maio 22, 2007

Movimento Pró-Limbo

Bento XVI

DEBATE ABERTO

Em defesa do Limbo

Após a decisão da Igreja de extinguir o Limbo, decidi fundar o Movimento dos Sem Limbo. Quem quiser me seguir, venha, estou preparando a ocupação da entrada do Inferno, onde plantarei a bandeira da Liberdade e do Bom Humor.
Flávio Aguiar


A abolição do Limbo pela Igreja Católica deixou-me profundamente preocupado. Sem dúvida, é a notícia mais importante para o novo milênio que se abre. Sim, porque é bom lembrar de novo (já fiz antes) a observacäo do meu saudoso amigo Eder Sader sobre a Apostólica Romana: “Flávio, eles pensam em milênios!”.

É que é para lá que eu queria ir. Eu garanto: em toda a eternidade, não há lugar melhor! Ao contrário do que pensa o cristianismo vulgar, o Limbo não é apenas uma creche para as crianças que não foram batizadas. Para lá vão também os que, sem serem cristäos (ou católicos, na versão vaticana), praticaram de algum modo as virtudes cristãs. Bem, nem sempre eu pratiquei as virtudes cristãs, é verdade, e muitas vezes, quando as pratiquei, não o fiz de modo muito cristão, de acordo com aquele preceito sertanejo citado por Guimarães Rosa, segundo o qual, “querer o bem com muita força, pode ser já estar querendo o mal, por principiar”. Mas acho que isso não me impediria de entrar no Limbo. Até porque quando a gente lê sobre a vida dos santos, na Legenda Áurea, de Giacomo de Varezze, a gente logo vê que santo e santa fortes são aqueles e aquelas que primeiro pecaram muito, e do melhor, e depois se cobriram de auréolas, nuvenzinhas e outros efeitos especiais.

No Limbo estão Aristóteles, Platão, Iracema (Peri não, porque foi batizado, o vira-casaca), Safo. Safo? Mas ela não pecava a mil? Pecava sim, era mui safada. Mas era poeta, e das melhores: e quem rouba as palavras à sua mera lista de enumeração certamente tem milênios de perdão.
No Limbo não tem essa de andar de camisola o dia inteiro, ouvindo canto gregoriano sem parar, e ainda ter de contemplar forçosamente o Criador, mesmo que isso dê torcicolo em quem tiver assento nas nuvenzinhas laterais. No Limbo a gente pode contemplar tranqüilamente a Criação, que é a melhor parte do Criador, pois se este, como este seu nome genérico (Criador) sugere, é a derivação de um Verbo (e no começo era ele, segundo São João Evangelista), o verbo criar, então a Criação é a conjugação do Criador em todas as pessoas, modos e tempos, e para honrá-lo a gente deve cuidar bem dela, a criada, e de nós, as criaturas, coisa que por aqui neste vale de risos e lágrimas ainda não aprendemos a fazer, veja-se o aquecimento global y otras cositas más. Aliás, muito más.

Como no Limbo se está fora da Eterna Vigilancia, e näo há anjo da guarda, garanto que de quando em quando se pode cometer um pecadilho atrás de alguma moita (certamente o Limbo é um jardim, pelo menos assim o descreveu Dante) que ninguém vai reparar, todos os demais ocupados em ouvir as conferencias de Sócrates, Catäo, Seneca, Plotino et caterva. Enfim, o Limbo é o que há. E agora querem dizer que ele näo há mais! Por cima do meu cadáver!, expressäo que, aliás, vem muito a calhar.

Limbo vem do latim limbus, que quer dizer, orla, rebordo. O Limbo, portanto, fica na periferia do Rincão da Vida Eterna, lá por onde o Diabo perdeu as botas. É verdade: Dante, na sua Divina Comédia, põe o Limbo logo na entrada do Inferno. O que é ótimo, porque, sabendo o caminho das pedras ensinado pelo poeta, logo a gente poderá passar alguns momentos na companhia de madame Bovary, Capitu, Salomé (uau!). E depois voltar tranquilamente ao Limbo, assobiando como se nada tivesse acontecido.

Como o Purgatório, o Limbo, embora mencionado antes, é uma instituição medieval. É que nesse período a vida cristã se desdobrou muito, e o espaço onde ela crescia (sobretudo a Europa) também. As classes cresciam e se multiplicavam, as viagens, as integrações e desintegrações, as reformas e revoltas, havia cismas, vaivens, recuperava-se fora dos mosteiros a vida da Antigüidade, uma confusão. Fornicava-se e engravidava-se muito nas cidades que cresciam espantosamente, algumas passando das dez mil almas... e corpos! A Igreja viu-se na contingência de multiplicar seus espaços, para atender tanta gente, tanta demanda, tanta lei da oferta e da procura, tanta deserção e arrependimento. O Limbo cresceu em importância, pois, nesse arco de “democratização” da Vida Eterna, onde passava a ser necessário erguer novos condomínios para os remediados, não só os aristocratas da bem-aventurança ou os burgueses muito enriquecidos que podiam comprar indulgências plenárias. E depois, com o avanço do cristianismo mercantil, quero dizer, do capitalismo mercantil, era necessário ter uma resposta para as crianças índias e escravas que morriam às pencas sem batismo.

Agora, neste século XXI em abertura, fechar o Limbo e remeter as criancinhas diretamente para as vistas do Criador (até agora nem menção aos outros, os Aristóteles da vida, gente que inspirou diretamente virtuoses da teologia, como Tomás de Aquino) é fazer a Igreja fechar-se mais sobre si mesma, encorpando a doutrina, como quer Bento XVI, em detrimento das vistas largas que vão até os horizontes do desconhecido – que são a melhor maneira de honrar a Criação e seu senso de Mistério. É, portanto, um movimento reacionário. É querer transformar a “Divina Comédia”, de Dante, includente, abrangente, enfim, numa Divina Tragédia, na verdade excludente, limitadora, é disfarçadamente exigir carteirinha para quem quiser ficar numa boa, ou apenas numa não tão ruim.

Por isso, estou fundando o Movimento dos Sem Limbo. Quem quiser me seguir, venha, estou preparando a ocupação da entrada do Inferno, onde plantarei a bandeira da Liberdade e do Bom Humor, coisas que andam meio esquecidas lá pras bandas da Santa Sé.

Flávio Aguiar é editor-chefe da Carta Maior.
NOTA: Publicado pela Agência Carta Maior.

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