outubro 26, 2009

Televisão e Educação: fruir e pensar

Nota do blog: "O radical ingênuo condena; o radical de base, estuda." (Zefofinho de Ogum)

Rosa Maria Bueno Fischer. (2001). Televisão e Educação: fruir e pensar a TV. Belo Horizonte: Editora Autêntica.

Resenha:
http://edrev.asu.edu/reviews/revp25.htm

Resenhado por Gilka Girardello
Universidade Federal de Santa Catarina
Outubro 5, 2004

A televisão e a escola costumam ser colocadas em campos adversários do debate social. Este livro nos ajuda a olhar a questão por fora dessa “lógica de torcedor de futebol”, com muito mais complexidade e ousadia intelectual. O interesse da autora Rosa Maria Bueno Fischer é pensar a televisão com o apoio das teorias contemporâneas da subjetividade e da cultura. O que interessa a ela é imaginar “possibilidades concretas de análise que dêem conta da TV simultaneamente como linguagem e como fato social” (p.17) Isso ela faz com estilo e consistência, de modo que o livro, apesar de seu despretensioso tamanho de bolso, já é leitura obrigatória para os educadores interessados em trabalhar a televisão na sala de aula.

A autora começa destacando a importância social e política de se estudar a mídia, e especialmente a TV. Ela presta atenção ao caso concreto da televisão brasileira e às linhas de força que, passando por ela, tecem a subjetividade do país inteiro. Afinal, como já disse Eugênio Bucci, “se tirarem a TV, o Brasil acaba” – referindo-se à centralidade do imaginário televisivo para a identidade cultural do país.

Um dos méritos do trabalho é justamente esse enraizamento concreto no cotidiano brasileiro. Como exemplo do quanto a prática em sala-de-aula pode desestabilizar tanto alunos como professores, Rosa Fischer narra a incredulidade de um grupo de estudantes de pedagogia gaúchas diante de algumas críticas acadêmicas à rainha dos baixinhos: “Isso aí eles inventaram”(...) “Professora, será que não dá pra entender, nós nascemos e já tinha a Xuxa na TV, a gente mamou vendo a Xuxa, se criou diante da TV cantando e dançando com a Xuxa” (p.23). O show do milhão de Sílvio Santos e o programa de Jô Soares ilustram o conceito de espetacularização da vida cotidiana; o Programa do Ratinho e os reality-shows da TV Globo são citados como cenários da publicização da vida privada que confunde encenação e “realidade”. Salta aos olhos o compromisso imediato da autora com o aqui-e-agora dos educadores brasileiros, que não podem mais desconsiderar a televisão, “esse meio de comunicação que se tornou para nós, especialmente para nós, brasileiros, absolutamente imprescindível, em termos de lazer e informação.”(p.51-52)

A autora procura mostrar como é limitado investigar-se apenas as supostas “influências” da mídia, ou ir em busca de uma verdade que estaria escondida “por trás” do que aparece na TV. Nesse sentido, seu trabalho vai em direção oposta às propostas de leitura crítica das mídias que levam em conta apenas os conteúdos dos textos midiáticos. O trabalho está a léguas, também, das abordagens marcadas por um determinismo simplista, quer do tipo que celebra o advento de uma nova espécie humana que seria fruto da tecnologia, quer do tipo que lamenta a nova “idade das trevas” a que as mídias estariam nos condenando. No olhar da autora sobre a relação entr ecomunicação e educação, o central é a cultura.

O conceito de cultura ancora-se aí na perspectiva ampla que, a partir de Stuart Hall, abarca segundo a autora “o conjunto complexo e diferenciado de significações relativas aos vários setores da vida dos grupos sociais”, como “as linguagens, a literatura, as artes, o cinema, a TV, o sistema de crenças, a filosofia, os sentidos dados às diferentes ações humanas”(p.25). A definição é elástica mas nem por isso vaga: “falar em cultura”, diz Fischer, “implica em falar de um campo muito específico, qual seja, o da produção histórica e social de significações numa determinada formação social.” (p.26)

Assim, mergulhar no estudo da novela das oito ou do cinemão comercial é também mergulhar no estudo da cultura, já que nesses materiais encontram-se, como aponta Fischer, “fábulas que nos traduzem e que simultaneamente nos produzem.”(p.26). A compreensão das diferenças qualitativas – éticas, estéticas – desses produtos entre si e em relação aos cânones da tradição artística e literária faz parte, justamente, dos objetivos de uma educação atenta ao presente e à experiência cotidiana das pessoas.

Tal tarefa de discriminação nada tem de mecânica ou autoritária, porém. Não se trata de fazermos das salas-de-aula tribunais que decidam, como se fazia nos primórdios da televisão brasileira, que discos (ou filmes, programas) serão destruídos em praça pública por não se enquadrarem num padrão de qualidade arbitrário e em geral elitista. O que autora defende é um trabalho pedagógico que inclua, além de uma detalhada reflexão sobre como as linguagens da televisão são construídas, também “uma franca abertura à fruição”. Nessa dialética entre pensar e fruir a TV – destacada no próprio título do livro – reside outra contribuição importante do trabalho.

Quem “frui” a televisão é quem a assiste. É comum que, em reuniões de professores para discutir as mídias, surjam críticas à baixa qualidade daquilo que os pais das crianças assistem em casa, ou permitem que seus filhos assistam – críticas, enfim, à falta de critérios para o consumo midiático. O curioso é que muitas vezes esses mesmos professores também passam boa parte de seu tempo assistindo aos mesmos programas que condenam como “tolos”, ou “irreais”. E não estamos falando aqui apenas de professores de ensino fundamental, o que seria incorrer no mesmo erro de projetar sobre o outro nossas próprias sombras, mas de educadores em todos os níveis. Estamos falando, em suma, de todos nós, cuja vida simbólica é inevitavelmente marcada pela tensão entre prazer e crítica, entre fruição e pensamento.

Rosa Maria Bueno Fischer nos lembra disso: investigar a televisão, particularmente no Brasil onde ela tem tanta força na construção do imaginário social, significa investigar a nós mesmos, e a nossos humanos processos de construção enquanto sujeitos.

A autora ilumina a investigação sobre televisão e subjetividade com apoio em pensadores de primeira linha, a começar por Foucault, referência importante também em outros de seus trabalhos anteriores. Para discutir a mistura entre o público e o privado tão característica da dieta televisiva contemporânea, com suas tantas versões de reality shows, a autora recorre a Hannah Arendt. A filósofa alemã, lembra Fischer, ensinava que o termo“privado” significava “um estado no qual o indivíduo se privava de alguma coisa; no caso, entre os gregos, aquele que não participava da esfera pública estava ‘privado’ de algo absolutamente essencial e, como tal, não podia considerar-se ‘inteiramente humano’”(p.38). Numa interessantea plicação do conceito à exibição da intimidade na TV e ao correspondente voyeurismo da audiência, Fischer comenta:

Para Hannah Arendt, essa ampliação da esfera privada não a transforma em pública, pelo contrário, significa que a esfera pública refluiu e também que estar na companhia uns dos outros parece ter perdido força, ficamos cada vez mais “privados” de ver e ouvir profundamente os outros, prisioneiros que somos de nossas subjetividades. (p.38-39)

Mas, se não conseguimos ver bem os outros, Fischer parece dizer que tampouco vemos direito a nós mesmos. Ela se inspira em Júlia Kristeva, para quem a torrente de imagens na cultura contemporânea provocaria um bloqueio em nossa vida psíquica, dificultando a tarefa de nos auto-representarmos. Para Fischer, talvez seja isso o que tanto nos atraia na exposição da intimidade alheia na TV: “A dificuldade de viver nossa privacidade, de ficar talvez no silêncio de nós mesmos, nos impele para o íntimo do outro, como se nele buscássemos o que perdemos” (p.39). Se a psicanalista Kristeva recomenda que o trabalho terapêutico estimule a imaginação, Rosa Fischer diz que o mesmo deve ser feito, urgentemente, pela educação: provocar as pessoas a imaginarem a si mesmas e abrirem-se àimaginação em relação “ao outro, aquele que é diferente de nós”.

Ao defender o estudo dos “outros” através das imagens de TV, a autora faz uma discussão sobre a questão da diferença que é ao mesmo tempo consistente e cristalina. Usando sempre exemplos familiares ao telespectador brasileiro, ela pontua os conceitos necessários à reflexão sobre o tema: representação, enunciação, interpretação, comunicação. De que modo a TV mostra grupos sociais, como gays, negros, idosos, mulheres, crianças marginalizadas? Como são nomeados os sem-terra, os adolescentesde periferia? Até que ponto, pergunta ainda a autora, grupos como esses são mostrados pela TV como diferença a ser excluída, ou ao contrário, reconhecida?

Se a “operação da mídia” é dar nome às diferenças, a “operação do educador” deve ser a de desnaturalizar esses nomes, propõe ela. Ou, diríamos, balançar a fé cega dos espectadores naquilo que vêem, instalar perguntas e tensões sobre as imagens de pessoas, grupos e papéis sociais cuja repetição vai se constituindo em efeito de verdade.

Falar da imagem do outro é também falar da imagem do corpo do outro. Entre os temas destacados pela autora está o chamado da mídia a que transformemos o nosso corpo. Isso, não apenas através da exibição dos corpos-modelos que deveríamos imitar para sermos amados e bem-sucedidos, mas também nos conselhos dos especialistas –médicos, psicólogos, nutricionistas, gurus de todos os tipos – que entram em nossa casa pela TV para dizer “ o que devemos fazer com o nosso corpo e nossa sexualidade” (p.50). Fischer lembra que essa incorporação do discurso especializado pela mídia acaba por conferir a ela um poder de verdade e seriedade.

O que podem os educadores fazer diante de tudo disso? A autora resume: “apropriar-se desse meio, estudar suas estratégias de endereçamento, de criação de imagens e sons, compreender a complexa trama de significações que aí estão em jogo”. (p.51)

Como um exemplo de trabalho pedagógico, é sugerida a comparação entre diferentes programas de TV, vídeos e filmes, procurando investigar quais deles são mais indutivos – os que dizem ao espectador o que ele devesentir, pensar, crer - e quais os que dão espaço à ação criativa, à imaginação e ao pensamento. Implícita na idéia está o saudável e antiapocalíptico pressuposto de que a televisão não é homogeneamente danosa à imaginação e à inteligência, e sim um meio atravessado pelas mesmas tensões e embates que caracterizam a sociedade inteira. Daí aimportância de um trabalho pedagógico que, como o que é defendido no livro, aposte na construção de critérios voltada ao aprendizado de uma “cidadania cultural”.

Enquanto o primeiro capítulo do livro enfatiza a importância social e política do tema, o segundo (“As imagens e nosso olhar atento: com que linguagens opera a TV?”) vai além da descrição dos aspectos técnicos da linguagem audiovisual. A proposta aqui é a de que uma pedagogia da imagem deveria ser capaz de instigar os espectadores a produzir algo para além das imagens, a fazer algo com elas ao invés de olhá-las desatentamente. Numa bonita reflexão filosófica sobre o olhar, a partir de Marilena Chaui, a autora fala da necessidade de um trabalho que nos leve a “ultrapassar as chamadas evidências, a ir além do que nos é dado ver de imediato” (p.55). Fala-se aí, mais uma vez, da importância da fruição das imagens, de um olhar que, na busca de ser crítico, seja também poético (no sentido de um fazer inventivo e criador contido na palavra poiesis).

A ênfase naquilo que o olhar “pode” – no poder do olhar - e não em uma passividade supostamente inevitável é central para o trabalho pedagógico com as imagens. Com essa ênfase, mas sem abrir mão da complexidade do tema, Fischer situa as características da linguagem audiovisual, informa sobre a produção de imagens na cultura, discute a relação entre palavra e imagem na TV, e a relação entre os produtos e seus públicos.

É particularmente rica a discussão sobre as condições concretas de produção das imagens e narrativas midiáticas, que a autora faz a partir de sua própria experiência de muitos anos como jornalista e criadora de programas de televisão. Escrever para a tevê, como ela aprendeu, envolvia “dissertar menos”, “narrar mais” e “era fundamental mostrar”. Examinar o tema também a partir da produção sem dúvida amplia e enriquece o estudo da linguagem da televisão. Fischer está, também aqui, em sintonia com os estudos de comunicação e cultura contemporâneos que advogam a necessidadede se levar em conta não apenas os textos, nem apenas o público que os lê, mas todo o ciclo do processo comunicativo.

Quem sabe escrever numa linguagem lê melhor nela do que quem só sabe ler. Por isso é tão importante entendermos a relação entre mídia e educação como algo maior do que sugere uma compreensão limitada do que seria a “leitura crítica” das mídias. Para aprender realmente a ler, é preciso que as crianças possam também experimentar suas possibilidades de escrever para as mídias, em experiências de produção como as tantas que acontecem hoje no Brasil, em escolas e projetos comunitários: com fotos de latinha, jornais, vídeos, internet. De uma forma original, o livro de Rosa Maria Bueno Fischer chama atenção para isso.

No item “As relações entre discurso e representação no estudo da TV”, a autora como que cria uma janelinha hipertextual, abrindo para uma discussão mais epistemológica. Sempre com limpidez, a autora estabelece um diálogo entre o conceito de discurso em Michel Foucault e o de representação em Stuart Hall.

Fischer dá ao leitor o bônus de uma proposta de roteiro para análise de produtos televisivos. Embora o roteiro seja apresentado na forma de seis perguntas, não se trata de um questionário fechado que possa ser “aplicado” mecanicamente, mas, ao contrário, de temas geradores amplos, acompanhados de uma discussão teórica que os clarifica e amplia.

A pergunta número um é “Que tipo de programa é esse?”, e envolve a discussão sobre tipos de programas, gêneros, formatos. A autora tem claro quanto são tênues as fronteiras nesse campo, mas destaca a importância de elas serem discutidas, até porque as categorias fazem parte da própria relação que o público estabelece com os programas. E, como faz em todo o livro, a autora aponta caminhos para o aprofundamento da discussão ems ólidas notas de rodapé.

A segunda pergunta refere-se às formas como o produto midiático procura chegar ao público: “quais os objetivos desse artefato? Quais suas estratégias de veiculação? A quem se endereça?” A autora remete às questões desenvolvidas por Elizabeth Ellsworth, que sugere perguntarmos, diante dos textos televisivos: “quem este programa pensa que você é?” e “quem este programa quer que você seja?” (p. 97)

A terceira questão (“Qual a estrutura básica do programa?”) procura instigar a reflexão sobre formas narrativas e estratégias sintáticas de construção da linguagem.

A quarta pergunta (“Afinal, de que trata este programa? Quem fala e de que lugar?”) provoca o levantamento dos temas em pauta em cada programa, ligados à escolha das pessoas que vão apresentá-los. A quinta questão é: “com que linguagens se faz este produto?”, onde a discussão teórica sobreum grande leque de aspectos de linguagem do texto televisivo se revelaparticularmente inpiradora ao trabalho com as mídias em sala de aula.

A última pergunta amarra mais amplamente a comunicação e a educação: “que relações fazer entre esse artefato da mídia e outros problemas, teorias ou temáticas de interesse para a educação?” A cada linha é sugerida uma abordagem, uma proposta de atividade, a idéia para um projeto. Cada sugestão abre um leque de provocações sobre nossa sociedade, sua dimensão cultural, as lutas políticas e simbólicas que nela se travam. Mergulhar no universo do estudo desse objeto, a televisão é, como diz Rosa Maria Bueno Fischer, “participar de uma investigação permanente sobre nós mesmos, nossa cultura, as relações de poder em nossa sociedade, os modos de construir sujeitos e de interpelar indivíduos e grupos sociais.”

O livro se completa com um capítulo muito útil, escrito por Sylvia Magaldi, sobre a TV como objeto de estudo na educação. Baseado na experiência prática da autora com projetos de ensino que incluem televisão e oficinas de educação para e com a TV, esse capítulo traz referências de filmes, vídeos e outros materiais, junto com uma série de temas a serem trabalhados em oficinas de educação para a televisão com professores. A grande riqueza desta seção está nas indicações de vídeos a serem exibidos, a maioria deles fáceis de conseguir, e na adequação entre a discussão conceitual feita anteriormente no livro e a experiência concreta de Magaldi nas oficinas para professores.

A lista de livros e sites interessantes feita por Fischer, ao final, exemplifica bem as características gerais do trabalho: rigor investigativo, generosidade intelectual, e uma atenção aos detalhes do presente brasileiro, em que a educação e a televisão – e particularmente a educação para a televisão - são temas dos mais cruciais.

Acerca da autora do livro

Rosa Maria Bueno Fischer é professora da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), Brasil. É doutora em Ciências Humanas e Educação, pesquisadora do CNPq -- Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico. Orienta investigações de mestrado e doutorado no Programa de Pós-Graduação em Educação da UFRGS. Seus estudos articulam as relações entre educação, arte, mídia e modos de subjetivação na cultura. Tem se dedicado particularmente a estudos sobre mídia e juventude. Além do livro "Televisão & Educação", escreveu "O mito na sala de jantar" (Porto Alegre: Editora Movimento, 1993, 2a. edição), que trata das narrativas televisivas e das mitologias de nosso tempo, analisadas sob o ponto de vista de crianças e adolescentes de escolas públicas do Rio de Janeiro.

Acerca da resenhadora

Gilka Girardello - Professora do Pós-Graduação em Educação da UFSC, jornalista e doutora em Comunicação, pesquisadora da relação Mídia, Cultura e Infância, publicou, entre outros, os artigos "Aqui" e "Lá": crianças do 'fim-do-mundo' e o mundo pela TV" (2000), "Televisão e Imaginação Infantil" (2001) "A Pesquisa de Recepção com Crianças: Comunicação, Cultura e Cotidiano" (2002), ),"Voz, Presença, Imaginação: a narração de histórias para crianças pequenas" (2003) e o livro "Baús e chaves da narração de histórias (2004). É co-editora do site "Ateliê da Aurora", de pesquisa e crítica sobre a infância e as mídias (www.aurora.ufsc.br)
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