setembro 30, 2009

Leia o que a matéria do Globo não revelou ao respeitável público

Edmar Oliveira
Foto postada em meionorte.com
Nota do blog: O texto abaixo foi publicado no Jornal do Brasil (lembram dele?) e postado na Coluna do Edmar na Casa Lima Barreto. O Edmar Oliveira é pai e mãe do Piauinauta (veja na coluna de links).

A Reforma Psiquiátrica e o Carangueijo

Escrito por Edmar
Ter, 29 de Setembro de 2009 00:00


Há nove anos, com uma equipe dirigente moldada pelos ideais da Reforma Psiquiátrica, o Instituto Municipal Nise da Silveira vinha desenvolvendo um projeto de desintitucionalização do antigo hospício, herdeiro do Hospício de Pedro II, primeiro manicômio da América Latina. Por essa herança, sabíamos que os acontecimentos ou chamavam atenção para que fosse possível “uma sociedade sem manicômios”, lema da Reforma Psiquiátrica, ou correntes contrárias teriam mais força em impedir o desenvolvimento pleno da proposta.

A proposta em execução previa a saída para a comunidade de Centros de Atenção Psicossociais (CAPS: dispositivos substitutivos ao velho manicômio), a transferência da emergência psiquiátrica para uma emergência geral e a transformação dos pacientes crônicos do hospital (de 3 a até 40 anos de internação) em cidadãos regulados por um programa de Moradia (baseado na portaria ministerial 106/2001 que cria os Serviços Residenciais Terapêuticos). Essa construção foi executada nesses nove anos de uma mesma gestão, que permanecia enquanto mudavam governos (fato raro no Brasil). Assim se fez o CAPS Clarice Lispector no Encantado, o Torquato Neto no bairro de Maria da Graça e o CAPS infanto-juvenil na Piedade, este último encerrando uma tradição de anos de internações de crianças no Engenho de Dentro. A emergência psiquiátrica especializada foi juntada à emergência geral do PAM Del Castilho, qualificando um atendimento integral de que o paciente tem mente e corpo (na emergência psiquiátrica um paciente gritando com dor no peito nunca é infarto e sim “agitação psico-motora”). Estes resultados foram animadores e possíveis apenas pelo redirecionamento de recursos públicos (pessoal, contratos, orçamento) do hospital para os serviços novos. Apenas um direcionamento e ações de gestão pública, porque sabemos da dificuldade de se obter novos recursos. Mas a intenção de trocar de lugar é possível e cria novos serviços com pedaços do velho e com melhores resultados para a população.

No projeto de Moradias foram tirados das enfermarias todos os pacientes moradores do hospital e oferecidos apartamentos em comunidade e também foram ocupadas as residências e locais que mais se pareciam com casa dentro do campus do Instituto. São 122 moradores, que agora possuem identidade, CPF, quase todos tem bolsa auxilio à desospitalização ou outro beneficio, porque a cidadania exige dinheiro. De vidas soterradas no manicômio voltaram a viver e há histórias emocionantes que se contam. Como a de Valdecir e sua viagem de avião com recursos próprios e a do Seu João Barbeiro, que com o seu auxilio foi aceito por sua pobre família no Vale do Jequitinhonha e já lá mora a mais de dois anos, depois de mais de 30 anos de internação no manicômio.

Mas ou o projeto avança ou recua, não pode ficar no estágio que se encontra. O Hospício tem uma capacidade enorme de regeneração. E há nove meses nesta nova administração da prefeitura, esperamos um avanço na proposta que levou nove anos para ficar pronta. Não houve diálogo. Nosso antigo hospital federal (que foi municipalizado) tinha sua estrutura vertebral nos servidores federais. Desde janeiro a prefeitura resolveu que estes cargos só podem ser ocupados por servidores municipais, o que inviabiliza nossa administração e arranha os princípios do SUS, quando transforma esses servidores em agentes do SUS de segunda categoria. No inicio do ano houve um corte linear de 25 % nos contratos, que já tínhamos enxugado ao máximo na nossa obsessão de gestor público. Um contrato de Vigilância reduzido a três homens à noite para 78.000 m2 de área do antigo complexo hospitalar nos coloca em situação de risco irresponsável. A paralisação do serviço de manutenção hospitalar (que já era precário antes do corte) inviabilizou pequenos reparos com deterioração da estrutura física (há um projeto de reforma do local de leitos hospitalares que foi feito na gestão anterior e esquecido nesses nove meses). A paralisação das duas caldeiras (falta de manutenção) ocasionou demora na confecção de alimentos e interdição da lavanderia. Estes (e teriam outros) são atos que inviabilizam a nossa gestão e por isso pedimos a nossa demissão, apesar do pesar de deixar um projeto que quase ficava pronto e nos foi muito caro.

Nesse vácuo, logo vem as denúncias e fotos de pacientes descuidados confundindo a falta de condições de trabalho com a clínica prestada aos pacientes. E as corporações se apressam a queixarem-se de falta de pessoal, esse buraco negro na gestão pública. Isso é apenas a ponta do iceberg. O grande problema escondido (muitas vezes já explícito) é um ataque ao SUS, esse ambicioso plano de saúde, que apesar das dificuldades e da falta de recursos, tem o melhor resultado no combate a AIDS no mundo e um Programa de Saúde Mental que vinha se firmando como um dos melhores do planeta (a mudança do financiamento ao Programa no final do ano passado paralisou seu crescimento). Certamente a nossa crise atual tem a ver com isso. Mas somos apenas uma parte do ataque ao SUS. Isso que parece uma crise na Saúde Mental logo vai ser revelada em toda a rede hospitalar se não houver mudanças nas intenções.

E logo agora que o Barack Obama resolve fazer um SUS para os americanos. O Barack sabe o que nossos burocratas ignoram: os planos de saúde só funcionam numa sociedade próxima ao pleno emprego, como era a americana até as últimas crises. Com 18 milhões de desempregados, como agora, haverá um genocídio que o Obama quer evitar na sua cruzada contra os interesses de grupos financeiros. Enquanto os EUA copiam nosso SUS, nós o jogamos na lata do lixo da história e anunciamos uma tragédia. Andamos pra trás feitos caranguejos. A Saúde Mental no Rio de janeiro é apenas o primeiro caranguejo.

Edmar Oliveira foi diretor do Instituto Municipal Nise da Silveira por 9 anos e 9 meses, de onde acaba de pedir demissão. Tem pós-graduação em psiquiatria e gestão pública e recentemente lançou um livro (Ouvindo Vozes, ed. Vieira & Lent, RJ, 2009).

Fonte: Coluna do Edmar - Casa Lima Barreto
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