelas. Que cada um indague se está amadurecido para o desafio de criar um projeto teórico, político e assistencial que contemple as novas perspectivas definidas na Lei Paulo Delgado - esta, sim, fruto de experiências concretas baseadas numa clínica de efeitos desapassivadores.

Se os dispositivos institucionais ainda tardam entre nós é porque o desmonte do modelo manicomial ficou no meio do caminho da história da Reforma Psiquiátrica no Amazonas, resultante da cumplicidade conformista entre a sociedade civil e a sociedade política. Cumplicidade que perderia sua força no início deste século. Recuperar o elo perdido dessa história não é reivindicar por uma Reforma já acontecida, cujos ideais caducaram, mas apostar na sua vertente mais radical: o fim dos manicômios. A clínica antimanicomial é o seu principal instrumento.

Manaus, junho de 2005

Rogelio Casado, especialista em Saúde Mental
Coordenador do Programa Estadual de Saúde Mental
E-mail: rogeliocasado@uol.com.br Posted by Picasa

junho 17, 2006

Foi Deus-se














Bussunda e o jornalismo sério dos Cassetas

Talvez seja essa a melhor oportunidade para homenagear um dos poucos a praticar um jornalismo sério hoje no Brasil - a produção das piadas do Casseta & Planeta. No melhor estilo, tal como naquela manhã de sábado fatídico (morte prematura de Cássia Heler), acordamos com a pior piada que um humorista pode nos contar - a sua própria morte. Foi assim e ponto. E nós que já nos acostumávamos com o desaparecimento de Golias, vendo todos os dias o Parreira planando pelas imagens da Globo, com sua cara redonda e sorriso enigmático, estamos a partir desse momento à procura de um substituto para as canastrices de Bussunda.

A primeira piada que lembramos de Bussunda, ainda que de mau gosto, reporta os tempos da Revista Casseta Popular, impressa, sem ainda a parceria com o pessoal do Planeta Diário. Era um anúncio para quem estivesse interessado em perder uns quilinhos, em poucos minutos. Primeira foto, um sujeito gordo dizendo que tinha a fórmula para perder 40 quilos num segundo, bastando para isso comprar o manual. Segunda foto, o mesmo sujeito gordo (Busssunda), sorridente, com as pernas sobre os trilhos da Central do Brasil, decepadas pelo trem do subúrbio carioca. Esse mau gosto de linguagem abriu as portas para um humorismo sério que classificamos como o melhor jornalismo contemporâneo, em oposição ao jornalismo partidário (disfarçado de sério) que se pratica na grande imprensa nos dias atuais. A turma dos Cassetas nunca se importou com os chavões de, em certas situações, serem comparados às piadistas pouco éticas. Não se importaram de fazer piadas sobre negros, português, mas ninguém como eles estiveram ao lado dos pobres, negros e oprimidos. Nunca se preocuparam em esconder sua predileção política partidária, por outra, nunca deixaram de praticar a profissão escolhida (humorismo), com independência, sem poupar ninguém.

Bussunda sacaneou a todos, a ele inclusive, nesta manhã de sábado. Por alguns minutos chegamos a pensar tratar-se de uma baita de uma farsa, tal como aquela do Orson Welles, quando por algumas horas apavorou grande parte dos EUA transmitindo pelo rádio uma invasão de marcianos. Lamentavelmente, não se trata de uma piada, nem de mau gosto.

O que resta dessa brincadeira séria é que depois de terminar seu mandato (ou seria mandatos), Lula e, depois de pendurar as chuteiras, Ronaldo possam se candidatar a assumir o lugar de Bussunda, nos Cassetas. Seria a maior sacanagem que seus companheiros de profissão escolhida poderiam reservar ao gordinho charmoso.

Vai com Deus Bussunda e pára de sacanear.


Jair Alves – dramaturgo – São Paulo Posted by Picasa

Telma de Souza na Semana Domingos Stamato









15/06/2006
LUTA ANTIMANICOMIAL - “É hora de reagruparmos nossas forças”, declara Telma

“Os objetivos que perseguíamos quando da intervenção no Anchieta continuam distantes e, em certos casos, bastante ameaçados, diante dos obstáculos que a luta antimanicomial permanece enfrentando. Este é um momento importante para reagruparmos nossas forças, numa homenagem concreta à cruzada que Stamato desenvolveu em defesa da vida”, afirmou a deputada federal Telma de Souza (PT-SP), ao comparecer ontem (14/06) o segundo dia da Semana Domingos Stamato, série de eventos que marcam um ano da morte do psiquiatra, que se transformou num dos símbolos da luta antimanicomial em Santos e no país.

A deputada salientou que Domingos Stamato foi uma das figuras centrais no processo de intervenção e humanização da Casa de Saúde Anchieta, ação realizada quando Telma era prefeita de Santos, em 1989, após reiteradas denúncias de superlotação e maus tratos às centenas de pacientes ali internados. Depois de destacar que a intervenção foi um marco fundamental na luta antimanicomial brasileira, Telma acrescentou: “Vejo aqui pessoas altamente comprometidas com tudo o que acreditávamos e continuamos acreditando, ou seja, que as pessoas com transtornos psicológicos graves devem ter seus direitos de cidadania garantidos e receber o apoio que necessitam, dentro de parâmetros de dignidade e respeito. Lembrar Domingos Stamato é apenas um pretexto para reforçarmos nossa batalha por tudo o que ele sempre lutou”.

A Semana Domingos Stamato, que aconteceu no Campus Dom Idílio da Universidade Católica de Santos, foi promovida pela Associação Libertária da Infância e da Adolescência (ALIA), com o apoio da Unisantos e do mandato da deputada federal Telma de Souza. Além de sua participação na luta antimanicomial, o psiquiatra também foi militante na defesa dos direitos de crianças e adolescentes, como um dos fundadores do Movimento de Defesa da Vida (MDV), criado no final dos anos 70. Era também professor universitário. Stamato morreu no dia 15 de junho do ano passado, aos 58 anos de idade.

Geraldo Peixoto na Semana Domingos Stamato















Na última fila, Dulce é a terceira da esq. para dir. e
Geraldo Peixoto é o que está de touca. Os demais fazem
parte da Rede Nacional Internúcleos da Lula Antimanicomial.
Foto feita em julho/2005 durante reunião em Belo Horizonte.

Geraldo Peixoto não dorme de touca. Assim que encerrou a Semana Domingos Stamato, em Santos-SP, ele e sua querida Dulce trataram de enviar a mensagem abaixo para todos os seus companheiros. Divido com os leitores dessas mal-traçadas o entusiasmo dos queridos amigos e companheiros de lutas e ideais, como dizem os antigos.

Companheiros,

Estamos encaminhando, abaixo, o boletim da deputada federal Telma de Souza, recebido um dia após de sua participação em uma mesa que homenageou nosso querido companheiro, Domingos Stamato, no decorrer de um ano de seufalecimento. Acreditamos que o discurso dela, seja bastante significativo, neste momento desta nossa luta pela concretização dos nossos ideais, com relação à Reforma Psiquiátrica Brasileira.

Pensamos que esta manifestação da deputada, feita em um instante de tamanho significado, poderia servir para ser incluído no site da OSM (Observatório da Saúde Mental, site da Rede Nacional Internúcleos da Luta Antimanicomial).

Além da participação de Telma de Souza, como convidada para uma mesa, estavam presentes, outros companheiros das mais diversas correntes da qual Stamato foi tão pródigo em pertencer.

A mesa foi composta por: Telma de Souza, Jabour (psiquiatra), Sérgio (meio-ambiente), Zé Luz (artista, músico ecompositor), Bel Stamato (coordenadora do evento), Geraldo Peixoto (amigo efamiliar da saúde mental), Tânia (colega de Stamato, do CAPS Saquaré-México70, psicóloga), Verônica (jovem militante dos movimentos sociais de moradores de rua) e Irmã Dolores (que acha que não existe separação entre Cristo e CheGuevara), bem como, muitas demais pessoas da platéia, que demonstraram seu carinho dando depoimentos emocionados, algumas lembranças: Eva, Belzinha, Nena e tantos outros, dos quais não gravamos os nomes.

Aquele, não foi um momento de tristeza, mas sim, de celebração, que gostaríamos de compartilhar com todos vocês.

Ontem foi "Domingos",
Hoje é "Domingos",
Amanhã será "Domingos",
Sempre será "Domingos"
Stamato em nossos corações.

Letra de música feita pelo Zé Luz, em homenagem a Domingos Stamato, cantada nos finais de cada noite do evento.

Abraços nossos

Geraldo e Dulce

NOTA: Leia na próxima postagem a mensagem de Telma de Souza. Posted by Picasa

junho 15, 2006

Altas horas, altos papos... altos furos















NO ALTAS HORAS, ALTOS PAPOS, ALTOS FUROS!!!!

Neste último sábado, no programa Altas Horas, seu diretor e apresentador SG pautou como tema a violência da invasão na Câmara Federal, durante a semana. Convidados para debater e vender o próprio peixe, o Grupo Rapa (representado por Falcão, seu líder e vocalista); o compositor Nando Reis e, por último, um casal de jovens atores da Tevê Globo (desculpem-nos, não conseguimos gravar seus nomes).

Comecemos por Falcão: depois de condenar timidamente a violência da invasão, disse tratar-se de uma situação corriqueira, onde as instituições vigentes não conseguem atender a demanda social. Falcão está errado, ouviu essa frase de efeito em algum canto e não compreendeu a complexidade do que estamos vivendo no Brasil hoje. Em seguida, se diz decepcionado com Lula, de quem gosta tanto, mas que não consegue ver como o atual presidente possa ajudar. Falcão continua errado, outra frase de efeito e acaba fazendo coro a uma campanha reacionária que têm objetivos explícitos - derrubar e desacreditar o atual Governo. Em seguida, falou Nando Reis que, na condição de astro nacional, arriscou dizer que tudo está de fato muito ruim, “um desrespeito geral, por parte dos políticos...”. Outra frase de efeito, mas prometeu uma reação em outubro. O que ele quer dizer? Está legitimando o pleito no segundo semestre? Quer dizer que elegeremos representantes mais honestos e competentes? Faltou dizer onde estão e quem são esses novos representantes do povo!!!

Para finalizar, falou o jovem casal de atores que, pelo visto, sabe bem menos do que aquela platéia jovem e sedenta de informação. Não usaram nenhuma frase de efeito, mas não conseguiram dizer coisa alguma. Não há como ligar esse casal de atores à mesma categoria que eu e meus companheiros artistas pertencemos. De fato, eles habitam um universo e anseios que nada tem a ver com a maioria dos artistas brasileiros. Não vejo neles nenhuma má fé, mas por outro lado também não vejo neles outra intenção que não seja a própria realização pessoal. Sendo assim, seria melhor que ficassem calados, pois a confusão pode aumentar ainda mais.

Não é a primeira nem será a última vez que o bordão se repete - disseminando o caos, a desesperança, para implantar o embuste. Nesta tarde de domingo, o candidato da oposição ao Governo Federal, que em São Paulo é governo, diz que se ganhar a eleição, em outubro, vai fazer uma devassa. Mas, em São Paulo ele é governo, portanto não distante dos reclamos da população em pânico. Ele prega também uma devassa no Governo Estadual? Essa afirmação, mais uma, produzida pelos seus assessores, nada mais é que uma frase de efeito e a senha para compreender a farsa montada. Nenhum dos opositores ao governo federal, nem os governadores de Estado, como o Rio de Janeiro, Minas, Rio Grande de Sul e São Paulo apresentaram alternativas que, de fato, possam resolver os grandes problemas da Nação brasileira. Ninguém falou de redistribuição de renda, justiça social ou coisa parecida. Esse é um tema proibido para o status quo. Além de exigir perda de privilégios, reivindicar distribuição de renda e justiça social deixaria descoberto o que de há muito se procura encobrir. Os temas como corrupção e malversação do dinheiro público é tão vago como incentivar a juventude a sair às ruas para protestar, sem causa. Um governo reacionário não pode e não encontrará na juventude do auditório do SG e do JS eco para seus acenos. Talvez, por isso mesmo esses jovens - Falcão, Nando Reis e o casal de atores da Globo não tenham o que propor, a não ser ‘que devemos nos unir’. Em torno de quem, meus amigos???
Jair Alves - dramaturgo - São Paulo Posted by Picasa

junho 13, 2006

Brasil 1 x 0 Croácia




















Em sua primeira Copa Mundial
de Futebol , Juan - príncipe da
tribo dos sapequinhas - comemora
o primeiro gol do Brasil.


Às vésperas de completar 1 ano e 4 meses, Juan de Castro Valente Casado, vive sua primeira Copa Mundial de Futebol.

No único gol do Brasil contra a Croácia, tomou a bandeira brasileira das mãos do seu pai, colocou sobre a cabeça, e saiu comemorando pela casa, numa explosão de alegria.

Orgulho do papai e da mamãe, todos os dias ele arranja uma bossa diferente.

Dá-lhe, Juan! Posted by Picasa

junho 11, 2006

Semana Domingos Stamato




















Domingos Stamato nos deixou há um ano.

Leia o texto escrito por Dulce e Geraldo Peixoto por ocasião da sua morte, no ano de 2005:

SANTOS E TODA A BAIXADA SANTISTA ESTÁ DE LUTO

Um tempo da saudade,
um tempo da perda,
um tempo da gentileza,
um tempo da delicadeza...

Companheiros, dor, tristeza... mais um dos nossos que desembarcou e, justamente quem , Domingos Stamato, companheiro de fé, antigo militante. Foi pioneiro, levantando a bandeira da Luta Antimanicomial, luta que hoje, se espalha por todo o nosso país. Deixará uma grande lacuna nas nossas almas, nas nossas mentes e nos nossos corações. Cada um dos que conviveram com ele, nos mais diferentes momentos, cresceu com o seu exemplo: firmeza e gentileza. Sua lembrança ficará marcada, indelevelmente, em nosso espírito. Exatamente neste momento , em que começamos a avistar uma esperança, fruto desta luta incansável . Estávamos com tudo em nossas mãos para nos erguer em busca de novos horizontes e, quando acabávamos de comemorar os 15 anos da Intervenção Municipal na Casa de Saúde Anchieta, vem esse golpe implacável do destino, nos deixando órfãos. Estivemos distanciados do Stamato durante um longo tempo e esse nosso reencontro, aqui na baixada foi, para nós, precioso. Só o que nos resta agora, é cuidar para fazer com que floresça essa semente de humanismo plantada por ele, ele, que sempre soube, tão bem, exemplificar o verdadeiro significado da palavra “humanismo”.

Geraldo e Dulce em nome de todos os que acreditam no novo e, que o novo sempre virá!

VALEU COMPANHEIRO! Posted by Picasa

junho 10, 2006

O que que a Bahia tem?














O cartaz é alusivo às comemorações do 18 de maio - Dia Nacional de Luta Antimanicomial - de Belo Horizonte-BH, mas pretende chamar atenção de como o movimento por uma sociedade sem manicômios se espalha pelo Brasil. É o caso do município de Lauro Rocha, na Bahia de todos os Santos.

Leia a mensagem enviada por Delmar Saft e conheça um pouco como funciona a solidariedade entre os companheiros militantes que defendem a socialização da informação como forma de atingir os corações e mentes dos brasileiros de todas as latitudes:

Companheiros Militantes,

Com trabalho de formiguinha, estamos divulgando o Movimento Antimanicomial aqui em Lauro/BA. Já conseguimos o DIA MUNICIPAL DA LUTA ANTIMANICOMIAL, e já comemoramos pelo segundo ano consecutivo na Câmara de Vereadores, com parceria da Comissão de Direitos Humanos. O Vereador Lula Maciel foi quem abraçou nossa sugestão.

O CAPS foi inaugurado em 10 de Outubro e leva o nome do saudoso EDUARDO ARAÚJO, de quem nossa prefeita (Moema) era admiradora.

Sou Assessor do CAPS, onde sugerimos, e já foi aprovada, a criação da Comissão Municipal de Saúde Mental no Conselho Municipal de Saúde, cuja composição será homologada na reunião de Junho, em que sugerimos a participação de Usuários e Familiares do CAPS na Comissão.

Também na Sessão Especial pelo Dia do Assistente Social - 15 de Maio - foi abordada o Dia Municipal/Nacional da Luta Antimanicomial e a inserção dos Agentes Comunitários nas composições das equipes de Saúde Mental.

Esperamos nos encontrar no Encontro de Saúde Mental em Julho em Belo Horizonte.

Abraços,

Delmar

71-9161-8744
delmarsaft@ig.com.br

NOTA 1: Eduardo Araujo, faleceu no ano de 2005. Era usuário de saúde mental e companheiro na luta por uma sociedade sem manicômios. Nos encontros científicos, não havia quem deixasse de se emocionar ao ouvi-lo fazer a defesa dos seus "delírios".

NOTA 2: Comissão Municipal de Saúde Mental é uma instância do Conselho Municipal de Saúde, composta por representação paritária entre gestores, instituições científicas e usuários organizados em suas entidades, entre outros, que participa da formulação de propostas para a Política Municipal de Saúde Mental. Em Manaus temos um duplo desafio: criar a referida comissão e garantir participação nos futuros conselhos distritais. Posted by Picasa

junho 09, 2006

Para entender o futuro

Foto: Rogelio Casado, Hospital Colônia Eduardo Ribeiro, 1980














São passados 26 anos depois que fiz essa fotografia no pátio da Ala Masculina do então Hospital Colônia Eduardo Ribeiro. Liderados por Silvério Tundis, trabalhadores de saúde mental haviam denunciado o perverso conluio entre violência contra portadores de sofrimento mental e corrupção administrativa.

Estávamos no final da ditadura militar. Governava o estado do Amazonas o Professor José Lindoso. Silvério seria conduzido pelas mãos de Francisco de Paula, Secretário de Estado de Saúde, para a direção do velho hospício de Manaus. Fui por ele indicado para responder pela direção clínica. Minhas credenciais: durante dois anos, entre 1978 e 1979, fiz residência médica em Psiquiatria Social na Associação Pró-Reintegração Social da Criança e no Instituto de Psiquiatria Social, em Diadema-SP, tendo como um dos preceptores o psiquiatra Osvaldo Di Loretto. Detalhe: essas duas instituições estavam entre outras que patrocinaram a vinda de Franco Basaglia ao Brasil. Me recordo da alegria com que ele foi recebido na Comunidade Terapêutica onde cuidávamos de crianças no primeiro ano da residência médica.

Basaglia foi o pai da psiquiatria democrática. No final dos anos 60, depois de abandonar a cátedra de psiquiatria, insatisfeito com os limites impostos pela academia, a partir de Gorizia, em seguida Trieste, ele e sua equipe foram desmontando as instituições psiquiátricas por onde passavam até a aprovação da Lei 180, em 1978, que criava uma rede de atenção em saúde mental substitutiva ao hospital psiquiátrico. A experiência brasileira muito se inspirou no modelo italiano, a exemplo do município de Santos que, em 1989, colocou o Brasil no mapa mundial das experiências de mudança de paradigmas obsoletos.

Sob este signo, em 1980, os trabalhadores de saúde mental iniciaram em Manaus a Reforma Psiquiátrica que se disseminava por todo o Brasil. Começavamos aí uma história que mudaria a face da atenção em saúde mental no estado do Amazonas.

Em certas circunstâncias, a fotografia aqui publicada vem à minha memória. Foi o caso, na manhã de 8 de maio de 2006, quando me dirigi ao Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) Silvério Tundis para atender a TV Amazonas que ali fazia uma matéria sobre o novo modelo de atenção à saúde mental dos brasileiros que vivem no Amazonas. Em nada esse modelo lembra a tragédia que abateu inúmeras vidas confinadas no único hospital psiquiátrico existente em território amazonense.

Observe novamente a fotografia. Olhe detidamente o destaque dado no canto superior esquerdo. Ali se veem dois símbolos de culturas absolutamente distintas: uma cruz e um arco e flecha. No princípio havia um arco e uma flecha, a ele se sobrepôs uma cruz. Foi Marcus Barros, atual presidente do IBAMA, que viveu entre os ticunas do Alto Solimões, quem me chamou atenção para a representação gráfica das duas civilizações. Desnecessário comentar as implicações desastrosas desse encontro. Os números falam por si: mais de 6 milhões de índios desapareceriam da face da terra, abrindo uma dívida social para as centenas de etnias sobreviventes.

O autor dessa representação, que colhi no "pátio dos condenados" - e que mereceu um registro em filme do cineasta David Pennington e do artista plástica Roberto Evangelista - é um dos anônimos pacientes que ali perdeu a cidadania e a humanidade. Talvez, quem sabe, possa ter se beneficiado pelos novos ares respirados por todos os anos 1980. Mas, se ele continua ignorado, sua representação foi colhida por um fotógrafo aprendiz de feiticeiro, que fotografava o que via e registrava o que ainda não sabia olhar. Que essa foto sirva de alerta contra todas as armadilhas que retiram do homem a liberdade do viver, e que modifique nosso olhar sobre todas as coisas do mundo, em particular sobre o futuro dos portadores de sofrimento mental. Posted by Picasa