fevereiro 10, 2007

Galvez, a gente se vê por aí!
























Cartaz de Elifas Andreato para a montagem de "Qualé, meu?" (1980)

GALVEZ, A GENTE SE VÊ POR AÍ!

Por Jair Alves - dramaturgo/SP

CURIOSA, se não fosse preocupante a decisão de a TV Globo adquirir os direitos do romance histórico 'Galvez, o Imperador do Acre', do escritor Marcio Souza. A emissora, no entanto, optou por um escritor menor, e por uma adaptadora ainda menor. Essa escolha resultou, como todos sabem, na minissérie Amazônia, em exibição nos dias de hoje. Começamos a entender o caso com a constatação de que tudo o que não interessa a Globo é que o conteúdo de Galvez, Imperador do Acre, venha a ser conhecido. Mas não é só isso.

PARA QUEM TEVE PACIÊNCIA de acompanhar par e passo os capítulos da minissérie percebeu que a ficção de Glória Perez acaba tendo mais destaque do que a história que, no subtítulo da obra, a TV Globo promete contar. O título Amazônia - de Galvez a Chico Mendes não corresponde à verdade histórica, nem de longe. Está mais próximo de "de Galvez a Chico Mendes, segundo a piração de Gloria Perez". Abundam absurdos lingüísticos, onde a aristocracia metida à besta usa expressões, na segunda pessoa do singular, tais como "tu queres o meu amor" com "deixa comigo", na boca dos filhos abastados dos coronéis. Mas isso não é tudo - TEM MAIS.

EM UMA CENA DO CAPÍTULO do dia 08 de fevereiro, a certa altura, os coronéis da borracha, preocupados com o andamento da "revolução" e da tramóia, envolvendo o governo federal e a Bolívia, um deles diz mais ou menos o seguinte "a exportação da borracha vai ser muito mais importante para todos nós, principalmente com a indústria automobilística". SANTO DEUS!!!! Como é sabido, basta ler em qualquer livro de história que o presidente Campos Salles e o presidente do Estado Silvério Nery governaram o Brasil e o Amazonas, respectivamente, de 1899 a 1903. Ambos são citados várias vezes nas conversas, inclusive com inserção direta da história contada pela Globo. Ora, apesar de Henry Ford ter se interessado pelo motor a explosão, desde o final do século XIX, somente em 16 de junho de 1903, foi criada a Ford Motor Company que passou a produzir em série, conhecido como taylorismo. Como o insignificante personagem da minissérie veio a conhecer tão importante notícia que iria provocar tamanho aumento nas exportações de látex? PELA INTERNET?

MAS A TV GLOBO, como diria Latino "não estou nem aí". Eles perdem a vergonha, mas não a piada. Se colarmos essa gafe aos resultados do conhecimento dos alunos de primeiro e segundo graus SAEB (Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica), amplamente divulgados no mesmo dia em que o capítulo foi ao ar, a situação não nos parece assim tão engraçada, e sim trágica. E vejam vocês que a TV Globo, através de um de seus programas, pretende alfabetizar o Brasil, com ensino a distância pela TV Futura. MAS TEM MAIS AINDA.

DESDE OS GREGOS, o protagonista geralmente é o personagem mais destacado da trama. Os demais, muitas vezes pelas circunstâncias, acabam tendo grande importância, porém a fabula contada sempre tem como enfoque o destino do personagem central. A saber: Édipo; Medeia; Antígone; Gimba (Guarnieri); Papa Higuirte (Vianinha), e outros mais modernos. Na minissérie, curiosamente, o coronel Firmino (José de Abreu) tem mais inserções do que o papel-título, o de Galvez (José Wilker). A ficção, ou piração de Gloria Perez é mais importante do que a história de Galvez, que na obra é tratado como se fosse um inveterado mulherengo, sem vergonha alguma, ao passo que o coronel Firmino, apesar de ter um filho fora do casamento, não permite que sua cunhada e mulher dêem um passo em falso, do contrário ambas vão terminar seus dias num convento, enclausuradas. O que interessa para Globo, o que nos parece ser, é o show, o que pode servir como elemento de indução ao momento presente, não importando se isso tem a ver com a verdade histórica ou não. Esse mote, aliás, foi uma escolha desde a muito. Em outras minisséries, que esse humilde escriba não teve paciência para ver e apreciar, o mesmo crime contra a educação nacional também se manifestou. O que é mais do que evidente é que isso serve para os interesses da Globo, não é necessariamente o que a maioria da população quer e precisa conhecer. O compromisso com a informação, o jornalismo sério, deu lugar ao projeto político imediato, e este é inquestionável, vide as últimas trapalhadas em que a emissora se meteu. Com essa amostragem dá pra prever os problemas que vamos ter, quando chegarmos aos tempos de Chico Mendes. Tremo nas calças, mas com muitos personagens ainda estão vivos para contestar os descalabros, morro de expectativa...
Mas a realidade, essa sim, é dinâmica e apresenta contradições deliciosas. No caso, duas envolvendo o ator José de Abreu.

NA REALIDADE: Pouca gente sabe que o ator Jose de Abreu é oriundo do movimento estudantil de 68, foi segurança, naquela oportunidade, do nada menos ex-ministro José Dirceu. A história registra uma foto, na primeira página de o Estadão: José de Abreu de joelhos, sendo preso pelos agentes do DOPS. Também naquela época, José de Abreu figurava entre os atores do espetáculo O&A do TUCA, conhecido grupo, pensado e dirigido pelos então estudantes revolucionários da AP; hoje, na sua maioria, adeptos do PSDB. José de Abreu militava na Dissidência (mesma corrente de Dirceu e Vladimir Palmeira). No período de abertura trabalhamos com José de Abreu, na montagem QUALÉ MEU (1980) que pretendia contribuir historicamente para esclarecer os acontecimentos trágicos dos governos militares. Originalmente, seria uma adaptação do livro O que é Isso companheiro, mas o seu autor resolveu cair fora e vender os direitos para o cinema. Deu no que deu. Sem comentários. Escrevemos a quatro mãos nossas memórias e de amigos e companheiros do passado ainda recente. Da montagem também participou Ecila Pedroso, apenas como atriz, hoje novelista da Globo. BONS TEMPOS AQUELES. O artista gráfico Elifas Andreato imortalizou essa montagem em mais um cartaz, anexado a este texto.

NA FICÇÃO: Nos capítulos anteriores o personagem Firmino, interpretado por José de Abreu, numa conversa com um dos filhos tenta convencê-lo (numa boa) voltar a estudar em Paris. O filho argumenta que prefere o seringal, onde se dá bem, e que "afinal vou tomar conta mesmo". Firmino retruca, dizendo que é importante o estudo porque se ele, Firmino, tivesse estudado teria ido mais longe. O filho, então, contesta novamente "se a escola é tão importante, pai, porque o senhor não deixa criar uma aqui?" Ele arremata, "escola para seringueiro é problema a vista. Vai ficar assim mesmo, e ponto final. Você vai para Paris querendo ou não".

ESSA INSERÇÃO CÊNICA que a princípio poderia ser considerada semente de insatisfação, uma contribuição ao mundo civilizado, se perde nas inúmeras contradições da minissérie que reforça o conformismo e aceitação de uma produção mentirosa. Mesmo com exemplos de belas interpretações, a começar do próprio José de Abreu, a minissérie despreza a cultura, as artes, a história e a inteligência. Posted by Picasa

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