novembro 05, 2006

Virgílio de Mattos: Crime e psiquiatria




















Nota: Crime e Psiquiatria: uma saída - Preliminares para a desconstrução das medidas de segurança, de Virgílio de Mattos, será lançado em Belo Horizonte nesta segunda-feira, dia 6 de novembro, na Escola Superior Dom Helder Câmara. O Convite é da Editora Revan e do Grupo de Estudos sobre Violência, Criminalidade e Direitos Humanos.

Medida de segurança é um instrumento jurídico utilizado nos casos de indivíduos ininputáveis que cometeram um delito penal. O cumprimento da medida é feito, principalmente, nos Hospitais de Custódia e Tratamento Psiquiátrico. Costumam ter um caráter perpétuo. Em quase todo o país não há espaço para o assunto na pauta do debate público.

Quando dirigi esse tipo de instituição no Amazonas (até hoje em funcionamento, num anexo da Penitenciária Desembargador Vidal Pessoa), encontrei um homem recolhido ao presídio com uma pena de 14 anos de reclusão por homicídio, a quem sobreveio doença mental no curso da prisão. Transferido para o Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico (HCTP), beirava os 10 anos de reclusão sem que o tratamento oferecido tivesse trazido algum tipo de benefício. Com a instituição de medida de segurança - uma vez afastado o direito de progressão de regime - seu caso assumia ares de perpetuidade. Iniciamos a revisão do processo, tão logo foi estabelecido uma nova terapêutica. Ao ganhar a liberdade - soube um ano depois de ter deixado o cargo - nosso personagem retornou ao HCTP pedindo para ficar: não havia quem o acolhesse e a fome ameaçava-lhe a vida.

Para compreensão do tema, leia o artigo de autoria da jurista Lara Gomides de Souza (http://www.lfg.com.br/public_html/article.php?story=20060809115009620). Depois desse aperitivo, peça um exemplar do livro de Virgílio de Mattos e vislumbre uma saída para a relação entre crime e psiquiatria através de idéias preliminares na desconstrução das medidas de segurança, assunto que o livro não pretende esgotar.


O Caráter Perpétuo das Medidas de Segurança
09/08/2006 - 11:50

Autor: Lara Gomides de Souza

Medida de segurança é o tratamento aplicado àqueles indivíduos inimputáveis que cometem um delito penal. A questão, no entanto, é envolta pelo problema da definição do tempo de duração desta medida. A lei diz que será por prazo indeterminado, até que perdure a periculosidade. Mas cabe a nós tentar completar os espaços em branco deixados pelo legislador.

Pelo sistema dualista, pode-se afirmar que coexistem duas modalidades de sanção penal: pena e medida de segurança. René Ariel Dotti traça as maiores distinções entre os dois institutos. Vejamos: a pena pressupõe culpabilidade; a medida de segurança, periculosidade. A pena tem seus limites mínimo e máximo predeterminados (CP, arts. 53, 54, 55, 58 e 75); a medida de segurança tem um prazo mínimo de 1 (um) a 3 (três) anos, porém o máximo da duração é indeterminado, perdurando a sua aplicação enquanto não for averiguada a cessação da periculosidade (CP, art. 97, §1º).

A pena exige a individualização, atendendo às condições pessoais do agente e às circunstâncias do fato (CP, arts. 59 e 60); a medida de segurança é generalizada à situação de periculosidade do agente, limitando-se a duas únicas espécies (internação e tratamento ambulatorial), conforme determinado pelo art. 96 do Código Penal. A pena quer retribuir e o mal causado e prevenir outro futuro; as medidas de segurança são meramente preventivas. A pena é aplicada aos imputáveis e semi-imputáveis; a medida de segurança não se aplica aos imputáveis. A pena não previne, não cura, não defende, não trata, não ressocializa, não reabilita: apenas pune o agente.

Apesar de tantas diferenças, é indispensável ressaltar que, nas palavras do iminente doutrinador Luiz Flávio Gomes, as medidas de segurança são tão aflitivas quanto as penas, razão porque assevera que o Estado não pode exercer seu ius puniendi eternamente, perpetuamente, sobre uma pessoa? Não há como negar que ambas restringem a liberdade do indivíduo e violam seus direitos fundamentais. Por este motivo é que ambas devem estar sujeitas às mesmas garantias e limites. Nesse rumo, é fácil concluir que o prazo indeterminado de duração das medidas de segurança vai de encontro à vedação constitucional à prisão perpétua.

O tema medida de segurança é tratado desde a Antigüidade. No início, as pessoas que apresentavam alguma deformidade mental eram tratadas como filhos do demônio, repudiadas pela sociedade, às vezes até mesmo mortas. O mundo evoluiu, mas ainda hoje o ordenamento brasileiro mantém o temor pelos inimputáveis, impondo-lhes uma pena que, para muitos, tem caráter perpétuo, mantendo-o para sempre afastado da vida em sociedade.

A medida de segurança não tem finalidade punitiva, mas sim, curativa e de reintegração do indivíduo na sociedade. O problema levantado por muitos é que nossos hospitais e casas especializadas, na grande maioria, não estão preparados para oferecer esse tipo de serviço. Por inúmeras vezes vemos os jornais noticiando casos de total desprezo pelos doentes, um tratamento que fica muito aquém do mínimo necessário para uma vida digna.

O tema toca não só o aspecto social da questão, mas também viola princípios básicos e basilares de nosso sistema jurídico, contrariando o próprio Estado Democrático de Direito, a dignidade e até mesmo a condição de ser humano. Ao se tentar impor permanência perpétua de uma pessoa junto a um manicômio judiciário, esquece-se que, mesmo sendo doente mental, não se deixa de ser pessoa humana, tendo, portanto, os mesmos direitos que qualquer um de nós nos orgulhamos em ter, mesmo que não saibamos defende-los na maioria das vezes.

Ao contrário do que muitos imaginam, a enfermidade mental pode ser controlada com remédios e tratamento terapêutico adequado, sendo esta circunstância inteiramente capaz de propiciar ao doente a plena convivência em sociedade, ao lado de sua família. A incompetência estatal, que na maioria das vezes, se não sempre, não é capaz de curar o paciente, não pode, de modo algum, contribuir com o cerceamento da liberdade dos particulares, devendo o Estado, ao contrário, privilegiar o retorno dessas pessoas ao convívio social.

Nunca é demais registrar que o problema criminal, carcerário, bem como aquele referente à reintrodução do infrator na sociedade é, antes de tudo, um problema social que, como tal, merece ser tratado. Isso também quer dizer que nós, como membros de uma sociedade, temos responsabilidade e devemos nos preocupar com isso.

Não é deixando o doente à margem da sociedade que conseguiremos ressocializá-lo. Ele sequer foi um dia socializado. Por esta razão, deve o Estado dispor dos meios que possibilitem ao agente enfermo se reintegrar à sociedade, sob pena de não se prestigiar os mais básicos princípios e conceitos que regem o nosso direito e a própria finalidade da medida de segurança.

A nosso ver, afastar para sempre um ser humano do meio social e do convívio familiar parece medida simplista e sem a menor razoabilidade que não pode, de forma alguma, ser admitida por nós juristas. O doente mental, como qualquer outra pessoa, tem direito a tratamento digno e reintegrativo por parte do Estado, sendo que a sentença absolutória imprópria que lhe é aplicada não pode condená-lo a viver perpetuamente num circo de horrores, como será demonstrado que são os manicômios jurídicos, sem o mínimo de dignidade e esperança no amanhã.

Parece perfeitamente possível afirmar que as medidas de segurança também não poderiam ultrapassar o prazo de 30 anos de duração. Mesmo porque, se o que se busca com a internação é o tratamento e a cura, ou recuperação do internado e não sua punição, 30 anos é um prazo bastante razoável para se conseguir esse fim. O caso mais famoso e assombroso no Brasil é, sem sombra de dúvida, o do Índio Febrônio do Brasil, que ficou 57 anos num hospital de custódia no Rio de Janeiro. Lá entrou com 27 e morreu com 84 anos, prazo que cumpriu integralmente dentro do hospital, sendo submetido à medida de segurança.

Filiamo-nos à corrente minoritária até então, que vê no prazo indeterminado para duração da medida provisória inconstitucionalidade latente, haja vista ferir inúmeros direitos e garantias fundamentais, dentre eles:

Direito à igualdade. A discriminação entre imputável e inimputável, impossibilitando este de saber o limite máximo de intervenção estatal sobre sua liberdade, é circunstância a ser repudiada, sobretudo porque afronta a isonomia entre pessoas que merecem pleno conhecimento acerca dos castigos que lhes são aplicados pelo Estado. Se para um (imputável) é dado ciência do limite temporal de atuação do Estado sobre sua liberdade, parece evidente que ao outro (inimputável) também se faz necessária esta garantia. Analise-se, por exemplo, que, ao imputável que praticar o crime mais grave do Código Penal, a pena que lhe será aplicada terá um limite máximo de cumprimento equivalente a trinta anos e, ao inimputável que praticar o crime menos grave da legislação penal, será passível de cumprir uma sanção perpétua, uma vez que não há limite máximo legal da execução da medida de segurança;

Direito à humanidade ou à humanização. É incontestável que a medida de segurança, quando de sua aplicação e execução, deve primar pelo respeito da pessoa humana, proporcionando ao indivíduo que se encontra segregado a possibilidade de retorno ao meio social do qual foi retirado para tratamento e recuperação. Nenhuma sociedade ou legislação moderna pode concordar com a possibilidade de se submeter um indivíduo a um mal tão grande, a ponto de privar totalmente suas chances de reinserção à sociedade. Violar o conteúdo do princípio da humanidade, quando da aplicação e execução das medidas de segurança, é como negar a própria condição humana a pessoas que, paradoxalmente, foram absolvidas do ilícito que cometeram;

Direito à dignidade da pessoa humana. O princípio da dignidade humana exige que as autoridades competentes confiram ao doente mental delinqüente condições mínimas de tratamento, tais como a salubridade do ambiente, a presença de profissionais habilitados, a individualização na execução da medida de segurança e a transmissão de valores necessários à convivência em sociedade. Manicômios desaparelhados, sem estrutura física e humana, configuram verdadeiros depósitos de uma parte da população menos favorecida que, invariavelmente, sofre nas mãos do Estado o inaceitável desrespeito à sua condição de ser humano.

É certo que alguns países já admitem expressamente o princípio da legalidade e impõe limites a duração da medida de segurança, assim como a Espanha, Portugal e Alemanha. Diante deste quadro, só nos resta propor uma limitação e determinação do prazo de duração da medida de segurança. Para o agente inimputável que cometer um ilícito-típico e haja certeza da periculosidade, este será submetido a uma medida de segurança que não poderá ultrapassar a pena máxima prevista em lei. Assim, se o inimputável cometer um homicídio simples, será submetido a uma internação no Hospital de Custódia e Tratamento Psiquiátrico que não poderá ser superior a 20 anos.

No entanto, se se tratar de semi-imputável que na sentença recebei uma pena substituída por medida de segurança, o máximo que poderá perdurar a medida é a pena substituída, porque nesta pena já está reconhecida a intervenção máxima do Estado. Destarte, se o semi-imputável recebeu uma pena de 05 (cinco) anos e 04 (quatro) meses pela prática de um crime de roubo qualificado, o tratamento não poderá ser superior à pena tributada.

Assim também, se no curso da execução da pena houver a substituição por medida de segurança, a duração desta está limitada a pena imposta da sentença condenatória transitada em julgado, em respeito à coisa julgada, descontando-se o período de resgate da pena. Nesse sentido, se lhe foi imposta uma pena de 06 (seis) anos, estando o sentenciado em cumprimento de pena, tendo já resgatado dois anos da referida sanção, somente poderá ser submetido a uma medida de segurança pelo prazo de 04 (quatro) anos. Posted by Picasa

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