janeiro 17, 2009

Guerra e Paz: o capitalismo sem espírito

Nakba - 15 de maio de 1948 - Carlos Latuff
Internacional 16/01/2009 Copyleft


Guerra e Paz: o capitalismo sem espírito

Na pulsão contra-humanista do capitalismo contemporâneo não se reconhece dívida simbólica com o passado de quem o tem. Na impossibilidade de fazer da história do Outro um bem comum compartilhado, opta-se por sua destruição. Os EUA reduziram a escombros o Museu Arqueológico de Bagdá. Israel bombardeou a Universidade de Gaza. No exercício da razão do mais forte revela-se a vontade de destruir a vida biológica e a vida do espírito. A análise é da filósofa Olgária Mattos, em seu artigo de estréia como colunista da Carta Maior.

Olgária Mattos

A situação dos palestinos na Faixa de Gaza, sob o poder da tecnologia bélica do Estado de Israel e de seu militarismo expansionista, expressa, de maneira cabal, a condição de suas vítimas: o crime justificado pela lógica da “guerra justa” e da destruição em nome da segurança e da paz. Ao limbo jurídico no qual, hoje, Israel exerce a soberania, a Idade Média denominou “estado de exceção”. Se, historicamente, os Estados nacionais se fundaram em algum tipo de violência, também é verdade que só se mantiveram e prosperaram porque acederam à legitimidade. Na dificuldade em consegui-la, o Estado de Israel exerce o poder ab-solutus e o terror, acima do concerto das Nações.

A partir da Primeira Guerra Mundial - com o fim dos campos de batalha e o bombardeio de populações civis desarmadas - , o mundo inteiro tende a se converter em trincheira, cada indivíduo transformado em um puro objeto sem defesa, simples alvo em uma zona de tiro.

Na contramão da violência nua, os bens culturais materializam os esforços da humanidade para se humanizar. Assim, os lugares de memória, escolas, universidades e museus.

O Museu Arqueológico de Bagdá era o guardião da primeira história do homem, lá onde, segundo o relato bíblico, tudo começou. Entre o Tigre e o Eufrates, viveram Adão e Eva. Aí se gestaram a civilização e a vida. O museu não foi conquistado pelas forças militares norte-americanas, por um comando que, admirando seus bens, usurpava-os para si. Dele só restaram escombros.

Na pulsão anti-genealógica do capitalismo contemporâneo - anti-intelectual e contra-humanista - não se reconhece dívida simbólica com o passado de quem o tem. E na impossibilidade de fazer da história do Outro um bem comum compartilhado, houve ainda o bombardeio da Universidade Palestina da Faixa de Gaza e da Escola cuidada pela ONU.

Desde a Academia de Platão, do Liceu de Aristóteles e do Pórtico dos estóicos, Escola e Universidade constituíram um espaço de autonomia e liberdade a que demagogos do povo, polícia e exércitos não tinham acesso. Produzindo a vida do Espírito, sua função é a de desenvolver conhecimentos, aprimorar os costumes, elevar o indivíduo e sublimar o povo. Com a percepção aguda da brevidade da vida e da fragilidade das coisas humanas, escolas, universidades e museus são os guardiães que transmitem, ao longo das gerações, tudo o que é preciso lembrar e interrogar, e o que é digno de renome e fama.

No exercício da razão do mais forte revela-se, porém, a vontade dos poderosos em destruir, além da vida biológica, a vida do espírito; e o desejo do povo de viver em paz. A paz - estado de tranqüilidade moral - só acontecerá, como anotou Simone Weil, quando os homens deixarem de enaltecer a força, valorizar a violência e humilhar os vencidos. “Duvido que seja para já”.

(*) Olgária Mattos é filósofa, professora titular da Universidade de São Paulo.

Fonte: Carta Maior
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