março 31, 2010

Geni e o Zepelim


Nota do blog: Demorei a postar esse belo texto de Jacques Delgado, porque o momento exigia calma. Uma enxurrada de textos estavam sendo produzidos na tentiva de fazer purgar a dor e de identificar culpados. Agora que a poeira baixou, saboreie o texto ao "som" da linda canção de Lenine, recomendada pelo autor. Dedico essa postagem aos(às) companheiros(as) que dão corpo e alma à construção de uma sociedade sem manicômios.

Geni e o Zepelim

Jaques Delgado

"Joga pedra na Geni...".


Você lembra da estória da prostituta que salvou a cidade, mas que foi de todo modo lapidada? Pois é, volto a um assunto delicado: as discussões e a repercussão sobre a morte de Glauco. Assim que soube os detalhes das notícias, menos de 24 horas após o ocorrido, meu primeiro pensamento foi direcionado à enxurrada de críticas que seriam lançadas à existência do Daime e à Reforma Psiquiátrica. Cada um foi buscando suas pedras, se armando de agressividade, cada um procurando a sua Geni, ora o culpado era o Daime, ora a lei de reforma que impede a internação dos loucos (!), ora o pai do assassino, que não cuidou do filho; pelo que andei lendo, alguém teve a ousadia de sugerir que o culpado da morte de Glauco e Raoni foi o próprio Glauco! Pasmém, a que ponto chegamos.

Improvisamente, depois da novela das 8 da Globo, todos nos transformamos em doutores, em psiquiatras. Ouvi delegados fazendo diagnóstico, parentes e advogados mais ou menos tarimbados, falando em surto psicótico, alucinação, jornalistas disparando leituras apressadas, repletas de jargões técnicos. Simples, não é?

Quantas pessoas que jamais beberam um copo de Daime, ou de Vegetal, isto é, de Ayahuasca, vomitaram condenações, críticas, julgamentos, embebidos de preconceito, moralismo, ideias que são tanto ingênuas quanto perniciosas.

Talvez para entender um pouco desta misteriosa substância será necessário beber um, dois, três, cem copos da bebida de gosto amargo, bebida sagrada para os povos da floresta e, vale lembrar, de uso permitido e regulamentado pelo próprio CONAD em rituais religiosos. Por quê insistir com a linguagem pobre e sensacionalista que fala de "droga", substância "alucinógena"? Então, se ouço tais falas, posso concluir que o governo brasileiro autoriza e libera o uso de uma droga alucinógena...ou não?

Os estudiosos preferem a expressão 'substância enteógena', que significa manifestação interior do divino, ou seja, que permite ou possibilita a conexão com o sagrado. É diferente, radicalmente diferente! Sei que há recomendações no sentido de se evitar que um sujeito com determinadas características psíquicas beba o chá. Quem fala nisso?

"Joga pedra na Geni..."

Quanto aos críticos da reforma da assistência psiquiátrica, é triste observar que ainda estamos neste estágio da discussão. Um articulista da Folha, falando em periculosidade, me faz pensar que a solução melhor para 'prevenir' a violência destas pessoas potencialmente perigosas é a internação compulsória e preventiva de todos, mas todos mesmo: loucos, usuários de substâncias psicoativas (maconha, cocaína, crack, daime, ecstasy, anfetamina, álcool...), moradores de rua, favelados (é muito perigoso morar em favela). Uma ideia ainda melhor seria a construção de um muro alto, bem alto, em volta de todas as favelas nas cidades do Brasil! Eu, por via das dúvidas, internaria também os policiais, que andam armados, podem atirar - isso é perigoso. Colocaria dentro também os torcedores mais exaltados de futebol, os punks, os desempregados, pensando bem até os colunistas, porque suas opiniões podem ferir, podem ser perigosas. Ficariam de fora os intelectuais, a maior parte deles é inofensiva; os psicólogos e os psiquiatras (alguém precisa responder pelo diagnóstico). Minha companheira me recorda que um tal de Simão Bacamarte já havia proposto algo de semelhante..
.que pena! Queria ser original.

Neste drama que se consumou, um dos traços característicos foi a falta de atenção, a displicência, a surdez na captação dos sinais que uma pessoa em grave dificuldade transmitiu. Onde estava sua família? Para onde olhava? Agora é fácil jogar uma pedra, mas onde estávamos nós quando tudo aconteceu? Talvez cada um cuidasse do próprio jardim, ou do próprio umbigo, ou estivesse narcotizado pelo Big Brother da vez. Talvez. É muito fácil agora apontar o dedo, encontrar um culpado, escrever matérias sensacionalistas que vendem um mundo de jornais. Quem quer, de fato, refletir em profundidade? Se você quer, pode-se tentar uma discussão franca, honesta, nada oportunista.

E se quiser, jogue uma rosa pra Geni.

2 comentários:

Mayara disse...

O maior problema é a falta de informação e de cultura, é o querer definir culpados, algum bode expiatório, sem ao menos saber sobre o que se fala. É triste constatar o quanto ainda somos atrasados, simplesmente pelo fato de ainda se contestar a reforma psiquiatra. Não à toa, sua companheira se lembrou de Simão Bacarte, pois, depois de colocar no hospício todas as pessoas que eram "desequilibradas"(4/5 da cidade), Bacamarte as liberta sob a alegação de que mudara sua teoria, e a partir daí, normal seria o indivíduo com desequilíbrio das faculdades, enquanto que os loucos seriam os equilibrados. Ao fim, se internou.

Jaques Delgado disse...

Rogelio,

grato per citar o texto. É sempre uma ocasião de reflexão. Abraço,

Jaques Delgado