novembro 23, 2007

Fascismo na Livraria Cultura

Líder quilombola com uma cruz com nomes de importantes ancestrais
No dia 29/07/2006, as comunidades descendentes de escravos da região norte do Espírito Santo tomaram o local onde era o antigo Cemitério Quilombola de Linharinho, no município de Conceição da Barra, que estava sendo usado pra plantar de eucalipto pela Aracruz Celulose. (Fonte: CMI Brasil Centro de Mídia Independente).

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Fascismo na Livraria Cultura

Caros(as) amigos(as),

Ontem, dia 20 de novembro, Dia Nacional da Consciência Negra, fomos à Livraria Cultura de Brasília e presenciamos uma cena, senão absurda, criminosa - o lançamento de um livro intitulado 'A revolução quilombola', do jornalista (?) Nelson Ramos Barreto, que consiste em desqualificar o pleito das comunidades quilombolas pela formalização da posse de seus territórios tradicionais, com foco na crítica ao processo de regularização fundiária destes grupos efetuada pelo INCRA por meio deste Governo.

Fosse somente a divergência de posições a respeito da questão quilombola, não nos admiraria. O mais chocante foi ver homens de terno preto (fenótipo - brancos), com broches da TFP (Sociedade Brasileira de Defesa da Tradição, Família e Propriedade) , ao redor do 'Príncipe Imperial' Dom Bertrand de Orleans e Bragança, bisneto da Princesa Isabel, discursando em prol dos 'valores ocidentais' e do 'direito de propriedade' , contra uma 'reforma agrária negra'.

Afirmando sempre que nunca houve 'problema racial' no Brasil, o discurso de tais senhores pregava que a mestiçagem deveria ser incentivada e que, assim como o comunismo, a reforma agrária quilombola poderia matar milhões de pessoas. Nem é preciso dizer que a base para esse discurso ainda é o mito freyriano da mistura das três raças.

Esqueceu, talvez, de que os negros após a 'abolição' foram deixados à própria sorte, sem terras ou trabalho – quando se iniciou o processo de incentivo à imigração européia para uma formação mais civilizada da sociedade nacional (ideologia perene do branqueamento biológico e ideológico). Na contracapa do livro, podemos ter um aperitivo 'A bondosa Princesa Isabel substituída por Zumbi, um escravocrata' (!).

Um dos detalhes perversos do evento era a presença de um único negro que ficava parado como que exposto em um zoológico segurando o livro do jornalista. Tivemos certeza de que se tratava de um show de horror quando um dos jovens da TFP, também com seu terno e brochinho, nos disse 'escutem o negro falar!'. Ao que foi constestado, retrucou 'façam um teste de DNA com os presentes nesta sala e vejam se existe raça!'. O referido negro disse ter sido discriminado em suas andanças pelo Congresso Nacional por uma princesa da Etiópia.... Ele foi convidado a falar no evento, prestando uma homenagem ao autor do livro. No entanto, anteriormente aos discursos, circulava sozinho pela biblioteca. Em sua primeira fala, chegou a dizer que os quilombos sempre foram uma 'farsa', pois os negros eram 'obrigados' a fugir, contrariando seu desejo de permanecer nas casas grandes, junto aos seus senhores. Chocante a forma como o discurso estava descolado da imagem do sujeito. Muito triste ver em operação uma manobra comum a esses movimentos, a cooptação de um sujeito, com vistas à legitimação de um discurso contra ele mesmo. Imaginem a violação psíquica que sofre esse sujeito se prestando a esse papel.

Por fim, os homens nos cercavam dizendo coisas do tipo 'por que vocês não vão para Cuba?', ou 'essas meninas são agentes provocadores enviados por alguém'. Aliás, éramos as únicas mulheres do local, exceto por uma portuguesa bem jovem, provavelmente esposa de um dos nobres (?) senhores, e as funcionárias da loja, alienadas ao que se passava. A funcionária responsável pelos lançamentos de livros até tentou se desculpar, mas também tentou se desculpar com a categoria de clientes aos quais nos opomos. Não fosse nossa presença no lançamento, seria uma turma de fascistas juntos, comemorando mais uma grande obra de Nelson Barreto, que já escreveu contra a reforma agrária - detalhe: o princípe desafiava qualquer 'sociólogo ou economista' a citar um exemplo de reforma agrária no mundo que tenha dado certo - e a favor do trabalho escravo (!)

Registramos nossa reclamação na Livraria Cultura, da qual somos cliente. Nos surpreende, ainda, que uma livraria com este perfil tenha aberto espaço para um evento de caráter racista. Algum intelectual sério foi convidado para este evento? Por que o lançamento deste livro foi agendado para o dia nacional da consciência negra? No mínimo, a assessoria de imprensa da Cultura ou é muito ruim e desinformada, ou também é racista.

É impressionante como este caso vem comprovar que existem pessoas 'saindo do armário' para demonstrar seus preconceitos, seus valores fundados na exploração e violência (a exemplo das reações positivas ao BOPE da 'ficção', e negativas às cotas nas Universidades; dos comentários sobre a fala do Governador do Rio de Janeiro sobre a necessidade de legalização do aborto por causa dos filhos das favelas, 'naturalmente' marginais etc.). Outra coisa que isso nos mostrou: a briga é feia. De maneira mais ou menos escarandada, os grupos dominantes do nosso país estão mesmo saindo em defesa de seus interesses historicamente assegurados desde a constituição do Brasil e agora, de maneira ainda muito tímida, ligeiramente ameaçados pela possibilidade de divisão de bens/saberes/ posições.

Os jornalistas nos desculpem, mas aqueles de sua categoria que têm tido maior destaque são os que corroboram com este movimento microssocial perigoso, ao que Deleuze e Guattari chamaram de 'micropolítica e segmentaridade' , ao analisar as motivações do sucesso do nazismo na Alemanha - seu triunfo só teria sido possível porque houve um trabalho anterior de disseminação de suas idéias entre os segmentos mais diversos da sociedade alemã. Nossos hitleres nacionais estão se infiltrando, agora ocupando as livrarias 'cool' que frequentamos…

Carmela Zigoni, Paula Balduino, Priscila Calaf, Júlia Otero.

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