fevereiro 24, 2007

"É pra esquentar a moringa"



















Em 2006, ultrapassamos mais de mil CAPS (Centro de Atenção Psicossocial) no Brasil. O estado do Amazonas contribuiu com modestíssimos números: três. O primeiro surgiu em Parintins (baixo Amazonas), em dez/2005; o segundo em Tefé (médio Solimões), em mar/2006 e o terceiro em Manaus (Rio Negro), em mai/2006. Não houve festa, mas nossos corações e mentes ficaram menos pesados por ter se livrado de uma frase renitente em que o Amazonas aparecia como o único estado da federação sem CAPS, ainda que soubéssemos que divídiamos com estado irmão de Roraima essa vexatória condição. Explicando melhor: o CAPS de Roraima existia no papel, mas na prática não funcionava.

Os dois primeiros surgiram como iniciativa dos respectivos poderes municipais; o da capital amazonense, segundo palavras do governador do estado, surgiu de uma teimosia da Coordenação Estadual de Saúde, posto que desde 2003 - quando finalmente a municipalização da saúde no município de Manaus foi pactuada e assinada pelo Prefeito Alfredo Nascimento, Governador Eduardo Braga e o Ministro da Saúde Humberto Costa -, pelo novo arcabouço jurídico, cabe ao poder municipal a oferta de cuidados em saúde mental, através da implantação de uma rede de CAPS.

Não precisa dizer que, considerando o tamanho da população amazonense, a cobertura de atenção à saúde mental é pra lá de baixa: é crítica.

Política de Saúde Mental

As diretrizes clínico-políticas estabelecidas pelo estado e pelo município, baseadas no dispositivo assistencial conhecido como CAPS, enfrentam várias dificuldades, entre elas: o abandono dos principais princípios da Reforma Psiquiátrica no Amazonas, nos anos 1990, reduzindo as ações de desinstitucionalização do portador de transtorno mental a uma vertente alienada que serviu para alimentar o discurso dos reformistas de araque, qual seja: a desospitalização dos usuários do único hospital psiquiátrico amazonense, sem suspeitarem de que essa instituição estava com o seu modelo vencido, e que outras demandas dos usuários continuariam sendo historicamente negadas. A bem da verdade, o próprio conceito seria desconhecido até o início do século XXI, razão porque não podia ser praticado.

A ausência da academia no debate e na formação de um novo perfil profissional, adequado às exigência do desafio civilizatório de por fim ao modelo baseado em hospitais psiquiátricos e seus ambulatórios de consulta - medicalizadores da dor humana - está por merecer uma análise crítica mais apurada, afinal cabe a ela a produção de novos saberes e fazeres. Passados os seis primeiros anos do século XXI, só recentemente as universidades amazonenses passaram a discutir o conceito de desinstitucionalização em alguns cursos universitários.

A passividade de inúmeras categorias que compõem o universo da saúde mental é outra acabrunhante evidência, na medida em que se abriu mão da construção de projetos coletivos, que tornasse cada ator envolvido em sujeitos de sua própria história. Não são desprezíveis os argumentos sussurrados nos corredores dos poucos serviços existentes na capital amazonense quanto ao temor de ser reprimido pelos prepostos do poder. O exemplo mais emblemático deu-se comigo mesmo: após a greve de fome que fiz em novembro de 1987, para chamar atenção da sociedade política e da sociedade civil sobre os rumos que tomariam a Reforma Psiquiátrica no Amazonas com a substitução de seus poucos militantes por agentes da psiquiatria conservadora, fui submetido ao ostracismo por exatos 16 anos, até minha reabilitação pelo governo Eduardo Braga, no bojo de um tardio Movimento Antimanicomial ("Antes tarde..."). A esta altura estava calejado por um outro fenômeno: o canibalismo provinciano praticado inter nolentes contra inter volentes. Sobrevivi a todos eles. Vale registrar que o quadro de passividade cedeu e a participação dos trabalhadores de saúde mental cresceu em importância.

Esperança

Se o Estado deu os primeiros passos para sair do atraso, recuperar sua própria história e a dos trabalhadores empenhados no avanço da Reforma Psiquiátrica no Amazonas, ainda estamos longe de uma posição mais confortável. É alentador a perspectiva do Amazonas ter sua Lei de Saúde Mental por decisão governamental, mas a substituição do Hospital Psiquiátrico por um Hospital de Clínicas, mantendo 20 leitos para atendimento de crises agudas, pode sofrer atraso no seu cronograma caso não tenhamos pelo menos mais três CAPS que desafoguem o sistema, amplie os serviços, de modo que tenhamos, de fato, uma rede de atenção diária à saúde mental. Evidentemente que se constitui num desafio a expansão das ações de saúde mental no interior do estado, seja através da implantação de CAPS, seja através de atenção básica no PSF.

Delicada é a posição do Município. Mesmo que o Prefeito queira implantar CAPS do tipo II, não há psiquiatras disponíveis na cidade. O Estado respondeu com a implantação da primeira Residência Médica em Psiquiatria. Em 10 anos, se a canoa não virar, teremos formado mais de 20 novos psiquiatras para a rede de serviços públicos. Porém, o que fazer a curto prazo?

A curto prazo o Município poderá fortalecer as equipes do PSF com profissionais de Saúde Mental, o que já estava sendo feito, reduzindo a concentração do atendimento nos dois serviços públicos do Estado. Entretanto, com o recente enxugamento do quadro de pessoal no Município essa ação sofreu um retrocesso. A solução mais criativa seria a criação de CAPS tipo I, com médicos com especialização em Saúde Mental, conforme estabelecido por portaria ministerial. Tais profissionais existem na cidade de Manaus, graças ao curso de especialização oferecido pela Fiocruz da Amazônia, que já formou duas turmas, entre eles alguns médicos.

Advertência

Aos apressadinhos que desejam me incompatibilizar com os chefes dos poderes públicos, trabalho em vão. Graças à retaliação que sofri ao enfrentar um movimento corporativista que me afastou do meu campo de trabalho, constitui algumas expressivas experiências em outros serviços públicos, tanto no estado como no município, o que me deu uma visão sistêmica da saúde pública, me livrando de uma outra praga provinciana: a divisão que opõe servidores estuduais a servidores municipais, velada ou abertamente. Gozo de um direito conquistado ao longo desses anos: o respeito destes homens públicos, seja pelo cuidado com que elaboro minhas crítica, seja pela disposição de apresentar soluções aos impasses que vivemos na invenção de um outro modelo de atenção em saúde mental.

História

Desde que os CAPS começaram a substituir o modelo de atenção em saúde mental no Brasil, que até a segunda metade dos anos 1980 era fortemente concentrado no modelo hospitalar - modelo que um dia chegou a dispor de um parque de 120 mil leitos -, atualmente restam ainda expressivos 40 mil leitos, cuja manutenção é ardorosamente defendida pela psiquiatria conservadora, por razões que têm menos a ver com princípios científicos, humanitários, ou coisa que o valha, do que a ameaça à contabilidade bancária que envolve os negócios da psiquiatria privada. Não se iluda com o aparente reducionismo da tese. A deles não têm sustentação científica. A nossa está em contínuo processo de construção.

A mídia abriu pauta para a manifestação da psiquiatria conservadora, como é desejável para o bem do debate público. Desse modo, a sociedade tomou conhecimento das críticas, pouco delas a merecer atenção, pelo que há de passionalidade; algumas a exigir reflexão. Inaceitável foi a surpreendente posição tomada pelo presidente da Associação Brasileira de Psiquiatria, que chegou a defender uma inusitada bandeira: zerar a Reforma Psiquiátrica. Não deu pé. Sua voz não expressa o pensamento e o desejo da maioria dos psiquiatras brasileiros. Ademais, cometeram um erro estratégico: centraram na figura de Pedro Gabriel Delgado, Coordenador Nacional de Saúde Mental, as críticas ao modelo de atenção à Saúde Mental baseado no território, nas ações comunitárias e na construção da cidadania, no tratamento que não se dissocia de reabilitação e inclusão social. Atingiram todos nós; atingiram um movimento social, do qual Pedro Gabriel é uma das suas lideranças.

Sinuca

Eis que na sexta-feira que antecedeu a quadra carnavalesca - para muitos uma autêntica sexta-feira gorda - o Presidente da República determinou o contingenciamento de 16 bilhões de reais do orçamento aprovado para 2007.

O ministério que sofreu o maior corte foi o da saúde, perdendo R$ 5,7 bilhões. Dos R$ 40,6 bilhões previstos para 2007, a nova receita será de somente 34,9 bilhões, R$ 585 milhões a menos do que 2006, ano em que a pasta recebeu R$ 35,4 bilhões.

A medida viola a Emenda Constitucional 29, que determina que o orçamento da Saúde não poderá ser menor que o do ano anterior, acrescido da variação do PIB (Produto Interno Bruto).

Que que é isso companheiro presidente? Assim queimamo-nos todos. Se os congressistas da base não reclamarem, "tamo pebado", como se diz aqui no Amazonas. Dê um sinal de que serão restabelecidos o valor orçamentado, pois caso contrário, se este quadro não mudar, como desenvolver as ações de saúde mental, para ficar apenas neste campo da saúde pública, com recursos reduzidos?

Aderildo Guimarães, presidente da Associação Chico Inácio - ong que atua na defesa dos direitos humanos dos portadores de transtorno mental em Manaus -, não compreende porque historicamente o setor saúde sempre leva a pior nos ajustes de orçamento: "É pra esquentar a moringa", declarou, decepcionado, com a decisão do governo federal. Posted by Picasa

Um comentário:

SO RE disse...

Olá amigo Rogélio,
A luta não se finda!
Belo artigo. Vou fazer um link na página psiscaini.multiply.com
Grande abraço,
Ita