março 17, 2008

Nossa terra amazônica: devastada

Mineroduto da Vale do Rio Doce entre Paragominas e Barcarena no Pará: 250 km de extensão
Lúcio Flávio Pinto - Março 2008

Em abril de 1982 vieram a Belém o secretário-geral do Programa Grande Carajás, Nestor Jost, e o presidente da Companhia Vale do Rio Doce, Eliezer Batista. Foi para o lançamento de um programa que implantaria um pólo siderúrgico e metalúrgico em torno de Marabá, com base no minério de ferro da serra dos Carajás. Mas para que as usinas de silício metálico, ferro liga e ferro gusa pudessem funcionar, era preciso oferecer-lhes um novo energético: o carvão. Carvão a ser extraído da floresta.

"Ao invés de destruirmos a floresta com fogo, como tem sido muito comum, vamos usá-la para produzir carvão", sentenciou o presidente da CVRD, então estatal, e seu principal executivo em todos os tempos, "como se queimar a floresta na produção de carvão vegetal representasse muita vantagem sobre o simples incêndio", escrevi na ocasião, na minha coluna diária em O Liberal.

Depois de ouvir as exposições dos dois renomados técnicos sobre as fontes de suprimento de carvão vegetal (os babaçuais do Maranhão e o florestamento e reflorestamento no Pará, que substituiria a mata nativa), anotei na coluna:

"Isso significa que na área próxima a Marabá surgirão grandes plantios de espécies exóticas destinadas a se transformarem em carvão. A atual floresta, densa, rica, heterogênea, formada ao longo de séculos, está condenada ao desaparecimento se alguma coisa em contrário não for realizada. Os castanhais, em duas décadas, serão referência museológica.

Antes que os srs. Jost e Batista fizessem suas palestras, os responsáveis pelo programa Carajás já haviam espalhado pelo país dois estudos bem impressos, fartamente ilustrados, sobre a floresta amazônica, de responsabilidade de três técnicos muito conhecidos: Glycon de Paiva (inspirador do Polamazônia, entre muitas façanhas, que incluem o estudo sobre as jazidas de manganês de Serra do Navio, no Amapá), Edson Antônio Balloni e Helládio do Amaral Mello.

Os dois trabalhos procuram demonstrar que a substituição da floresta nativa amazônica por um plantio homogêneo com espécies exóticas é vantajoso e, ecologicamente, um avanço. Para tanto, os autores recorrem a dados defasados, superdimensionando a extensão da cobertura florestal em relação à área total da Amazônia e subdimensionando a produção madeireira da região. Fica a sugestão de que esse acervo botânico é inútil ou ocioso. O raciocínio do trio, com maior sofisticação, é o mesmo dos executivos de Carajás. A floresta de Marabá que se acautele".

Passados mais de 25 anos, sem acautelamento, a floresta desapareceu ou está desaparecendo. Mas nunca houve uma mobilização igual à que o governo federal, em conjunto com o governo estadual, desencadeou em torno de Tailândia contra os vorazes desmatadores. Quem batizou a cidade, três décadas atrás, pensava em torná-la um centro agropecuário da fronteira, com ocupação ordenada pelo impulsionador dessa frente, o Iterpa, que ali montou um núcleo pioneiro para a colonização oficial dirigida. Mas acabou prevalecendo a matriz asiática, que emprestou inspiração circunstancial ao batismo.

Na sucessão de cenas (bloqueio de estrada, atos de vandalismo, repressão policial armada aos manifestantes furiosos e tropa de ocupação, com 300 homens, chegando com maior aparato bélico para confiscar os produtos da selvageria e da ilicitude), é impossível não remeter a memória à Indochina. Somos a fronteira de um país que nos quer, nos respeita e nos admira, ou a possessão colonial a ser submetida, amansada, vencida, transformada à imagem e semelhança do colonizador e da sua cultura?

É um absurdo que um bem fabricado ao longo de séculos pela natureza, com esmero e capricho, depois de posto abaixo e serrado vire tábua para a construção civil usar ao deus-dará e depois repassar para a pizzaria ou a padaria da esquina lançar ao fogo. Se vai mesmo ao fogo, que vire carvão vegetal, propuseram Jost & Eliezer, dupla de homens ilustres, mas sem sangue amazônico, sem ethos amazônico. Agentes da ocupação ao modo asiático, sob despotismo oriental.

Sim, são positivas várias das iniciativas desencadeadas pelo governo a partir do sinal de alerta do crescimento de 10% do desmatamento na Amazônia no último ano. Algumas até são inéditas e outras atendem o clamor de muitos anos dos especialistas e dos diretamente interessados na matéria. Mas mudarão o rumo traçado pelos distintos senhores um quarto de século atrás — e por outros tantos distintos senhores mais anos antes? Índio bom é índio morto, dizia o colonizador americano, 38 em punho. O nosso teve que conter essa selvageria, mas ainda pode dizer: floresta boa é floresta abatida. Junto com a pistola, a motosserra, atualização tecnológica do machado.

A floresta é o nosso bem mais precioso, que estamos a desperdiçar com um barbarismo de causar engulhos a Átila, o huno (se aceitamos nossa versão etnocêntrica). Não será com tropa armada (embora mal municiada, mal alimentada e sem-diárias), com espalhafato, com medidas no papel, e mesmo com algumas providências certas, que se desviará a floresta do destino que a aguarda, geralmente de tocaia: virar madeira sólida, extraída sem deixar maiores marcas; financiando com isso a formação do pasto, que virá depois (e já então de forma escancarada, que qualquer satélite fotografa, identificando plenamente este vilão); permitir que serrarias se multipliquem, fornecendo resíduos para a siderurgia transformar em carvão, até que, em sendo o estupro inevitável, relaxando-se e aproveitando, começarem a surgir fornos primitivos às dezenas, centenas e milhares, sangrando a terra, sangrando o homem, revivendo da miséria. E, como cobertura requintada, o agronegócio, mais intensivo em capital, menos exposto à caracterização do crime, mais sofisticado. Embora não menos letal.

Quem já viu tudo isso, revê o novo "isso" com enfado, desalento, indignação e revolta. Todos passarão, exceto a floresta, que ficará, insepulta, na forma de cinzas ligeiramente nutrientes, carvões, tábuas e outros traços degenerados de sua existência exuberante e promissora. Enquanto o governo e o colonizador não conhecerem a Amazônia e a respeitarem, e, quem sabe, a amarem, passarão por ela como furacões de motosserras e aceiros, de homens armados e justiceiros velozes. Não ficará o que é perene e consistente, como campi de centros de graduação e pós-graduação no meio da mata, com gente jovem e competente que aprenda fazendo, olhada por verdadeiros mestres, com infraestrutura e apoio financeiro, sob a proteção devida, fazendo manejo florestal de verdade, com o melhor da mais avançada ciência, a demonstrar que floresta se utiliza sem devastar — e que assim se ganha muito mais dinheiro.

Daqui a 25 anos, se ainda houver floresta, as palavras se tornarão proféticas sem querer. Mas não só proféticas: irão adquirir o significado amargo de epitáfio. Pela mata que desapareceu e pela nossa inteligência, que nunca deu o ar da sua graça na nossa terra devastada. Que não será mais nossa nem nada. Nonada.
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Lúcio Flávio Pinto é o editor do Jornal Pessoal, de Belém, e autor, entre outros, de O jornalismo na linha de tiro (2006) e Contra o poder. 20 anos de Jornal Pessoal: uma paixão amazônica (2007).

Fonte: Especial para Gramsci e o Brasil.

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