abril 15, 2009

Surtô geral... na boa!

Surtô geral!

Do correspondente Zefofinho de Ogum, Rio de Janeiro

O artigo do imortal Ferreira Gullar, publicado no domingo que passou na Folha "Ditabranda" de São Paulo, despertou a ira e a compaixão entre gregos e baianos. Confira aqui as respostas e escolha quais dos autores do textos abaixos você não convidaria pra tomar um cafezinho, nem dançar um tango.

***


Eu escreveria assim ao poeta Ferreira Gullar...

Prezado Ferreira Gullar

Certa vez você escreveu assim:

Traduzir-se

Uma parte de mim
é todo mundo:
outra parte é ninguém:
fundo sem fundo.

Uma parte de mim
é multidão:
outra parte estranheza

e solidão. Uma parte de mim
pesa, pondera:
outra parte
delira.

Uma parte de mim
almoça e janta:
outra parte
se espanta.

Uma parte de mim
é permanente:
outra parte
se sabe de repente.

Uma parte de mim
é só vertigem:
outra parte,
linguagem.

Traduzir uma parte
na outra parte
— que é uma questão
de vida ou morte —
será arte?

De Na Vertigem do Dia (1975-1980)


Quero acreditar que quem escreveu a coluna deste domingo de páscoa tenha sido apenas uma parte de você. Uma parte que não conhece os enormes avanços que a Reforma Psiquiátrica Brasileira e a lei (à qual você se refere como idiota), puderam fazer na vida e na história dos milhares de familiares e usuários com os quais lidamos no nosso dia-a-dia de trabalhadores da Saúde Mental. Antes desta lei - que não foi daquelas que surgiu de traz da orelha de um cretino qualquer, mas resultado de um processo de mais de 10 anos de discussão, luta, enfrentamentos e negociações - familiares e pacientes tinham no manicômio único modo de ter e oferecer "tratamento" para suas loucuras ou doenças mentais. A mesma parte que desconhece que existem sim em nosso País e em outros: manicômios - com este nome ou com outros mais amenos - que continuam a ferir direitos mínimos aos seus "frequentadores". Não quero acreditar que um poeta sensível como você consiga enxergar na doença de seus filhos somente pessoas dispostas a matar ou morrer quando estão em crise, outra parte de você, certamente, conhece muitas outras facetas e singularidades que só quem convive de perto com a esquizofrenia ou outras doenças mentais pode experimentar. Por isso minha carta é um convite... um convite para que você escute a outra parte de si mesmo e desta história que você conta de maneira rasteira e parcial, uma história que tem lá suas dificuldades e imperfeições (e bem sabe você que num mundo perfeito não haveriam poetas) mas é uma história bonita e legítima e que merece no mínimo respeito. Convido outra parte de você a conhecer um CAPS (ou serviço deste tipo) e escutar o depoimento de usuários e familiares que lá frequentam, e que puderam mudar suas histórias por causa das transformações que esta lei provocou em suas vidas. Uma parte de você também não sabe que a hospitalização, de qualquer natureza, não é mais a única solução para as chamadas crises, existe muito mais a ser fazer... Outra parte de você também ficaria encantado em saber que esta lei construiu muito mais coisas do que descontruiu, descontruiu os manicômios, mas construiu um sem número de outras possibilidades, dispositivos, formas de tratamento, além de muita arte, música e poesia... Creio sinceramente que quem escreveu este artigo é a parte de você que ainda não conheceu a outra parte da história... então venha conhecê-la, tenho certeza de que nenhuma parte de você irá se arrepender.
saudações antimanicomiais

Rita de Cássia de A. Almeida
trabalhadora de CAPS e militante da reforma psiquiátrica brasileira há 12 anos.

***

A crítica feita pelo poeta Ferreira Gullar a Lei 10216, conhecida como Lei da Reforma Psiquiátrica, que propõe a regulamentação dos direitos da pessoa com transtornos mentais, a extinção progressiva dos manicômios no país e o redirecionamento da assistência em saúde mental, privilegiando o oferecimento de tratamento em serviços de base comunitária, parece ser muito distante da realidade da saúde pública que tem sido paulatinamente construída no cenário nacional pelo Sistema Único de Saúde.

Talvez falar do lugar de pai tenha um outro significado do que do lugar de técnica em saúde mental. Contudo, o que mostram as pesquisas e as experiências práticas é que os cuidados em saúde mental quando valorizam o sujeito em detrimento à doença, modificam o papel e a função social do doente mental, aumentando sua rede de trocas afetivas e materiais, possibilitam a habilitação desse sujeito e favorecem sua saúde mental, além de, sua inclusão social.

Além de ser notório também, que o poder da institucionalização, provocada pelo afastamento social, no caso em hospitais psiquiátricos, é mais incapacitante do que a própria doença mental.

O objetivo principal da Reforma Psiquiátrica é transformar as formas de cuidados destinados aos doentes mentais, através de mudanças simples, mas que têm um significado complexo na vida das pessoas. Uma vida mais rica de recursos, de possibilidades e de experiências.

Erika Trevisan
Terapeuta Ocupacional - Mestre em Saúde Mental - USP São Paulo

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IMPOSSIVEL SILENCIAR

Antonio M. R. Teixeira
(Médico, psiquiatra, professor associado do Departamento de Psicologia da FAFICH-UFMG, editor da revista Clinicaps.com.br, destinada à publicação de artigos em Saúde Mental).

Indiferença e Silêncio. Talvez tal binômio fosse a melhor resposta ao artigo “Uma Lei Errada”, publicado na Ilustrada da Folha de São Paulo, nesse domingo último, destinando-o à vala comum dos panfletos inconseqüentes. Talvez não valesse a pena responder a uma tal infâmia se o artigo tivesse sido escrito pelo representante de uma confederação qualquer dos hospitais ou dos laboratórios, mas não: estamos lendo um escrito assinado pelo autor do inigualável Poema Sujo, por um dos co-atores do Manifesto Neo-concreto, estamos falando do grande poeta Ferreira Gullar. Urge responder ad hominem, impossível diante dele se calar.

Pois então, vejamos. O autor ali se permite ser duro e ofensivo, talvez sob a pretensão de ser enfático e contundente. Cada palavra é cuidadosamente escolhida para ferir; a difamação é dirigida, sem restrição, ao conjunto dos autores e atores sociais do movimento da luta anti-manicomial. Resume-se a complexidade de um processo difícil, eivado de sucessos e obstáculos ao longo de quase 22 anos, como se ele não mais fosse do que a reação histérica de uma “classe média [que] quase nunca se detém para examinar as questões, pesar os argumentos, confrontá-los com a realidade”. Um deputado petista, citado sem ser nomeado, é acusado de ter declarado que as famílias dos doentes mentais os internavam para se livrarem deles. Lêem-se as aspas, mas não está indicada a fonte dessa declaração, o que deixa o autor mais à vontade para chamá-lo de “cretino”, porque supostamente “não sabe o que é conviver com pessoas esquizofrênicas” na família e desconhece a dor de um pai que tem quer internar um filho. Sua campanha, portanto, aos olhos do grande poeta, não passa de uma “demagogia como qualquer outra”, fundada em dados falsos ou falsificados. Num retorno ao politicamente correto, ele ainda acrescenta que a escolha do termo manicômio visa produzir uma distorção ideológica do sentido que hoje deveríamos atribuir aos nossos modernos hospitais psiquiátricos.

A difamação é grave, gravíssima, e deve chegar ao conhecimento de grande parte dos leitores dominicais da Folha de São Paulo. Impossível, portanto, manter-se em silêncio. A ética nos impõe um revide rápido. Valendo-nos de uma conhecida tática marcial, que consiste em combater se servindo do próprio movimento do adversário, responderíamos que esse escrito incorre repetidas vezes na irreflexão que ele inadvertidamente atribui aos que até hoje sustentam os princípios e conseqüências da reforma anti-manicomial. Façamos, pois, perguntas diretas, no presente do indicativo, deixando de lado as alusões e os condicionais: O que sabes para afirmar que alguém desconhece a dor de conviver com pessoas esquizofrênicas na família? Não, caro poeta, sofrimento mental na família não é, nem de longe, exclusividade do Sr. Ferreira Gullar. Sabes o quão freqüente e desolador era o abandono de doentes mentais pela família nos hospitais psiquiátricos, sobretudo nos serviços públicos? Podes me citar qual estatística sustenta que o número de doentes mentais abandonado nas ruas, dormindo sob viadutos, aumentou após a reforma anti-manicomial? Não, caro poeta, freqüentar serviços públicos, ao que tudo indica, não é a especialidade do Sr. Ferreira Gullar.

Mas isso não é tudo. O artigo, quem diria, parece ter sido escrito por alguém também versado em psicofarmacologia, cuja rispidez para falar da reforma anti-manicomial só é comparável à suavidade com a qual aborda as medicações neurolépticas, que, segundo ele, “não apresentam qualquer inconveniente”. Sancta simplicita! Já ouvistes falar da discinesia tardia, do parkinsonismo induzido, da acatisia...? A lista de efeitos colaterais é importante e extensa, somente com ela se poderia preencher essa página, lembrando-lhe que quem escreve essas linhas é um psiquiatra que não se furta a recorrer cuidadosamente aos medicamentos, quando eles se fazem necessários. Mas que nem por isso se permite destacar os neurolépticos como maior progresso no tratamento humanizado da doença mental, nem afirmar que “graças a essa medicação, as clínicas psiquiátricas perderam o caráter carcerário para se tornarem semelhantes a clínicas de repouso”. Tampouco posso aceitar que se reduza o restante da clínica a um repertório de divertissements, para retomar o termo tão lucidamente criticado pelo filósofo Blaise Pascal. Mencionas as salas de jogo, de cinema, teatro, piscina e campos de esporte, mas em nenhum momento encontramos, em seu escrito, sequer uma referência às verdadeiras práticas de condução clínica vastamente documentadas.

Estranha-me, enfim, caro poeta, que de tua arte máxima não tenhas se valido para fazer uma mínima menção à psicanálise, que, como a poesia, desde Mallarmé, sempre esteve atenta à afinidade estreita entre a loucura e a palavra que sobre ela mesma se dobra.

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QUE O POETA ME DESCULPE

Edmar Oliveira

No último domingo, o poeta Ferreira Gullar, em sua coluna na Folha de São Paulo, pede a revogação da lei que prevê o fim dos manicômios no Brasil. O poeta usa argumentos retirados da sua dor de pai de dois filhos com transtornos mentais. E no seu lamento, nada poético, se refere ao autor da lei como “cretino” e joga na lei a dor das famílias que gostam de seus filhos, mas não sabem como ajudá-los sem o hospital psiquiátrico. E a Folha de São Paulo, na sua cruzada ideológica, usa os argumentos do poeta, em chamada de primeira página, para pedir a volta dos manicômios no Brasil.

Ferreira Gullar defende que o hospital psiquiátrico “moderno” não tem mais o modelo manicomial e seria de uma ajuda aos familiares e pacientes com a internação breve para a volta ao convívio familiar, após a crise. Erra o poeta por puro desconhecimento dos serviços substitutivos ao hospital. Os Centros de Atenção Psicossocial, hoje espalhados em todo o país, não no quantitativo que pudesse substituir os hospitais (que ainda existem em quantidade e muitos são manicomiais) tem um trabalho bem mais avançado, satisfazendo o paciente e sua família. São serviços públicos, dedicados ao Sistema Único de Saúde (SUS), que, talvez, o poeta não conheça por não usufruir um sistema que se diz universal, mas não é procurado pelas classes mais favorecidas da sociedade. E em Saúde Mental, diferente do que acontece no SUS, nos orgulha dizer que o melhor serviço está no sistema público. E claro que ainda faz falta mais desses serviços substitutivos aos leitos psiquiátricos. Neles uma cama (e não um leito, que é impessoal) na hora da crise pode aliviar tanto o paciente quanto a família de um nível de tensão da convivência diária. E esses serviços são inspirados no trabalho de Nise da Silveira, que o poeta tanto conheceu e admira. Desejaria que o poeta pudesse conhecer o outro lado da lei que ele, com raiva, combate. Enquanto ela defende a desativação dos leitos manicomiais, propõe a sua substituição por esses serviços.

E poeta, se nos novos serviços podemos ver o paciente mais satisfeito e mais cuidado, nos hospitais ainda existem a primazia do remédio sobre as atividades laborativas e a privação da liberdade, contra a qual sempre lutou Nise da Silveira. Não existe hospital psiquiátrico bom. Ainda carregam os poderes coercivos contra os quais tentou escapar Antonin Artaud. Não vale a pena defendê-los.

Mas, como um profissional do campo, queria pedir desculpas ao poeta. Nós, que nos dedicamos tanto a defender o novo modelo, não conseguimos convencer e sensibilizar o poeta, como ele conseguiu fazer em nós o despertar da beleza com a sua poesia. Nós te devemos essa...

***

Ferreira Idiota Gullar

O poeta não é tolo.
O poeta também faz política.
Na política, o poeta pode ser idiota.
Pois política não é poesia
ainda que a sua poesia possa ser política.
Na política, o poeta, como qualquer um,
pode estar a serviço, sabe-se lá de quem,
mesmo que seja somente dos seus botões.
Opinião de poeta é só opinião
Mera opinião, que pode, não só, ser idiota,
como também fazer idiota
a quem costuma confundir
opinião de poeta, com a sua mera poesia.

marcus vinicius de oliveira

***

Caro editor,

Curiosamente, cretino — termo usado por Ferreira Gullar ("Uma lei errada", FSP, 12/04/2009) para classificar o proponente da lei 10.216, a "Lei da Reforma Psiquiátrica" — é um antigo diagnóstico psiquiátrico que nomeia os portadores de cretinismo, retardo mental causado pelo hipotireoidismo congênito. Os periódicos nos indicam que também o diagnóstico que Ferreira Gullar informa ser o de seus filhos — a esquizofrenia — tem sido usado com frequência como xingamento. Este contrassenso oculto evidencia a natureza obscura do estigma, e revela como pode ser escorregadio redigir sobre o campo polêmico que é os dos cuidados públicos nesse campo. Penso que o articulista Ferreira Gullar poderia conhecer um pouco mais dos familiares satisfeitos com os espaços de excelência que existem dentro da Reforma da Saúde Mental — sim, eles existem, e tendem a não estar nos serviços particulares. Sua energia de insatisfação direcionada erroneamente para a revogação da lei poderia ser mais produtiva se ele viesse a reinvindicar a expansão necessária desta excelência para o maior número de cidadão brasileiros. Num campo onde muito tende a ficar oculto, não se consolidarão cuidados dignos em Saúde Mental sem um diálogo democrático entre todos os envolvidos: profisisonais de diversas categorias, pacientes, familiares e a sociedade participativa.

Luís Fernando Tófoli
Psiquiatra e Doutor em Psiquiatria pela Universidade de São Paulo
Professor Adjunto de Psiquiatria, Universidade Federal do Ceará
Sócio da Associação Brasileira de Psiquiatria

***

*CARTA AOS MÉDICOS CHEFES DOS MANICÔMIOS*

Antonin Artaud

Senhores,

As leis e os costumes concedem-vos o direito de medir o espírito. Essa jurisdição soberana e temível é exercida com vossa razão. Deixai-nos rir. A credulidade dos povos civilizados, dos sábios, dos governos, adorna a psiquiatria de não sei que luzes sobrenaturais. O processo da vossa profissão já recebeu seu veredicto. Não pretendemos discutir aqui o valor da vossa ciência nem a duvidosa existência das doenças mentais. Mas para cada cem supostas patogenias nas quais se desencadeia a confusão da matéria e do espírito, para cada cem classificações das quais as mais vagas ainda são as mais aproveitáveis, quantas são as tentativas nobres de chegar ao mundo cerebral onde vivem tantos dos vossos prisioneiros? Quantos, por exemplo, acham que o sonho do demente precoce, as imagens pelas quais ele é possuído,são algo mais que uma salada de palavras?Não nos surpreendemos com vosso despreparo diante de uma tarefa para a qual só existem uns poucos predestinados. No entanto rebelamos-nos contra o direito concedido a homens – limitados ou não – de sacramentar com o encarceramento perpétuo as suas investigações no domínio do espírito.

E que encarceramento! Sabe-se – não se sabe o suficiente – que os hospícios, longe de serem asilos, são pavorosos cárceres onde os detentos fornecem uma mão-de-obra gratuita e cómoda, onde os suplícios são a regra, e isso é tolerado pelos senhores. O hospício de alienados, sob o manto da ciência e da justiça, é comparável à caserna, à prisão, à masmorra. Não levantaremos aqui a questão dos internamentos arbitrários, para vos poupar o trabalho dos desmentidos fáceis. Afirmamos que uma grande parte dos vossos pensionistas, perfeitamente loucos segundo a definição oficial, estão, eles também, arbitrariamente internados. Não admitimos que se freie o livre desenvolvimento de um delírio, tão legítimo e lógico quanto qualquer outra sequência de ideias e actos humanos. A repressão dos actos anti-sociais é tão ilusória quanto inaceitável no seu fundamento. Todos os actos individuais são anti-sociais. Os loucos são as vítimas individuais por excelência da ditadura social; em nome dessa individualidade intrínseca ao homem, exigimos que sejam soltos esses encarcerados da sensibilidade, pois não está ao alcance das leis prender todos os homens que pensam e agem.

Sem insistir no carácter perfeitamente genial das manifestações de certos loucos, na medida da nossa capacidade de avaliá-las, afirmamos a legitimidade absoluta da sua concepção de realidade e de todos os actos que dela decorrem.

Que tudo isso seja lembrado amanhã pela manhã, na hora da visita, quando tentarem conversar sem diccionário com esses homens sobre os quais, reconheçam, os senhores só têm a superioridade da força.

(Escritos de Antonin Artaud)

"Vejo na sua proposta de me trazer aqui e de cuidar diretamente de mim o desejo de fazer justiça a um homem internado sem razão. Mastem uma coisa que é inadmissível na minha situação aqui. Já faz quinze dias que pedi ao Dr. Latrimolière que me deixasse tomar banho todos os dias para me manter limpo. Pedi-lhe tambémque evitasse me incluir no banho coletivo pois a aproximação de todos os corpos nus e o odor dos gazes mefíticos que alguns doentes exalam ofendem minha castidade, e o que me responderam é que não havia água quente. Pedi ainda que me fizessem a barba pelo menos a cada dois dias e o barbeiro me disse que não tinha tempo. E faz dois meses que o senhor prometeu me mandar uma escova de dentes e até agora não me mandou. O senhor bem pode notar que estou sendo mal tratado, e poderá notar que também me trata muito mal, e no fim é a mim que o senhor censura dizendo que não me cuido bem. Suas reprovações me feriram o coração, são uma afronta que preferia não ter ouvido da boca de um amigo. Sempre me preocupei com a higiene de meu corpo e apesar de meu enorme cansaço vou procurar todos os instrumentos de que preciso além de uma escova de dentes. Mas será que o senhor não notou que quase não tenho mais dentes, e que dos trinta e três que tinha só sobraram oito. Parece que o senhor já se esqueceu de como os perdi. É cruel, Dr. Ferdière, censurar um homem ferido e acidentado por maus tratos de não escovar os dentes ao saber que es temesmo homem perdeu os dentes por desgraça".

(Cartas de Antonin Artaud)

***
PAINEL DO LEITOR (impresso, 14/04/2009)
http://www1.folha.uol.com.br/fsp/opiniao/fz1404200910.htm

O "Painel do Leitor" recebe colaborações por e-mail (leitor@uol.com.br), fax (0/xx/11/3223-1644) e correio (al.Barão de Limeira, 425, 4º andar, São Paulo-SP, CEP 01202-900). As mensagens devem ser concisas e conter nome completo, endereço e telefone. A Folha se reserva o direito de publicar trechos.

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Hospitais psiquiátricos

"O artigo de Ferreira Gullar de 12/4 ("Uma lei errada", Ilustrada) merece todas as palmas possíveis. Sou profissional da área de psicologia e também não entendo o porquê da desarticulação do tratamento público de saúde mental.
Ele está certo. Os que têm condições internam seus familiares em clínicas particulares. Os que dependem do tratamento público têm seus familiares "encaminhados" para o convívio familiar. E, muitas vezes, estes vão parar nas sarjetas ou nos manicômios judiciários (que ainda existem) após cometerem crimes. Já passou da hora de rever essa lei."
NINA CARDOSO, psicóloga (Londrina, PR)

"Excelente a crítica de Gullar. Como irmão de esquizofrênico, conheço bem a realidade dos doentes mentais, que muitas vezes necessitam, sim, de internação para que se evitem homicídios e suicídios.
O fechamento dos manicômios é um ato de crueldade, principalmente com os pacientes mais humildes."
JERSON DOS SANTOS (São Paulo, SP)

"O Conselho Federal de Psicologia manifesta-se favoravelmente à lei que instituiu um novo modelo de tratamento aos transtornos mentais no Brasil.
Muito mais que "demagogia", como escreveu Ferreira Gullar, a lei 10.216/01 representa enorme avanço em relação à política de isolamento que há séculos o Brasil dispensa aos portadores de sofrimento mental. O movimento de luta antimanicomial, que inclui profissionais que atuam diariamente com saúde mental, considera que a loucura pode e deve ter o seu lugar no mundo, que as subjetividades individuais contribuem na construção do todo social e que a aceitação das diferenças, sejam elas quais forem, faz parte do ideal de democracia da nossa sociedade. A luta antimanicomial, fundamentada no oferecimento de direitos de cidadania e de convivência social aos portadores de transtornos mentais, é um desafio epistemológico para as ciências da saúde, contra o qual muitos segmentos se colocam contrariamente, afirmando imediatismos mercadológicos, farmacológicos e de encarceramento como caminho."
HUMBERTO VERONA, presidente do Conselho Federal de Psicologia (Brasília, DF)

"Curiosamente, o termo cretino -usado por Ferreira Gullar para classificar o proponente da Lei da Reforma Psiquiátrica- é um antigo diagnóstico psiquiátrico que nomeia os portadores de cretinismo, retardo mental causado pelo hipotireoidismo congênito.Os periódicos nos indicam que também o diagnóstico que Gullar informa ser o de seus filhos -a esquizofrenia- tem sido usado com frequência como xingamento. Esse contrassenso oculto evidencia a natureza obscura do estigma e revela como pode ser escorregadio redigir sobre o campo polêmico que é o dos cuidados públicos nessa área. Penso que o articulista poderia conhecer um pouco mais sobre os familiares satisfeitos com os espaços de excelência que existem dentro da reforma da saúde mental - sim, eles existem, e tendem a não estar nos serviços particulares. Sua energia direcionada para a revogação da lei poderia ser mais produtiva se ele viesse a reivindicar a expansão necessária dessa excelência para o maior número de cidadãos brasileiros."
LUÍS FERNANDO TÓFOLI, doutor em psiquiatria pela Universidade de São Paulo (Fortaleza, CE)

PAINEL DO LEITOR (eletrônico, 13/04/2009)
http://www1.folha.uol.com.br/folha/paineldoleitor/ult10077u549614.shtml

Hospitais psiquiátricos

"O poeta Ferreira Gullar ('Uma lei errada', Ilustrada de ontem) não deveria ter o direito, por ser colunista da Folha, de falar de maneira ideológica a respeito de uma lei brasileira que está à frente do seu tempo.
Sou professora da Faculdade de Medicina da Unicamp e tenho recebido financiamento público importante (R$ 400 mil, do CNPq e da Fapesp) para realizar pesquisas sobre os serviços de saúde da reforma psiquiátrica brasileira e posso afirmar que eles têm se mostrado eficazes para a contenção de casos graves, tanto na voz dos usuários como na dos próprios familiares e gestores, em redes bem constituídas, como a da cidade de Campinas, por exemplo.
Inúmera bibliografia internacional reforça e estimula esse aspecto da legislação brasileira, que o Sistema Único de Saúde (SUS) se esforça em implementar. Temos especialistas no país inteiro trabalhando e pesquisando sobre o tema. Que a Folha deixe um colunista 'viajar' na sua história pessoal, sem outras evidências, é um fato ruim e que fala mal do rigor do próprio jornal.
Convido Ferreira Gullar a conhecer a rede pública de Campinas e me disponho a pedir autorização da Faculdade de Ciências Médicas para acompanhá-lo pessoalmente na sua visita, se ela for possível."
ROSANA ONOCKO CAMPOS, Departamento de Medicina Preventiva e Social da Faculdade de Ciências Médicas da Unicamp (Campinas, SP)

"O que entendo como desastre é que esse tipo de opinião circule em pleno 2009. Além da carrada de preconceitos com que nos brinda em seu texto pretensamente bem refletido, o senhor Gullar demonstra estar longe de conhecer o momento histórico, os antecedentes filosóficos e os avanços práticos da reforma psiquiátrica no Brasil. Será que o senhor Gullar já ouviu falar em Caps 3 e residências terapêuticas? Será que visitou um hospital psiquiátrico público para chamar de conveniente a 'contenção de crise'? O articulista precisa conhecer melhor os avanços humanos e sociais que a reforma atingiu. Precisa ler um pouquinho mais sobre o papel central que a cidadania e a liberdade têm num processo de regressão sadia de uma psicose grave. Precisa se atualizar para descobrir que não são apenas os muros dos manicômios físicos que precisamos derrubar, mas principalmente nossos manicômios mentais, que infelizmente cotinuam muito presentes."
THESSA GUIMARÃES, estudante de psicologia na Universidade de Brasília (Brasília, DF)

PAINEL DO LEITOR (eletrônico, 14/04/2009)
http://www1.folha.uol.com.br/folha/paineldoleitor/ult10077u550060.shtml

Saúde mental

"Excelente o artigo 'Uma lei errada' ( Ilustrada, 12/4), provavelmente o mais importante desde a promulgação da lei 10.216 no Brasil. Apenas tem um erro do Ferreira Gullar, pois o PL do Paulo Delgado foi rejeitado por 23 votos a 4 no Senado. Portanto, não tem 'Lei Paulo Delgado', temos portarias do MS, que implantaram todo o viés do PL rejeitado, em detrimento do cumprimento da lei 10.216. Apenas para informá-lo, o coordenador de saúde mental do MS que está lá há dez anos é Pedro Gabriel Delgado, irmão do então deputado. Infelizmente, de 120 mil leitos públicos, temos apenas cerca de 38 mil. Em compensação, mais do que duplicaram os leitos privados.Uma triste realidade. A dessasistência em saúde mental reina no país."
ANTÔNIO GERALDO DA SILVA, presidente da Associação Psiquiátrica de Brasília (Brasília, DF)

"O artigo 'Uma lei errada', de Ferreira Gullar, é uma ofensa a centenas de profissionais, pacientes e militantes dos direitos humanos e da saúde mental. É perfeitamente justo discordar da luta antimanicomial e da reforma psiquiátrica. O que é inconcebível é uma argumentação raivosa, vulgar, passional e totalmente destituída de embasamento. O poeta parece desconhecer toda a história de discussões, ações, projetos e políticas que tentam reverter o triste quadro de abandono e crueldade do encarceramento, propondo novas alternativas para os doentes psiquiátricos. Ele fala como se tudo tivesse surgido 'do nada', apenas de uma vontade superficial de 'rebelião contra a ordem social' (onde é feita uma contextualização esdrúxula do período de 'uso intensivo de drogas'). Não cita os Caps (Centro de Atenção Psicossocial), as muitas pessoas que são beneficiadas pelas atividades destes lugares (cooperativas, atividades artísticas, participação de todos como sujeitos do processo). Mostra total desconhecimento da reforma, pois ignora a existência das residências terapêuticas (além de outros casos onde o paciente não necessariamente continuaria em casa), o acompanhamento das famílias além de outros tópicos destas transformações."
GABRIEL DE BARCELOS SOTOMAIOR (Campinas, SP)

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ENTREVISTA

Poeta publicou artigo criticando Lei de Saúde Mental e fechamento de hospitais psiquiátricos. Professor da UnB rebate

Leonardo Echeverria
- Da Secretaria de Comunicação da UnB

O poeta Ferreira Gullar publicou, no dia 12 de abril, um artigo no jornal Folha de S. Paulo em que critica de forma violenta a Lei da Saúde Mental, instituída em 2002. Pai de dois doentes mentais, o poeta defende a necessidade de internação de pacientes esquizofrênicos, que podem ameaçar a própria vida ou a de familiares. "É hora de revogar essa lei idiota que provoca tamanho desastre", escreve.

O artigo provocou polêmica nos meios médicos, governamental e acadêmico. Mesmo dois dias depois da publicação do artigo, metade da seção de cartas do jornal é ocupada pelo assunto. A relevância do tema pode ser medida pelo fato que, no Brasil, cerca de 6% da população sofre de transtornos mentais severos.

Em entrevista à UnB Agência, Ileno Izídio, professor do Instituto de Psicologia, aponta os erros cometidos por Ferreira Gullar e questiona os motivos do poeta para criticar uma reforma pedida pelos movimentos sociais há mais de 20 anos.

UNB AGÊNCIA - É errado internar pacientes com doenças mentais?IZÍDIO - O artigo do Ferreira Gullar está completamente equivocado. Ele não deve nem ter lido a Lei 10.261/02. A lei propõe o desmonte dos hospitais psiquiátricos tradicionais e transformar esses leitos em leitos para internação em hospitais gerais, em atendimentos nos centros de atenção psicossocial (CAPs), em centros de convivência e em residências terapêuticas. É óbvio que ele deve ter sido beneficiado com a internação dos filhos dele, porque gente louca dentro de cada incomoda.

UNB AGÊNCIA - O poeta chamou o deputado que propôs a lei de “cretino”, porque não imagina o quanto dói a um pai ter que internar um filho, devido a ameaças de agressão. IZÍDIO - Nem todo esquizofrênico é violento, nem todos os casos precisam de internação, e a lei propõe que nesses casos a internação seja feita em hospitais gerais, que tem uma enfermaria psiquiátrica, que vai cuidar dele durante a crise. Depois o paciente volta para a sociedade e para os equipamentos que a lei propõe: CAPs, hospitais-dia. A idéia é que a internação dê conta da crise. Controlada a crise, um mês, dois meses depois, usa-se outros mecanismos.

UNB AGÊNCIA - No artigo, diz-se que o tratamento ambulatorial só serve para os casos menos graves. IZÍDIO - Ferreira Gullar está ignorando o lado da inserção social do doente. Se ele tivesse um filho em crise e precisasse interná-lo, o filho ficaria 30 dias no hospital geral, e depois seria encaminhado a um CAP perto da casa deles. O Ferreira Gullar teria que ir na terapia familiar conversar sobre o problema do filho, e não simplesmente delegar o problema para os outros. Isso é uma coisa completamente diferente de exclusão do doente do convívio em sociedade. O poeta está criticando a lei, mas está esquecendo a sua própria responsabilidade sobre os filhos esquizofrênicos. Ele prefere delegar para os hospitais psiquiátricos. Vai manter o filho eternamente dentro do hospital?

UNB AGÊNCIA - O senhor participou do movimento que apoiou a Reforma Psiquiátrica. Como se deu essa quebra de paradigma, de diminuir as internações?IZÍDIO - O que está errado no princípio da internação é que a crise e o surto psicótico cessam, e a pessoa continua internada. A luta do movimento social vem desde 1987. O Ferreira Gullar não sabe disso, porque ele não participou do movimento. Quando ele critica a lei, ele critica o movimento social. Ainda existem mais de 20 hospitais psiquiátricos no país, ao contrário do que o artigo diz, e são terríveis, manicômios tradicionais. Gullar não tem conhecimento da realidade, conhece só a realidade do filho dele. Esses hospitais já foram denunciados pelo Conselho Federal de Psicologia e pela Ordem dos Advogados do Brasil.

UNB AGÊNCIA - O senhor diz que Ferreira Gullar critica a lei sem conhecê-la. Então qual seria a reivindicação?IZÍDIO - Eu gostaria de ter atendido um dos filhos do Ferreira Gullar em momentos de crise, para saber quem é o Ferreira Gullar como pai. Eu trabalho com famílias e sei bem como a família constrói a loucura nas pessoas. Até que ponto existe a responsabilidade da família nos problemas que se quer delegar aos hospitais? Eu acho que o poeta precisa entrar em um processo de entender como os problemas mentais dos filhos se construíram com a participação dele. A pessoa que mais pode ajudar um filho é o pai, que conhece mais os filhos que os médicos do hospital. Eu me pergunto: quem o poeta está defendendo?

Todos os textos e fotos podem ser utilizados e reproduzidos desde que a fonte seja citada. Textos: UnB Agência.

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