maio 24, 2008

Morre o poeta Hindemburgo Dobal Teixeira

H. Dobal
Amigo(a),

Acabamos de perder H. Dobal, um os maiores expoentes da poesia brasileira contemporânea. Éramos amigos. Sofria de parkinson e ultimamente seu estado de saúde vinha se agravando. Prefaciou meu primeiro livro de poemas, "O Salto sem trapézio". E escreveu seu último prefácio, também para um livro meu, "Perfume de resedá", ainda inédito, a ser publicado até o final deste ano. Sempre que podia, quando ia a Teresina, no Piauí, visitava-o na companhia de amigos, nas famosas "dobalinas". Dobal era uma dessas pessoas inesquecíveis.

Há alguns dias eu vinha escrevendo alguma coisa em versos, sobre ele. Quando me chegou a notícia de sua morte, agora há pouco, apenas completei o texto que segue abaixo, juntamente com alguns dados biográficos que puxei da internet.

Outro dia escrevi, e repito agora, com uma certeza ainda mais clara:

marretadas não abolem
uma verdade maior
nenhum verso vira pó
todo verso vira pólen.

Um abraço.

Paulo José Cunha

*****

Um brinde ao amigo H. Dobal

Ergo um poema ao poeta
como se uma taça ao brinde.

Um brinde ao riso afável, honesto, verdadeiro
do operário calmo das palavras,
do mestre de desapegada vaidade
incapaz de grito ou impropério,
mas capaz de levantar
enormes e frágeis catedrais
feitas de versos.

É ler Dobal
para sentir-se em meio
ao seco das caatingas,
no largo dos sertões,
ardendo,
in vitro
à fumaça do ferro em brasa
marcando bois e homens.

É conhecê-lo
para aprender
que toda glória é vã,
além de arredia aos que a perseguem.

A alegria guardado nas retinas
e o macio da mão trêmula
distraem o sorriso de menino travesso,
que ironiza vida e fama
por saber
que os pombos sempre cagam nas estátuas.

O que fica, para além da vida,
e ele bem sabe,
é o brinde que se ergue,
além do nada,
e os versos que se cantam,
além da glória,
a um tempo de carinho e amizade.

Agora, de repente, tudo é pouco
e tão grande, apenas na memória:

A conversa amena, regada a café com bolos fritos,
umas risadas, os afagos dos velhos companheiros,
ao redor de sua cadeira preguiçosa,
nas manhãs dobalinas de domingo.

Morreu Hindemburgo Dobal Teixeira.

Viva H. Dobal!

(A poesia de Dobal, como bem disse Cineas Santos, no e-mail em que acaba de me comunicar a sua morte, resistirá).

*****

Hindemburgo Dobal Teixeira é de Teresina (17 de outubro de 1927). Curso secundário no antigo Liceu. Bacharelou-se em Direito na turma de 1952 da Falcudade de Direito do Piauí, tendo sido o orador. Diretor da Revista Meridiano, figura líder da geração vanguardista, tornou-se um poeta respeitado no Brasil inteiro. Fez concurso para Fiscal do Imposto de Consumo do Ministério da Fazenda; membro do Conselho de Contribuites e professor da Escola Superior de Legislação Fazendária, em Brasília. No Governo Médici fez parte da comissão que reestruturou todo o sistema tributário nacional. Posteriormente, comissionado pelo Ministéio da Fazenda, fez cursos e estágios em Londres e Berlim, sendo um dos mais brilhantes e competentes técnicos em legislação e Técnica Fazendária, no país. Membro da Academia Brasiliense de Letras.

Em 1969 Hindemburgo Dobal Teixeira ganhava, com O Dia Sem Presságios, o Prêmio Jorge de Lima (poesia) do Instituto Nacional do Livro. Mas nem sempre a obra premiada é o melhor instante do escritor. "O Tempo Consequente", editado em 1966, é ainda o melhor momento da poesia deste notável poeta.

Obras: O Tempo Consequente (1966); O Dia Sem Presságios (Premio Jorge de Lima, 1970); A Viagem Imperfeita (1973); A Província Deserta (1974); A Serra das Confusões (1978); A Cidade Substituída (1978); El Matador (folhetim, 1980); Os Signos e as Siglas (1978); Cantigas de Folhas (1989).

Conheça um pouco de sua bela obra:

Campo Maior
Bucólica
Gleba de Ausentes
Inverno
II os Dias
Pioneira Social
As Chuvas
Transeunte
I os Rios
Crepúsculo
Homo
O Destiono
Réquiem
Hunamae Vitae
Salmo do Homem Sozinho
A Morte

Campo Maior

Ai campos do verde plano
todo alagado de carnaúbas.
Ai planos dos tabuleiros
tão transformados tão de repente
num vasto verde num plano
campo de flores e de babugem.

Ai rios breves preparados
de noite e nuvem. Ai rios breves
amanhecidos na várzea longa,
cabeças d'água do Surubim
no chão parado dos animais,
no chão das vacas e das ovelhas.

Ai campos de criar. Fazendas
de minha avó onde outrora havia banhos de leite. Ai lendas
tramadas pelo inverno. Ai latifúndios.

*****

Gleba de Ausentes

Onde serão as roças planta-se primeiro
o fogo. E em cinza as chamas
vão turvando o céu
de uma cidade ardente. Ardemos no peso da tarde
com a cinza do sol nos campos do verão.
Desde muitos avós o fumo das queimadas
vamos repetindo. Ficamos enfim
na cidade sem ventanas transplantados
e saltando os aceiros só em nós lavramos
a chama vagarosa que nos consome.

*****


II os Dias

Sobre as águas de um rio onde vareiros
silenciaram suas mágoas.
Sobre outro rio cantado por lavadeiras,
e o riozinho proclamado
pelos buritizeiros,
sobre os brejos sem nome
onde os riachos começam,
sobre todas as águas
o espírito perene.

Sobre o espírito das águas
que memoraram os dias,
sobre um rio perdido onde os bichos do mato
beberam o fim da tarde,
sobre um vale pastoral onde os rios pensam
sobre a música de vida
dos rios reduzidos a um nome
PARNAÍBA
sobre os rios plenos,
os dias consumidos.

*****

As Chuvas

Nas mãos do vento as chuvas amorosas
vinham cair nos campos de dezembro,
e de repente a vida rebentava
na força muda que as sementes guardam.

Nas ramas verdes rebentava a luz
e a doçura do tempo transformava
a terra e o gado na pastagem tenra,
na alegria dos rios renovados.

Cheiro de mato e de currais suspensos
no ar que os dedos do inverno vão tecendo
mais uma vez nos campos de dezembro.

E nos trovões a tarde acalentada,
cantigas de viver que a chuva traz
numa clara certeza repetida.

*****

I os Rios

Ai rios do Piauí, água rica de peixe
de couro e de escama.

De todos os rios sobra uma cantiga
de bem viver. Um rio preguiçoso
se compraz no seu curso. Outro rio
subterrâneo se afunda no peito.

Campo de areia, água viva nos pés,
água pesada na memória.
Senhor das dimensões um rio segue
suas margens renovadas, ribanceiras
movediças. Um rio move
seus habitantes, seus destinos.

Dodó das Cabeceiras
conhecedor dos rios
com eles aprendeu
a plenitude da vida.

Seu ritmo irregular um rio instala
faz a sua própria força. Cava os seus canais
seus tributários arrecada.

Água de beber, água de lavar,
água de nuvem, água do chão.
Móvel. Migrante. Um rio.
Jamais o mesmo.

*****

Homo

Sua razão de vida o homem vê minguando
a cada dia. Mas duro recomeça
como se o tempo lhe sobrasse. E vagaroso
não conta as eras que se extinguem.
Nem conta a solidão dos dias claros
se desdobrando iguais como esquecidos
de mudar. Nem a distância
que o grito não transpõe, a passagem da vida
cumprida só em mínimos desejos.
Sua lástima no piar das nambus, sóbrio
se esquiva às armadilhas da tarde.
A incerteza nos paióis, o chão batido
em que levanta a casa, o amor
como a água das cabaças.
Lavrador do milho e do feijão, sua frugal colheita
em gleba alheia. Passa-lhe a vida,
e queima o céu com a cinza de suas roças.

*****

Réquiem

Nestes verões jaz o homem
sobre a terra. E a dura terra
sob os pés lhe pesa. E na pele
curtida in vivo arde-lhe o sol
destes outubros. Arde o ar
deste campo maior desta lonjura
onde entanguidos bois pastam a poeira.

E se tem alma não lhe arde o desespero
de ser dono de nada. Tão seco é o homem
nestes verões. E tão curtida é a vida,
tão revertida ao pó nesta paisagem
neste campo de cinza onde se plantam
em meio às obras-de-arte do DNOCS
o homem e os outros bichos esquecidos.

*****

Salmo do Homem Sozinho

Assim de dia
como de noite
cristão sozinho
no reino da multidão
leva seu nome sua fome
sua paixão sua vida
e a não sabida hora da morte.

O homem entre muitos
leva sozinho
sua sólida vida
de pedra e de cal.

Leva na pedra do coração
seu deus de sombra desmoronado.
Leva seu orgulho
o homem sozinho.
Corpo fechado
alma perdida
se deita sozinho
sem medo de assombração.

*****

Bucólica

Esta paisagem morta onde somente
vão ruminado as cabras os seus dias,
não se rumina em mim como lembrança
mas como um sonho repetindo os dias

O sonho desse tempo repetido
pára na luz que banha-os dias mortos,
e em mim de novo esta paisagem clara
bem levemente vai-se recompondo

Neste céu de verão campeiam nuvens.
No descampado azul vai o silêncio
os seus segredos ruminando em paz

E como um sonho permanece o tempo
em seu passado. Lento vai crescendo
na paisagem das cabras um menino

*****

Inverno

Um horizonte de chuvas demorado
de seus duros verões levanta os campos
e o inverno se faz de tantas noites
onde se pede o curso dos riachos

A pastagem rasteira retocada
pelas ovelhas da manhã não cresce
nesses perdidos campos da memória
onde um menino vive a sua infância

Cresce na solidão de outros meninos
se preparando agora para o exílio
de estrangeira cidade onde mais tarde

confinados ao sonho pensarão
no abôio das chuvas na doçura
dos campos transformados pelo inverno

*****

Pioneira Social

Maria Solidão
prostituta profissional
desamada pelo dia
espera os milagres da noite.

Ronda os hotéis
patrulha os bares
sofrida enfrenta
a concorrência
dos travestis,
das amadoras.

Nas vias nos eixos
da cidade unânime
de símbolos fálicos,
a noite esta noite
de concreto e neon
é o seu território.

Nesse território
vende frustrações
pois dá só em parte
o que uma mulher
é capaz de dar.
Mas depois lhe pagam
o seu pró-labore
de doenças, dinheiro
desilusão.

Maria Solidão
enganada pela noite
vencida pela vida,
sonha com o descanso do dia.

*****

Transeunte

Transeunte numa cidade sem ruas,
é apenas um homem, apenas uma mulher.
A vida pesada cai sobre
os seus ombros cansados. Levados
de uma incerteza a outra incerteza,
de uma angústia a outra angústia,
no amargo sonho desta vida
pedindo ao verão o refrigério das sombras.

*****

Crepúsculo

Silencioso
Solitário
Sinistro
Um sol-poente
Celebra o suicídio da tarde.

*****

O Destino

No campo do azul vem o verão
plantar as suas nuvens.

Na cidade imperfeita
vem o diaplantar a sua luz:
No mármore morto
dos viadutos.
No verde novo
depois das chuvas.
Na cinza que ameaça os monumentos.

Num lance de dados se planta o destino.
O destino: a previsão da náusea dos espaços.
O destino
destruidor de nuvens.
O destino
levando vantagem.

*****

Humanae Vitae

O menino minguante vem do rio das fêmeas.
Nascido ao poente
seu dia parado
sem pressentimentos.
Sem socorro
de remédio
seu transe de fome
do rio do sono
ao rio das mortes.

*****

A Morte

A morte aparece
sem fazer ruído.

Senta-se num canto
fica indiferente
com seu ar de calma
absoluta.
Mira longamente
o quarto o retrato
a cama os remédios
postos entre os livros
sobre a mesa escura.

Depois se levanta
sem nenhuma pressa
sem impaciência
retorna ao seu mundo
a morte, de gestos
claros e serenos.
Posted by Picasa

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