setembro 20, 2007

Pela substituição do Hospital Psiquiátrico por um Hospital de Clínicas (II)

O limite urbano da cidade de Manaus, nos anos 1960, tinha como referência o Boulevard Amazonas. O Hospital Psiquiátrico Eduardo Ribeiro estava situado fora dele. Mandava a tradição que o lugar ocupado pelos manicômios ficasse fora do olhar da urbe. A população manaura passava pouco mais dos 300 mil habitantes. Número razoável para qualquer cidade que queira manter bons padrões de qualidade de vida. Naquele tempo, pobres e ricos, tinham assegurados um lazer de excelente qualidade através de uma rede de igarapés de água gelada e paisagens aprazíveis. Nas próximas décadas, Manaus jamais conseguiria o mesmo padrão. Com o triunfo da civilização do automóvel, acabaria o sossego dos amazonenses que moravam na capital. Com a ocupação do centro da cidade pelo comércio da Zona Franca de Manaus, foram desfeitas as comunidades organizadas em torno de suas paróquias (São Sebastião, N. S. da Conceição, N. S. dos Remédios, Dom Bosco). Mas não foi só a organização do lazer que sofreu com a degradação imposta à Cidade Sorriso. A qualidade da atenção em saúde mental que já era ruim, despencou de vez. Entretanto, os anos 1980 foram marcados por um período que encheu de esperanças técnicos de sáude mental, familiares e usuários do único hospital psiquiátrico existente em Manaus. Ah, urucubaca! O projeto seria abortado numa época em que o populismo político tomou conta do estado por todo os anos 1990. Aqui vale um esclarecimento quanto a um bochicho que tá rolando na cidade, a de que as mal-traçadas aqui escritas têm um contéudo anti-Serafim (prefeito de Manaus). Ledo e ivo engano. Sou anti-Negão; se o Negão voltar, voto de novo no Serafim. Ocorre que esse velho mentaleiro não pode silenciar sobre o estado da arte no campo da saúde mental. Enquanto não for implantada uma rede de CAPS (Centro de Atenção Psicossocial) - modelo que substitui o Hospital Psiquiátrico - os trabalhadores de saúde mental de um dos dois principais serviços existentes no SUS continuarão a ser agredidos por uma população insatisfeita . Não são poucos os que procuram por atendimento. Muitas vezes chegam de madrugada no velho casarão da Constantino Nery para receber cuidados precários. Dada a insuficência de recursos humanos e da total incapacidade de responder às demandas de uma população de quase 2 milhões de habitantes é fácil deduzir que todo dia tem alteração de humor, com justa razão. Pior é quando rola agressão. Minha solidariedade aos companheiros agredidos. Há pouco tempo uma colega teve seu braço fraturado, por ocasião da agressão de um usuário aborrecido por não ter sua demanda satisfeita. Outras agressões sem dolo aconteceram. Ninguém merece. É urgente a implantação de novos CAPS em Manaus, que até a presente data só conta com o que você vê no mapa, graças à teimosia da Coordenação do Programa Estadual de Saúde Mental, pela qual respondi de 2003 até o primeiro trimestre de 2007. A propósito, feito esses esclarecimentos, leia o texto que elaborei, com minha equipe, para a Política Estadual de Saúde Mental (quadriênio 2003-2007). Depois faça suas contas e diga quantos CAPS precisam as zonas Norte, Sul, Leste e Oeste da cidade de Manaus? Um doce de cupuaçu japonês para quem se aproximar do número real. Atenção: o texto é datado de 2003. Muita água rolou de lá para cá. Inté! Tô saindo pra comprar uma cerca de jurubeba, uai!


Política Estadual de Saúde Mental do Amazonas

Introdução

Até a presente data, reproduzindo tendência de muitas partes do mundo, os transtornos mentais não tiveram a mesma importância dada à saúde física no Estado do Amazonas. Programas de saúde mental são ignorados em todos os 62 municípios amazonenses.

Com a primeira fase da Reforma Psiquiátrica amazonense, construída a partir do início de 1980, o primeiro Programa Estadual de Saúde Mental, só surgiria na segunda metade dos anos 80 do século XX, ficando circunscrito ao município de Manaus, onde estão situados os parcos serviços de saúde pública para patologias mentais.

Ainda hoje, pessoas com transtorno mental têm como referência, no âmbito do SUS, os seguintes serviços: o Centro Psiquiátrico Eduardo Ribeiro, fundado em 1896, com 120 leitos, que dispõe de um serviço de emergência, criado em 1985, para internações de pessoas em crise aguda, que não excede 72 horas, onde são realizados mais de 800 atendimentos por mês, e um ambulatório onde circulam, mensalmente, cerca de 1400 pessoas; além desses serviços, a cidade de Manaus tem um ambulatório de especialidades – entre elas, saúde mental – que recebe mais de 1500 pessoas para tratamento de transtornos mentais. Em ambos os serviços ambulatoriais há filas de espera.

Embora a Reforma Psiquiátrica amazonense tenha impedido a criação de novos leitos psiquiátricos, invertendo a relação internação psiquiátrica / exclusão social, com a despolitização do social no decorrer dos anos 90, acabou-se por institucionalizar um modelo fortemente hospitalocêntrico: por um lado, mantinha-se o controle das internações desnecessárias através de um serviço de emergência – recurso assistencial nascido para combater as deformações da psiquiatria privada; e, por outro lado, a ingênua eficiência do “bom” ambulatório, cujo potencial iatrogênico acaba encoberto pela via da oferta de benefícios. Essas novas formas de controle técnico-administrativo tiveram como seus críticos, entre outros, o psicanalista Benilton Bezerra Jr. e o psiquiatra Pedro Gabriel Delgado.

Apesar de revertermos a ideologia do isolamento do doente mental, o novo tipo de contrato com a população atendida, tal como proposta pela Reforma Psiquiátrica brasileira ao assumir o lema “Por uma sociedade sem manicômios”, foi frustrada no Amazonas não mais pela acolhida passiva dos doentes, mas porque o novo papel social dos técnicos em saúde mental foi negligenciado ao deixar de receber investimentos por um outro tipo de formação que os novos tempos continuam requerendo.

Os fundamentos da clínica antimanicomial, por exemplo, tal como proposta por Ana Marta Lobosque e Miriam Abou-Yd, ainda não fazem parte do processo de formação dos trabalhadores de saúde mental no território amazonense. Além da agilidade teórica e do delicado manejo da prática proporcionada pela clínica antimanicomial, para o avanço da Reforma Psiquiátrica no Amazonas deve-se agregar a Reabilitação Psicossocial, tal como defende a psiquiatra Ana Maria Fernandes Pitta, que ocupou a Secretaria Nacional para o Brasil da Associação Mundial para Reabilitação Psicossocial, como um programa eticamente responsável, como “uma estratégia, uma vontade política, uma modalidade compreensiva, complexa e delicada de cuidados para pessoas vulneráveis aos modos de sociabilidade habituais que necessitam cuidados igualmente complexos e delicados”.

Nos últimos 16 anos, o Estado do Amazonas – hoje com uma população de 2.961.804 habitantes – não fez nenhum investimento na construção de uma rede de serviços de atenção diária às pessoas com transtorno mental, tampouco os técnicos em saúde mental receberam qualquer tipo de capacitação que os habilitassem a atuar nos serviços substitutivos à dobradinha hospital psiquiátrico-ambulatório, conforme definem as portarias ministeriais desde o início dos anos 90. Serviços substitutivos ao hospital psiquiátrico inexistem em todo o Estado do Amazonas.

Segundo o Relatório sobre a saúde no mundo – 2001, da OPAS/OMS, hoje, cerca de 450 milhões de pessoas sofrem transtornos mentais. Uma pequena minoria recebe tratamento básico. Nos países em desenvolvimento, o provimento de cuidados aos transtornos provocados pela depressão, demência, esquizofrenia e dependência de álcool e outras drogas é tarefa das famílias, sendo seus principais cuidadores mulheres obrigadas a abrir mão de seus projetos de vida devida a uma injusta naturalização da divisão de cuidados entre o Estado e as famílias.

Os transtornos mentais, que já representam quatro das dez principais causas de incapacitação em todo o mundo, tendem a aumentar com o envelhecimento da população, o agravamento dos problemas sociais e as inquietações civis dela decorrente. Os prejuízos econômicos advindos da incapacidade que se abate sobre as pessoas com transtornos mentais podem ser estimados, já o custo do sofrimento humano é incalculável.

Para a OPAS/OMS, os transtornos mentais e neurológicos até 2000 responderam por 12% do total de anos de vida ajustados por incapacitação, mas a dotação orçamentária para a saúde mental na maioria dos países representam menos de 1% dos seus gastos totais em saúde. Essa desproporção é visível em 40% de países que carecem de políticas de saúde mental. Outros 30% sequer têm programas nessa esfera. Crianças e adolescentes estão fora das políticas de saúde mental em 90% dos países.Ainda segundo a OPAS/OMS, os transtornos mentais e comportamentais afetam 20-25% de todas as pessoas em dado momento durante a sua vida. Com base nesse cálculo, projeta-se que, até 2020, a carga dessas doenças terá crescido para 15%. Atualmente, uma pequena minoria delas recebe tratamento adequado.

A evidência científica moderna indica que transtornos mentais e comportamentais resultam da interação entre fatores biológicos, psicológicos e sociais. Se, para além da falta de dinheiro, entendermos a pobreza como a falta de recursos sociais ou educacionais, teremos uma complexa e multidimensional relação entre esse tipo de privação e a saúde mental. Como a pobreza está inevitavelmente associada ao desemprego, baixo nível de instrução e desabrigo, são entre os pobres e os desfavorecidos de um modo geral que encontramos a maior prevalência de transtornos mentais e comportamentais, inclusive transtorno do uso de substâncias.

Já não há mais dúvidas de que a progressão dos transtornos mentais e comportamentais é determinada pelo status socioeconômico. Aliado a isso, alguns grupos socioeconômicos não têm acesso aos poucos serviços de atenção à saúde mental.

O risco de transtornos mentais e comportamentais entre mulheres na sociedade atual é maior do que outras pessoas na comunidade, independente do grupo socioeconômico. Além dos múltiplos papéis domésticos, transformam-se cada vez mais numa parte essencial da mão-de-obra, constituindo-se, de um quarto a um terço das famílias, a principal fonte de renda.

Eis alguns dados estatísticos da realidade enfrentada pelas mulheres no Brasil e na América Latina:

* 41,4% da população economicamente ativa são mulheres.
Fonte: IBGE 1999

* 26% das famílias são chefiadas por mulheres, ou seja, 1 em cada 4 famílias é chefiada por uma mulher.
Fonte: IBGE 2000

* No mundo, a cada cinco dias de falta da mulher ao trabalho, um é decorrente de violência sofrida no lar.
Fonte: Relatório Nacional Brasileiro (CEDAW)

* Na América Latina e no Caribe, a violência doméstica incide sobre 25% a 50% das mulheres.
Fonte: Relatório Nacional Brasileiro (CEDAW)

* No Brasil, uma entre quatro mulheres é vítima de violência doméstica. Mesmo assim, apenas 2% das queixas desse tipo de violência resultam em punição.
Fonte: Advocacia em defesa da mulher vítima de violência

* No Brasil, a cada 15 segundos uma mulher sofre violência, seja ela física, sexual ou psicológica; 70% dos casos acontecem dentro de casa, sendo que, a cada 4 minutos, uma mulher sofre violência.
Fonte: Fundação Perseu Abramo

* O Brasil deixa de aumentar em 10% o PIB em decorrência da violência contra a mulher.
Fonte: ONU e IDH

Um outro exemplo de violência e violação dos direitos fundamentais está representando pelo índice de homicídios devido a orientação sexual da vítima. Das 67 pessoas assassinadas, de uma série histórica que vai de outubro de 1983 a janeiro de 2003, 51 eram gays (76,12%), 15 travestis (22,39%) e 01 (1,49%) lésbica, o que faz do Amazonas em números relativos um dos estados com o maior índice de homofobia do país.
Fonte: AAGLT – Associação Amazonense de Gays, Lésbicas e Travestis

O segmento populacional representando por crianças e adolescentes, vítima de diferentes tipos de acidentes e de violências imposta por maus tratos físicos, abuso sexual e psicológico, negligência e abandono, bem como exploração do trabalho, exploração sexual e tentativas de suicídio, ainda hoje carece de uma rede de atendimento psicossocial e médico à altura dos principais desafios compreendidos pelos transtornos do desenvolvimento psicológico e pelos transtornos de comportamento e emocionais. Essa situação vem sendo agravada pela falta de orientação adequada no âmbito da escola e dos serviços de saúde, carentes de profissionais habilitados para a abordagem dos problemas da infância e da adolescência, associada à negligência do Estado quanto a oferta de uma rede de atenção diária à saúde mental desse segmento.

A ausência de escuta, cuidados e atenção às vítimas do abuso e exploração sexual infanto-juvenil, bem como dos seus agressores, através de uma rede de Centros de Atenção para os problemas psicossociais decorrentes da violência, limitam esforços da prevenção ao campo da educação e da repressão. O Estado do Amazonas e a cidade de Manaus se destacam, respectivamente, como 10º. e 4º. colocado, entre os denunciados no período de Fevereiro de 1997 a Janeiro de 2003.
Fonte: Associação Brasileira de Proteção à Infância e Adolescência.

O retardo mental que impõe uma pesada carga aos indivíduos e à família – principal responsável pelo provimento de cuidados – representa um ônus que perdura por toda a vida. Acredita-se que a prevalência varia de 1 a 3% dos retardos mentais de um modo geral, sendo 0,3 a taxa correspondente ao retardo moderado, grave e profundo, para os quais os serviços existentes no Estado, além de precários, dependem mais da filantropia do que de uma Política de Estado.

Se considerarmos a prevalência geral de transtornos mentais e comportamentais em crianças e adolescentes, que, de acordo com dados epidemiológicos internacionais giram em torno de 10 a 20% desses segmentos, para uma população de 1.507.969 entre 0 e 19 anos, na variação mais baixa, acima de 150 mil seres humanos dessa faixa etária necessitam de cuidados no campo da saúde mental, e entre os 352.375 adolescentes, de 15 a 19 anos, mais de 35 mil estão sujeitos a transtornos mentais, o que reforça a importância da criação dos CAPSi, já que 50% dos transtornos produzem incapacidade permanente.

Os mais recentes estudos epidemiológicos internacionais demonstram que doenças mentais surgem mais precocemente do que se julgava. No caso das fobias, o risco situa-se entre os 10 a 14 anos; a esquizofrenia, uma dos transtornos mentais mais incapacitantes, surgem na faixa entre 15 e 24 anos; e os transtornos de humor, o risco máximo de alguns surgem entre 15 e 19 anos.
Fonte: IPUB - Instituto de Psiquiatria – Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ.

A taxa de suicídio, por exemplo, que está entre as três maiores causas de morte em todo o mundo, em população a partir dos 15 anos até os 34 anos, teve um aumento de 133,3% entre 1991 e 2000. Sabe-se, extra-oficialmente, que na capital do Estado, só no bairro União, entre junho de 2001 a junho de 2002, 15 adolescentes, entre 15 e 19 anos, tentaram suicídio, 12 deles indo a óbito.
Fonte: Comunicação verbal da médica Cristiane Marie do Programa Médico da Família – Manaus – 2002.

Os maus-tratos contra idosos acima dos sessenta anos não têm visibilidade no Amazonas, em especial os que são dependentes física e mentalmente, e, sobretudo, os que apresentam déficits cognitivos, alterações do sono, incontinência e dificuldades de locomoção, que exigem cuidados mais intensivos. Sabe-se, a partir, de outros países, que a violência contra idosos se manifestam sob as forma de abuso físico, psicológico, sexual, abandono e negligência. Devido a falta de informação e preparo dos profissionais de saúde, raramente os acidentes e as violências são diagnosticados, o que impede o enfrentamento adequado dessa realidade.

Os transtornos mentais e comportamentais resultantes do uso de substâncias psicoativas variam de região para região. A intoxicação, o uso nocivo, a dependência e os transtornos psicóticos são as condições mais comuns entre os usuários de álcool e outras drogas, sendo o álcool e o fumo as drogas que causam conseqüências mais graves para a saúde pública.

A prevalência dos transtornos devido ao uso de álcool (nocivo e dependência) em adultos foi estimada em 1,7% em todo o mundo, segundo a OPAS/OMS, impondo um alto custo econômico à sociedade. No Brasil, segundo o Ministério da Saúde, 6% da população apresenta transtornos psiquiátricos graves decorrentes do uso de álcool e outras drogas.

Some-se a este quadro 3% da população geral que sofre com transtornos mentais severos e persistentes, e 12% necessitando de atendimento contínuo ou eventual, temos como desafio no Amazonas a criação de uma Política de Saúde Mental para grupos de pessoas com transtornos mentais de alta prevalência e baixa cobertura, através da construção de uma rede de atenção psicossocial diária de base comunitária e territorial, promotora da reintegração social e da cidadania; uma política que seja capaz de enfrentar com eficácia o atendimento de pessoas que sofrem com a crise social, a violência e o desemprego.

Finalmente, através de política interinstitucional, conforme previsto pela parceria entre o Ministério da Justiça e o Ministério da Saúde, a Política Estadual de Saúde Mental deve colaborar com o Plano Nacional de Saúde no Sistema Penitenciário, objetivando a inclusão da população prisional no Sistema Único de Saúde, para o qual foram propostas ações e serviços de prevenção, assistência e promoção à saúde no nível da Atenção Básica, DST/AIDS e saúde mental.

Em consonância com as diretrizes de regionalização do SUS, o referido Plano permitirá que as Secretarias Municipais de Saúde, através de pactuação com as Secretarias Estaduais, assumam a gestão e/ou gerência de suas ações e serviços, o que exigirá entendimento em reunião da Comissão Intergestores Bipartite (CIB) quanto às referências para a média e alta complexidades.

Uma Política de Saúde Mental para o Estado do Amazonas, além das ações interinstitucionais, não pode abrir mão de medidas intersetoriais e do fortalecimento da ação comunitária.

Manaus, 2003

Rogelio Casado
Coordenador Estadual de Saúde Mental

Um comentário:

Anônimo disse...

Rogélio, querido,

A coisa é feia mesmo, nénão? Lembro do teu esforço desde os anos 80, quando te conehci, lembro dele nos anos 90, quando nossa amizade se consolidou. E vejo-o agora no seu texto e na sua verve.
Cê acha que, tal qual o seu mentor Tucuxi, El Negrón terá uma irresitível ascensão?
Credo em cruz! Pé de pato! Magalô três vezes!
Afeto do Gabriel Albuquerque.