julho 21, 2009

Crimes de guerra de Israel em Gaza: Quebrando o silêncio

Carlos Latuff
[ Amálgama ]

Crimes de guerra de Israel em Gaza: Quebrando o silêncio

Posted: 20 Jul 2009 02:20 PM PDT

Uri Avnery, no Gush Shalom / 18 de julho

Como o espectro do pai de Hamlet, a Guerra de Gaza recusa-se a dar paz às conciências em Israel. Essa semana, voltou a perturbar a tranquilidade dos chefes de Estado e do exército. A organização Quebrando o Silêncio* publicou um relatório [a íntegra, em PDF de 112 páginas, aqui] com depoimentos de um grupo de 54 soldados de Israel – relatório muito duro, sobre crimes de guerra cometidos por Israel em Gaza.

Os generais entraram imediatamente em modo de negação frenética. Se falam tanto, por que não dão os próprios nomes? – perguntaram com falsa boa fé. Por que, nos vídeos, os rostos aparecem encobertos? Por que escondem os nomes e não identificam as unidades em que combateram? Como ter certeza de que não são atores lendo textos preparados para eles pelos inimigos de Israel? Como saber que essa organização não é manipulada por estrangeiros que financiam suas ações? E como garantir que os soldados não mentem de caso pensado ou por algum motivo inconfessável?

Pode-se responder com um adágio hebraico: “A verdade sente-se.” Quem algum dia tenha sido soldado em guerra, reconhece imediatamente a verdade daqueles relatos. Todos os soldados conhecem outro soldado que não podia voltar para casa enquanto não tivesse um “x” em sua arma, mostrando que matou pelo menos um inimigo. (Um desses é personagem de meu livro The other side of the coin, escrito há 60 anos e traduzido para o inglês ano passado, como segunda parte de 1948: A soldier’s tale.) Quem esteve lá, sabe.

Os depoimentos sobre uso de bombas de fósforo, sobre bombardeio massivo de prédios, sobre o “procedimento vizinho” [ing. "the neighbor procedure"], usando civis como escudos humanos, sobre atirar para matar “tudo que se mova”, sobre usar qualquer método para evitar baixas no exército de Israel – todos eles comprovam a veracidade de outros depoimentos sobre a Guerra de Gaza; não cabe nenhuma dúvida racional sobre a veracidade do que os soldados disseram. Li, no relatório, que o “procedimento vizinho” é hoje conhecido como “procedimento Joãozinho” [ing. “Johnnie procedure”]. Só Deus sabe por que “Joãozinho”, em vez de “Ahmad”.
No ápice da hipocrisia estão os generais, a exigir que os soldados apresentem suas queixas aos comandantes diretos, de modo que o exército possa conduzir as devidas investigações pelos devidos canais.

Para começo de conversa, todos conhecemos a farsa do exército que se auto-investiga. Segundo – e ponto principal: só alguém com espírito de mártir diria ao comandante direto o que os soldados disseram naquele relatório.

A ideia de sugerir “os devidos canais oficiais” é método vil pelo qual os generais – membros do Estado-maior, portavozes do Exército, advogados militares – desviam a discussão: já não se discutem as acusações; só se discute a identidade das testemunhas. Tão desprezíveis quanto esses são também os “correspondentes militares”, falsos soldados que colaboram com os generais.

Antes de acusar os soldados que cometeram os atos denunciados pelas testemunhas, é preciso perguntar se a própria decisão de fazer aquela guerra de Gaza não levou, ela mesma, inevitavelmente, àqueles crimes.

O professor Assa Kasher, pai do “Código de Ética” do exército de Israel e um dos mais ardentes defensores da Guerra de Gaza, escreveu, num ensaio, que um Estado só tem direito de ir à guerra em contexto de autodefesa, e só no caso de a guerra ser “o último recurso”. “Todas as vias alternativas” para atingir o resultado justo “têm de ter sido tentadas e esgotadas”.

A causa oficial da Guerra de Gaza foram os foguetes lançados da Faixa de Gaza contra cidades e vilas do sul de Israel. Desnecessário dizer que é dever de qualquer Estado defender seus cidadãos contra mísseis. Mas foram tentadas e estavam esgotadas todas as vias para cumprir esse dever, em dezembro de 2008? Kasher responde com um retumbante “sim”. Seu argumento chave é que “nada justifica exigir que Israel negocie diretamente com uma organização terrorista que não o reconhece e nega-lhe o simples direito de existir.”

Não há lógica nesse argumento. Ninguém esperava que as negociações tratassem de o Hamas reconhecer o Estado de Israel ou seu direito de existir (que diferença faz que o Hamas reconheça ou não, seja o que for?). Tratava-se apenas de conseguir que o Hamás parasse de lançar foguetes contra cidadãos israelenses. Nesse tipo de negociação, o Hamas evidente e compreensivelmente exigiria o fim do bloqueio contra a população da Faixa de Gaza e a abertura dos postos de passagem de suprimentos. É perfeitamente razoável assumir que seria possível chegar a um acordo – com a ajuda dos egípcios – que incluísse também a troca de prisioneiros.

Essa via não foi esgotada. Pior: essa via não foi sequer tentada. O governo de Israel obcecadamente se recusou a negociar com uma “organização terrorista”, além de recusar-se a negociar também com o governo da Autoridade Palestina, no qual o Hamas estava representado.

Portanto, a decisão de iniciar a Guerra de Gaza, contra população civil de 1,5 milhão de pessoas, permanece injustificadda, mesmo sob os critérios do próprio Kasher. “Todas as vias alternativas” não haviam sido esgotadas nem, de fato, haviam sido tentadas. O que todos sabemos é que, além da “justificativa” oficial, houve também uma “justificativa” não-oficial: a guerra de Gaza foi feita para derrubar o governo do Hamas eleito na Faixa de Gaza. Durante a guerra, os portavozes oficiais diziam que era necessário provocar morte e destruição não exclusivamente entre os próprios “terroristas” (o que teria sido impossível), mas com o objetivo de fazer da vida da população civil “um inferno”; em seguida, a própria população se rebelaria e derrubaria o Hamas.

A ineficácia dessa estratégia só é comparável à imoralidade: a própria experiência já ensinou os israelenses que esses métodos só fizeram aumentar a determinação da resistência e unir a população cada vez mais em torno de sua valente liderança.

A Guerra de Gaza teria sido possível sem que se cometessem crimes de guerra? Quando um governo decide mandar seu exército regular combater guerrilheiros, os quais, por sua natureza, vivem misturados à população civil, é evidentemente claro e inevitável que a população civil sofrerá atrozmente. O argumento afirma, portanto, que o sofrimento infligido à população, o assassinato de mais de mil homens, mulheres e crianças sempre foi previsto. O que obriga a concluir que a decisão de iniciar a Guerra de Gaza foi ato terrível desde a concepção, desde o planejamento.

As Forças de Defesa, o Exército de Israel, procuram hoje a via mais rápida para escapar de qualquer julgamento. Ministros e generais repetem que não acreditam nos relatórios palestinos e de grupos internacionais, nem nos números de vítimas e de prédios destruídos; repetem, como fez Kasher, que os dados são “errados e falsos”. Para garantir que nada e ninguém os desminta, decidiram boicotar a comissão de especialistas da ONU que atualmente investiga a guerra, presidida por um respeitado juiz sul-africano (que é judeu e sionista).

Assa Kasher adota posição similar, ao dizer que “Quem não conheça todos os detalhes de uma ação não a pode avaliar de modo sério, profissional e responsável; portanto, não deveria nem tentar fazê-lo, apesar de todas as tentações políticas e emocionais”. Quer que Israel espere pelo fim das investigações que o exército está fazendo, antes até de o país começar a discutir o assunto.

O que significa isso? Organizações que se auto-investigam não merecem confiança, sobretudo no caso de corpo tão marcado pela hierarquia, como o exército. Além disso, o exército não tem – nem poderá ter – acesso ao depoimento das principais testemunhas oculares: a população de Gaza. Uma investigação em que só se considere o testemunho dos suspeitos, não das vítimas, é ridícula. E nem os depoimentos reunidos no relatório da organização Quebrando o Silêncio serão considerados, porque são depoimentos anônimos.

Numa guerra entre exército regular, equipado com o armamento mais sofisticado do mundo, e organização de guerrilha, surgem várias questões éticas. Como os soldados devem agir em luta contra uma estrutura formada não só de combatentes, que os soldados têm autorização para atacar, mas, também, de cidadãos desarmados (que nenhum soldado pode atacar)?

Kasher cita várias dessas situações. Por exemplo: um prédio onde haja “terroristas” e civis desarmados. Pode ser alvo de ataque aéreo ou de artilharia que matará todos, ou o exército deve mandar brigadas para avaliar o risco (e arriscar a vida), evitando assim atingir civis? A resposta de Kasher é clara: nada justifica arriscar a vida de soldados israelenses para salvar vidas de civis inimigos. Israel deve optar pelo ataque aéreo ou de artilharia sem expor seus soldados a qualquer risco para avaliar “no terreno”.

Isso evidentemente não responde à questão de usar aviões de Israel para destruir centenas de casas, tão distantes dos soldados israelenses que não implicavam qualquer ameaça a eles; nem justifica assassinar dezenas de formandos de uma escola militar palestina reunidos em solenidade de formatura; nem justifica atacar um comboio de mantimentos e assassinar os funcionários da ONU que viajavam nos caminhões. Nem justifica usar bombas proibidas de fósforo branco contra civis (denunciado por um dos veteranos cujo depoimento foi publicado pela Quebrando o Silêncio) ou usar urânio empobrecido e outras substâncias carcinogênicas.

Em Israel, todos viram em noticiário de televisão “ao vivo” o apartamento de um médico ser atingido por uma bomba que matou praticamente toda a família. Há muitos depoimentos de civis palestinos e de observadores internacionais que falam de vários, inúmeros, bombardeios iguais àquele.

O exército israelense orgulha-se muito da tática de avisar os moradores de cada região a ser atacada, mediante panfletos, telefonemas etc., o que lhes daria oportunidade de fugir. Mas todos – a começar pelos militares israelenses que distribuem os panfletos e dão os telefonemas – sabem sempre que os civis “avisados” não têm local seguro para onde ir e não há vias de fuga desimpedidas e seguras. A verdade é que muitos civis palestinos foram assassinados precisamente quando tentavam fugir.

Israel não pode fugir à mais difícil das questões morais: deve-se arriscar a vida dos soldados israelenses para salvar velhos, mulheres e crianças “inimigas”? A resposta de Assa Kasher, ideólogo do “Exército mais moral do mundo”, não deixa espaço a dúvidas: é absolutamente proibido pôr em risco a vida de soldados israelenses. A mais impressionante frase de todo o ensaio é: “Portanto (…) o Estado de Israel deve dar prioridade à vida de seus soldados, acima da vida de outras pessoas (desarmadas) próximas a terroristas.”

É preciso ler e reler, duas, três vezes, essas palavras, para perceber todas as implicações. O que aí se diz é claro: se preciso, para evitar baixas de soldados israelenses, recomenda-se assassinar civis inimigos sem qualquer restrição.

Aí está o princípio que guiou o exército de Israel em Gaza e, até onde sei, é doutrina nova: para evitar baixas no exército de Israel, Israel está autorizada a assassinar 10, 100, 1.000 civis inimigos. Guerra sem risco ou limite moral. Os números estão aí: mais de 1.000 palestinos mortos em Gaza, um ou dois terços dos quais (dependendo da fonte da informação) civis, mulheres e crianças; e seis (6) soldados israelenses mortos sob fogo inimigo (outros quatro morreram em ataque de “fogo amigo”.)

Kasher escreve claramente que Israel pode assassinar uma criança palestina que esteja em companhia de uma centena de “terroristas”, porque os “terroristas” lançam rojões em Sderot. Na verdade, o caso é outro: Israel assassinou uma centena de crianças palestinas porque estavam próximas de um “terrorista”.

Se se arrancam os ornamentos dessa doutrina, resta um princípio simples: o Estado de Israel deve proteger a vida de seus soldados a qualquer preço, sem qualquer limite, independente de qualquer lei. Guerra sem perigo de morte. Assim Israel chegou à tática que o autoriza a matar qualquer ser humano e a destruir qualquer construção que, de algum modo, represente algum perigo para os soldados (para abrir espaços vazios à frente da tropa que esteja avançando).

Só há uma conclusão possível: doravante, toda e qualquer guerra que Israel decida iniciar em terreno no qual haja construções será, desde a decisão de ir à guerra, crime de guerra.

Todos os soldados que denunciem esse tipo de crime são heróis. Benditos sejam.

—–

* Breaking the Silence é uma organização ativa em Israel que reúne e publica depoimentos de soldados israelenses que queiram testemunhar sobre violações de direitos humanos cometidas por militares. Site: breakingthesilence.org.il.

[ tradução do artigo: Caia Fittipaldi ]

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