julho 22, 2009

"Para espantar as tristezas"

Rogério Sena
Encontro Nacional de Saúde Mental
Foto: Rogelio Casado - Belo Horizonte-MG, julho/2006

"Para espantar as tristezas"

O artista plástico Rogério Sena vence a Bienal de Arte Naif e chama atenção para seu trabalho. Portador de sofrimento mental, sua obra dá novo sentido à arte primitiva

Sérgio Rodrigo Reis


Ainda criança, inspirado pelo talento do pai, um caminhoneiro que gostava de desenhar nas horas de folga, Rogério Sena começou a rascunhar os primeiros trabalhos artísticos. A mãe olhava tudo aquilo meio de lado, e o menino, à medida que crescia, passou a se isolar em seu mundo particular. “Via os garotos brincando, era tímido e, para me aproximar, comecei a tomar umas bolinhas que davam alucinações”, lembra o artista. Assim começa a incrível história de Rogério Sena, portador de sofrimento mental nascido na periferia de Belo Horizonte, que, ano passado, venceu o mais importante prêmio de arte primitiva do Brasil, a Bienal de Arte Naif de Piracicaba.

A trajetória de vida ainda reservava muitas atribulações. Cada vez mais ansioso, inquieto e com crises nervosas, numa atitude extrema a mãe levou o garoto para o início da série de internações em hospitais psiquiátricos, algo que se tornaria rotineiro na vida de Rogério. As marcas profundas daquela fase permanecem na sua formação psíquica, na maneira como entende o mundo e na retomada do sentido da existência por meio do processo artístico.

Os traumas de Rogério Sena duraram até 1993. O artista foi um dos inúmeros que deixaram os hospitais psiquiátricos para ser tratado pelos serviços alternativos implantados na capital. Naquele momento, reencontrou a arte. “No Hospital Raul Soares tive acesso pela primeira vez aos pincéis, à técnica da cerâmica e a outros materiais”, lembra. O que surgiu a partir dessa convivência foram pinturas autobiográficas, registrando o dia a dia de preconceito, exclusão, dor e algumas alegrias. “Pinto o cotidiano da vida, ando na cidade e o que vejo passo para a tela. Nos quadros, as pessoas nunca têm rosto, porque, em geral, quando ando pelas ruas não olham para mim. É difícil ver alguém se cumprimentando. Fico refletindo sobre isso na hora de criar.” O processo é bem mais complexo.

Ritmo, movimento, personagens e temas recorrentes formam o repertório visual de Rogério Sena. Cenas de danças, de manifestações étnicas, de brincadeiras de crianças e símbolos abstratos aparecem sempre nas telas com uma explicação específica. “As pessoas acham meus quadros muito vistosos, coloridos e imaginam logo que quando pintei estava feliz. É o contrário. Quando o fiz estava bastante deprimido. ‘Taco’ cor para espantar as tristezas”, justifica. O preconceito ele transforma em símbolos negros que se multiplicam pelo espaço. “Perdi a conta de quantas vezes sofri preconceito por ser negro. Chego em certos lugares, como galerias e centros culturais, e as pessoas ficam me vigiando, os seguranças me seguindo. Fico incomodado. Percebi mais quando comecei a entrar no movimento da luta antimanicomial, no Centro Artur Bispo do Rosário”, diz.

Reconhecimento

A urgência da obra visual de Rogério Sena foi descoberta por acaso. Há 10 anos, o marchand Orlando Lemos circulava por uma feira de artesanato realizada do Minascentro, em Belo Horizonte, quando, entre centenas de obras, teve a atenção despertada por um quadro incomum. “Os artistas primitivos de hoje, em geral, sabem onde querem chegar. Existe uma cultura préestabelecida, estão pretensiosos e ficam se repetindo. No caso de Rogério Sena, estava diante de algo imprevisível.” Desde aquela época, Orlando passou a promover o artista, vender sua obra e foi nesse processo que seu trabalho chamou a atenção dos principais críticos brasileiros, jurados da Bienal de Arte Naif. O evento, realizado na cidade paulista de Piracicaba, recebeu dois quadros enviados pelo marchand. O artista não sabia do concurso. O resultado da premiação o pegou de surpresa. “É um reconhecimento. Ainda mais porque não sabiam que eu era portador de sofrimento mental. Premiaram minha obra e elogiaram bastante.”

A maneira de Rogério trabalhar é peculiar. De origem humilde, vive com a família na região da Pampulha e, todos os dias, vai até o Centro Artur Bispo do Rosário pintar. Lá tem seu canto, seu armário, onde guarda o material, as tintas e as lonas que usa para recriar os temas. Não gosta de gente por perto. “Quando quero conversar com Deus fico meio sozinho.” É quando surgem os quadros. “Tem uns que saem de imediato. Olho para a tela e pá! Outras são mais demoradas, depende do momento. Se estou deprimido, sai algo alegre e vice-versa. Sou contra a proposta acadêmica de desenhar antes e depois pintar. Vou criando na hora, o barato na arte é ser espontânea, não calculada, nem medida.” Ele não sabe ao certo onde deseja chegar depois que se tornou conhecido. A única certeza é que passou a se sentir um pouco incomodado ao ser reconhecido por algumas pessoas e por não ter conquistado o devido valor no ambiente familiar. “Não tenho nenhum quadro meu em casa. Não dão o devido valor. Sou conhecido em várias partes do Brasil e em casa não”, reclama.

Depois que venceu o prêmio, Rogério passou a buscar mais informações sobre o funcionamento do mercado. Antigamente, vendia sua produção nas feiras e, hoje, é representado pela Belizário Galeria de Arte. “Sei mais ou menos como funciona. Este mercado está cheio de espertalhões. Tem vários artistas famosos que acabaram morrendo pobres. Atualmente, tudo que faço vendo, pego o dinheiro e compro mais tela e tinta”, explica. Seu trabalho ainda se desenvolve de maneira improvisada. Como não possui ateliê, usa um espaço cedido pelo Centro Artur Bispo, onde pinta nos intervalos das oficinas. Numa mesa coloca a lona e as tintas. Apesar da precariedade das condições, seu trabalho melhora a cada dia.
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