agosto 02, 2006

CARTA DO AMAZONAS para o Fórum Amazônico de Saúde Mental

Foto: Rogelio Casado - Teatro Amazonas, 2004












Nota: Entre os dias 2, 3 e 4 de agosto os amazônidas estarão reunidos no Fórum Amazônico de Saúde Mental, na cidade de Palmas - Tocantins. Carecas de saber que não há Reforma Psiquiátrica sem Movimento Social, os amazônidas do estado do Amazonas, através da Carta do Amazonas, reforçam a idéia de que sem outro tipo de formação profissional não tem Reforma Psiquiátrica que se sustente. Leia, abaixo, a Carta do Amazonas.

CARTA DO AMAZONAS (amazônidas ocidentais)

No Amazonas, no centro da selva, a Reforma Psiquiátrica acompanhou, em janeiro de 1980, as mudanças em curso no campo da saúde mental em todo o mundo. Jovens psiquiatras, após um tempo no sul do país, abriram espaço no debate público para uma reivindicação incomum no campo da saúde mental: a cidadania do louco. Com isso, abriram o campo para novos desenhos de política de saúde mental, nem sempre bem sucedidos.
A política de saúde mental dos anos 80 inspirou-se na trajetória da psiquiatria democrática italiana, liderada por Franco Basaglia, que havia estado no Brasil um ano antes da denúncia de conluio entre violência contra portadores de transtorno mental e corrupção administrativa no interior do então Hospital Colônia "Eduardo Ribeiro”, resultando no afastamento dos corruptos da direção do manicômio.
O saudoso colega Silvério Tundis e seus companheiros criariam um novo período na história da psiquiatria amazonense, no contexto daqueles anos de luta pela redemocratização do país; mais de vinte anos depois foi imortalizado, tornando-se símbolo ao dar nome ao primeiro Centro de Atenção Psicossocial de Manaus, na zona norte da cidade de Manaus.

A Coordenação de Saúde Mental do Estado do Amazonas, ainda hoje, busca obsessivamente práticas mais ricas de sentido, procurando se nortear para além do saber colonizador europeu. Afinal nossos loucos e nossos asilos não são como os dele. E, talvez, até mesmo os loucos de primeiro mundo não sejam como os loucos do nosso Brasil. Numa coisa eles se parecem: a configuração do louco como não cidadão, a negação da sua voz, a desqualificação da sua mensagem, a anulação do sujeito. Sabemos que não há respostas criativas no interior do manicômio. A própria rede de Caps e suas práticas devem ser objeto de um amplo processo de revisão. Estamos certos de que essa rede nunca foi antes pensada pelos que insistiam em dar respostas com certas técnicas dissociadas de uma visão de mundo, como se essas não tivessem profundas implicações com um significado da “doença mental” – técnicas, que, criadas nos anos 40, estavam com seu prazo de validade vencida.
Intuíamos que, para produzir efeitos dentro de uma estrutura totalitária – com sua lógica financeira selvagem –, um saber técnico não podia prescindir de um saber ainda a ser inventado. Coerente com a radicalidade do lema “Por uma sociedade sem manicômios”, fechamos em maio deste ano a última enfermaria dos pavilhões do Hospital Psiquiátrico Eduardo Ribeiro. Com a colaboração entre jovens profissionais e outros experientes cuidadores de saúde mental, a pauta do debate público foi radicalizada, instaurando-se na capital, e no interior do estado onde foram iniciadas ações de saúde mental, a seguinte idéia: há um sujeito louco, e não uma loucura comportada e sem sujeito submissa a interesses dissociados do prazer de ser gente em convivência. Num cenário de resistências, prática e discurso atravessaram a própria instituição saúde – Secretaria de Estado da Saúde – com um novo pensar.
Até então, a organização do trabalho psiquiátrico sofria as inflexões da organização de um aprendizado viciado e de uma formação profissional alienada, que oscila entre a naturalização da idéia de que “lugar de doido é no hospício” e que “uma vez doido, sempre doido” e a defesa retórica de uma cidadania nunca praticada em sua radicalidade para com os sujeitos sob seus cuidados.
Na verdade, a identidade criada pelo manicômio entre profissionais de saúde e seus “doentes” gerou novas formas de isolamento Ora, esse isolamento moderno é perverso porque não tem cultura de solidariedade e da emoção. Paradoxalmente, ao lado dessa cultura psi colonizada, ainda hoje na Amazônia existem etnias isoladas do mundo que crescem e vivem, porque aqui o isolamento não empobrece, porque é genuíno, é auto-reproduzido, não é imposto de fora para dentro.
Nós da Amazônia temos por natureza e cultura a capacidade de fertilizar nosso solo, que surpreende, pois, como sabemos, apesar de muitos sítios serem estéreis para a plantação, ainda assim seu ciclo permite que a selva se reproduza incessante e insensatamente. Arqueólogos têm encontrado vários sítios de terra fértil, provavelmente por ocupação inventiva. Por tudo isso, reafirmamos nosso compromisso com a luta por uma sociedade sem manicômios, mas, acrescentamos, sem os males da colonização .

Êxitos expressivos foram obtidos pela Reforma Psiquiátrica no Amazonas, se olharmos criticamente o seu legado. Há quase vinte anos funciona um sistema de emergência para internações de até 72 horas num Pronto Atendimento situado no Centro Psiquiátrico “Eduardo Ribeiro”. Esse último ainda hoje é denominado pelos manauenses como “hospício”. Com essa estrutura emergencial, criou-se mais do que um padrão de atenção à crise, criou-se uma cultura de serviço que torna menos importante a criação de leitos psiquiátricos em hospitais gerais. E, contudo, não foram criados leitos psiquiátricos, nem públicos nem privados. Afora a questão evidente da duvidosa qualidade dos serviços existentes, que assujeita seus usuários à medicalização da dor da existência, atestando a falência desse modelo de cuidado praticado em várias latitudes no Brasil, os portadores de transtorno mental não são em grande número pelas ruas de Manaus. O primeiro Caps foi inaugurado em maio deste ano, mas por outro lado a “loucura” atinge cifras alarmantes na prostituição infantil e no tráfico de drogas; a violência institucionaliza-se, e práticas de corrupção são toleradas com permissividade e apatia em geral por todos.
Para nós do Amazonas (amazônidas ocidentais), a doença mental não foi encarcerada pelo saber científico porque o establishment acadêmico nunca cresceu; por outro lado o servilismo colonizador fortaleceu-se. Quem ficou na Amazônia não a adotou como sua casa; muitos emigrantes sempre sonham em voltar para casa. Agora queremos fincar raízes e não espoliar nossa terra. É tempo de não permitir que a doença mental fique sujeita às relações corruptas e corruptoras dos que esvaziam a luta antimanicomial de sentido e a transformam em questão de mero e inevitável atraso, contentando-se em ir à reboque da Reforma Psiquiátrica brasileira.
Aqui, a questão central desta carta. Comenta-se que “sem movimento social não há reforma psiquiátrica”. Deve-se acrescentar que “não há criação de uma rede de apoio social e pessoal aos portadores de transtorno mental, via Caps, sem pessoal descolonizado”.

A proposta do Amazonas, no momento em que foi já realizado o I Fórum Amazônico de Saúde Mental, na cidade de Belém do Pará, e em vista deste II Fórum, que acontece na cidade de Palmas – Tocantins, é imperativo ampliar a Reforma Psiquiátrica através de uma ampla reformulação das nossas práticas e do modo de pensar saúde mental na Amazônia Ocidental. É urgente reformular nosso pensamento. Para tanto, já temos aprovada parcialmente nossa residência médica em Psiquiatria pela Comissão Nacional de Residência Médica. Nosso curso tecnológico para profissionais de nível médio está em vias de realização. Nossos trabalhos estarão sendo publicados ainda este ano. Mas de nada servirá se continuarmos colonizados em nosso pensamento. A região amazônica luta por uma sociedade sem manicômio e sem colonizador.
Se formos capazes de compreender nossas responsabilidades políticas individuais e coletivas, resta-nos o desafio de traduzi-las em novos modos de militância política e de intervenção na cultura. E, aqui, acreditamos que só uma convivência, compartilhada e inventiva, composta por usuários, familiares, técnicos, e quem vier, é capaz de promover a autonomia e a liberdade desejada, para que possamos criar novos saberes e fazeres como sujeitos desejantes e como cidadãos.

Manaus, 08 de julho de 2006.

Assinam técnicos do CAES (Clínica de Atenção e Estudos do Sujeito em Saúde Mental Familiar e Comunitária) e da Coordenação Estadual de Saúde Mental; e técnicos, familiares e usuários da Associação Chico Inácio, filiada à Rede Nacional Internúcleos da Luta Antimanicomial.

1. Nivya Valente
2. Márcio Melo
3. Sódia Matos Sobrinho
4. Jairo da Silva Ferreira
5. Francineide de Araújo Ribeiro
6. Antonio de Souza Araújo
7. Aderildo Guimarães
8. Marcos Antônio Duarte Aquino
9. Claudete de Paula Casanova
10. Luciano Casanova do Nascimento
11. Julio Matos Sobrinho
12. Inês Maria da Silva Ferreira
13. Maria de Fátima Nascimento da Silva
14. Eliana Uchôa Gomes de Lima
15. Maria Elina Nunes do Espírito Santo
16. Francinete Nunes do Espírito Santo
17. Cândida Gomes de Matos
18. Michell Pereira Alecrim
19. Josiane da Silva Ferreira
20. Cleobany Oliveira de Lima
21. Marivalda Ramiro Marinho
22. Julio Amorim dos Santos
23. Maria Vanda da Silva
24. Vanilce Maia Gonçalves
25. Maria Adelaide de Almeida Cruz
26. Nivaldo de Lima
27. Maristela Olazar
28. Waldiléya Rocha
29. Rosangela Barbosa
30. Aluísio Campos
31. Lourdes Siqueira
32. Janete Melo
33. Jaime Benarrós
34. Rogelio Casado Posted by Picasa

Um comentário:

Anônimo disse...

Convém salientar quando tratamos da luta pelo fim dos manicômios a questão dos hospitais de custódia ou manicomios judiciários. A lei prevê a substituição da pena, no caso dos inimputáveis por doença mental, pela medida de segurança. Se o crime for punível com pena de reclusão a medida a ser aplicada é a internação em hospital de custódia; se for punível com detenção a medida a ser aplicada é a de tratamento ambulatorial.
Com base nesta realidade, estou desenvolvendo um trabalho onde questiona-se, no que tange a medida de segurança, a possibilidade de substituição da internação em hospital de custódia por tratamento ambulatorial,mesmo quando o delito praticado é apenado com reclusão; onde o juiz determinaria conforme o caso a medida de segurança cabível, pois ater-se ao texto frio da lei pode levar o doente mental que tenha praticado um delito de relevância não significativa, porém punível com reclusão, aos horrores de um hospital de custódia, que sabe-se de longa data não passar de um depósito de loucos, condenando-o à segregação, à exclusão, à tortura.
Ao contrário, podendo o juiz optar pela medida cabível conforme o caso concreto, uma vez aplicado o tratamento ambulatorial, o doente, no convívio familiar e acompanhamento psiquiátrico poderá desenvolver suas potencialidades, pois o convívio com a família, e são os especialistas que dizem, é a melhor terapia para a sua reabilitação. Agindo dessa forma estaríamos mais próximos do ideal de justiça, no que tange aos doentes mentais. Aprofundando o tema, quebrando tabus, levo a discussão para o meio acadêmico, tendo em vista que a custódia em manicômio é realmente medida extrema e injusta para alguns doentes mentais, em vista de seu grau de periculosidade e do delito praticado, para outros agentes, embora inimputáveis, impõe-se medida mais rígida, cuja necessidade, como já se alertou, encontra fundamento no delito cometido e nas características de sua doença, porém em muitos casos poder-se-ia substituir a internação em hospital de custódia por tratamento ambulatorial como bem entende o professor João José Leal, vejamos:
Quando a pena prevista para o fato cometido for à de reclusão, e medida aplicável é a de internação em hospital de custódia; se a pena cominada for à de detenção, aplica-se a medida de tratamento ambulatorial. Vimos que este critério não é justo, sendo aconselhável que a lei deixasse ao prudente entendimento do juiz escolher entre a internação e o tratamento ambulatorial. (LEAL, 1991, p.497).
Para tanto percebe-se que a substituição da internação em hospital de custódia por tratamento ambulatorial se faz humanamente necessária em alguns casos e busca acima de tudo resguardar a dignidade da pessoa humana, pois o Direito não é uma ciência exata, e sim uma ciência humana e a preservação da dignidade do ser humano deve alicerçar os seus preceitos de justiça.Neste sentido trabalho e busco apoio, ideias, opiniões e material para a elaboração do meu trabalho. Qualquer colaboração será bem vinda.
Sidnei Tamanini
tamanini.sid@estadao.com.br