abril 20, 2010

Para ler com senso crítico


Liberdade ainda que Tam Tam

Companheiros da luta antimanicomial de Minas Gerais, a luta continua!

 Nota do blog: Leia a matéria abaixo com senso crítico. Há mais coisas entre o céu e a terra do que pode supor o senso comum a que foi reduzida a reforma psiquiátrica pela matéria do jornal mineiro. Considero um bom exercício para discussão supervisionada entre estudantes de psicologia, medicina, serviço social, enfermagem e terapia ocupacional. Em discussão o avanço da visão cínica de que hospícios podem ser humanizados. Não há má fé na reportagem. Ingenuidade, sim. Perigosa ingenuidade, estruturada nos dilemas de uma reforma psiquiátrica que precisa de uma nova bandeira de luta. A matéria em questão reforça o ponto de vista dos conservadores que alcançaram a mídia nos últimos cinco anos. Esse visão interessa a todos os que não participam da construção de uma Reforma Psiquiátrica Antimanicomial. Enquanto isso em São Paulo, o governo estadual boicota ostensivamente a IV Conferência Nacional de Saúde Mental, que pretende discutir os avanços, a intersetorialidade e a consolidação do movimento social por uma sociedade sem manicômios. Ao recusar a chamada da conferência, mesmo que o Conselho Estadual de Saúde venha a fazê-lo está armado o imbróglio: o estado se exime de bancar os custos de viagem a Brasília. Não é de espantar esse procedimento, coerente com a posição histórica do tucano-mor: José Serra era ministro da Saúde quando recusou participação na abertura do III Congresso Brasileiro de Psiquiatria em 2001. Faz sentido o quadro atual; ele não perdeu a coerência. Esse detalhe sórdido não será esquecido na eleição deste ano.     

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Eu vi, senti, interagi

Nossa repórter passou alguns dias em hospitais psiquiátricos e na rede de serviços substitutivos e descreve os tratamentos propostos nos dias de hoje aos doentes mentais

Texto: Elisângela Orlando | Fotos: Daniel de Cerqueira
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Usuário mostra desenho feito por ele em oficina terapêutica
Uma tarefa mais difícil do que eu supunha estava por vir. Não me lembro mais de quando tudo começou, mas fiquei animada ao saber que meu editor aprovou a pauta que eu havia sugerido: a reformulação do modelo brasileiro de assistência em saúde mental. Uma discussão necessária, certamente, mas sempre complicada de se abordar. Para isso, decidimos fazer uma série com três reportagens a fim de tentar descobrir se, 30 anos depois, a reforma psiquiátrica havia, finalmente, engrenado no Brasil. Escolhemos a rede pública para fazer essa averiguação. O primeiro passo era visitar hospitais psiquiátricos e serviços substitutivos de Belo Horizonte e fazer um relato, a partir de minhas observações e da conversa com especialistas, pacientes e familiares sobre o atendimento prestado nesses locais.

Desde o início, sabia que estava mexendo em um vespeiro, pois há uma verdadeira guerra ideológica quando se discute este assunto. E no meio de tanta polêmica, tive minha primeira certeza: quem sai perdendo é o portador de sofrimento mental. Na segunda matéria da série sobre a reforma psiquiátrica no Brasil, contarei o que vi e ouvi de profissionais, usuários e fami­liares nas instituições de saúde em que estive. Gente de cores diferentes, credos diversos, mas com problemas reais. A maioria, pobres que, além da doença, sofrem com o preconceito e a falta de recursos financeiros.

A primeira constatação que fiz (sei que serei alvo de críticas de ambas as correntes depois de afirmar isso) após minha pesquisa de campo – se é que assim posso chamá-la – é que, hoje, as diferenças entre o atendimento prestado pelos Centros de Referência de Saúde Mental (Cersams) e pelos hospitais psiquiátricos são pequenas. Tudo bem. Sei que não sou psicóloga, nem psiquiatra ou assistente social. Também nunca trabalhei em locais semelhantes nem tenho parentes que utilizam esses serviços. Mas fiz meu trabalho de observação, conversei com várias pessoas e estou aqui para reportar os fatos.
Interna descansa em jardim do Instituto Raul Soares
Interna descansa em jardim do Instituto Raul Soares
O que mais me chamou a atenção nesses locais é que a infraestrutura, os tratamentos oferecidos, a forma como o paciente é tratado, as oficinas terapêuticas e a participação dos familiares no processo parecem muito semelhantes. Por mais que, em Belo Horizonte, defensores de um e de outro lado se engalfinhem e neguem tal similaridade, há que se ressaltar que quem se beneficia é o paciente, pois isso significa um salto considerável no que diz respeito à humanização do atendimento e também à inserção social e familiar do portador de transtorno mental. E mais: os rastros daquilo que um dia foi chamado de manicômio estão cada vez mais apagados, para o bem de todos. Percebi que a luta hoje é antimanicomial em todos os sentidos, mesmo nos hospitais que, um dia, foram verdadeiras prisões para os chamados loucos. O que me intrigou foi perceber que, em Belo Horizonte, fal­ta mais integração entre os serviços da rede municipal e estadual, muitas ve­zes, por questões de ideologia. Na próxima reportagem da série, vou con­tar como em Barbacena as duas esferas de governo conseguiram se unir em benefício desses pacientes.

Mas para não ser apedrejada logo no início, vou tentar explicar o que me levou a estas conclusões. Lembro-me de que era manhã de uma sexta-feira quando fiz minha primeira visita. A ideia era passar o dia no hospital Gal­ba Velloso, região Oeste da capital, administrado pela Fundação Hos­pitalar do Estado de Minas Gerais (Fhemig). Estava um pouco ansiosa e confesso que, ao adentrar o pátio do hospital, senti um frio na barriga. Afinal, não é fácil lidar com o desconhecido e os transtornos da mente ainda são uma incógnita até mesmo para a medicina. Não nego, porém, que minha reação fosse, talvez, um resquício de como nossa sociedade ainda vê o doente mental: com medo. 
Maurício Leão: tempo médio de internação é de 19 dias
Maurício Leão: tempo médio de internação é de 19 dias
Logo na entrada, vi alguns pacientes que andavam livremente de um lado para o outro em um jardim. O lugar é amplo, arborizado e possui alguns prédios. Em um e outro ponto, porém, funcionários ficavam à espreita, prontos para agir caso houvesse necessidade. Alguns internos, ao me verem, cumprimentavam-me educadamente, outros faziam caretas e houve um que começou a me seguir. Sei que aqueles olhares vagos e semblantes por vezes amedrontados me causavam um turbilhão de pensamentos e emoções. Minutos depois, estava diante do diretor do Galba Velloso, Daniel Freitas. O hospital atende todos que chegam, independentemente do local de onde vêm. Crianças são direcionadas ao Centro Psí­qui­co da Adolescência e Infância (Cepai). A equipe de enfermagem faz a triagem e depois encaminha a pessoa a um médico psiquiatra. Um gru­po fica encarregado de entrar em contato com a família e com o serviço que costuma atender esse paciente. Na ausência de familiares, alguém da Secretaria de Estado de Saúde é designado para fazer esse acompanhamento.
Segregação é uma das críticas às internações hospitalares
Segregação é uma das críticas às internações hospitalares
Para Daniel Freitas, a discussão quanto à extinção ou não do hospital psiquiátrico deve ser feita em termos de assistência ao usuário. “O Mi­nistério da Saúde calcula que Minas tem apenas 50% dos Centros de Aten­ção Psicossocial (Caps) necessários. Em Belo Horizonte, a estrutura é bem maior. Nesse momento, porém, não há como prescindir desse modelo.” As instalações do Galba tam­bém sofreram melhorias, mas não há como negar que, ainda assim, o ambiente é um pouco sombrio – talvez ainda seja reflexo do que já foi um dia. Andando pelos pavilhões, me deparei com uma jovem sentada em uma cama. Ao lado dela, uma senho­ra. Pu­xei assunto e logo descobri que a morena de 22 anos estava internada. A acompanhante era tia dela. As duas estavam se preparando para voltar para Curvelo, onde moram. Víti­ma de depressão pós-parto, depois de três dias de internação, preferiu voltar e ser atendida no Caps de sua cidade. “O atendimento aqui é bom, mas quero continuar com a médica que estava cuidando de mim”, disse ao se despedir.
Reinserção social: uma das principais dificuldades enfrentadas pelos doentes
Reinserção social: uma das principais dificuldades enfrentadas pelos doentes
Mais adiante, em um banco disposto em um dos corredores do Gal­ba, encontrei Agda ao lado de sua mãe, Zélia, de 72 anos. A filha me con­tou que, há 30 anos, a mãe já ha­via passado por ali após uma crise. Me­lhorou e ficou bem durante muito tem­po. Recentemente, Zélia teve um surto de agressividade e teve de retornar ao hospital. Ao se lembrar da primeira vez que a mãe esteve in­ternada ali, Agda disse que muita coisa mudou. “Hoje o atendimento é bom, humanizado e há mais seguran­ça”, afirmou, informando que ela e os cinco irmãos estavam se revezando para ficar ao lado de Zélia. De­pois dessa conversa, achei que há certo exage­ro quando se diz que o hospital psiqui­átrico segrega o paciente – fi­que claro que não estou defendendo a instituição, mas apenas fazendo con­siderações a partir do que ou­vi.
No Instituto Raul Soares, usuário faz pose para foto
No Instituto Raul Soares, usuário faz pose para foto
O segundo lugar que conheci foi o Cersam Noroeste, situado no bairro Padre Eustáquio. Fui recebida pela ge­rente da unidade, a psicóloga Rosa Maria Vasconcelos. O Cersam, na verdade, é um dispositivo da rede, coordenado pela Prefeitura de Belo Hori­zonte, que segue as normas estabelecidas pelo Ministério da Saúde para funcionar como um serviço substitutivo à lógica manicomial. O foco é atender casos de urgências e pacien­tes em crise. Muitos usuários, de acor­do com Rosa, são egressos de hospitais psiquiátricos e vários sofrem de alguma doença ligada ao gru­po das psicoses graves. Em 99% dos casos, há necessidade de prescrição de medicamentos e de avaliação. A equipe é formada por terapeutas ocupacionais, assistentes sociais, enfermeiros, psicólogos e psiquiatras.
Portadores de sofrimento mental ainda são vítimas de preconceitos
Portadores de sofrimento mental ainda são vítimas de preconceitos
“O Ministério da Saúde calcula que Minas tem apenas 50% dos Centros de Atenção Psicossocial (Caps) necessários. Em razão disso, não há como prescindir dos hospitais psiquiátricos ainda”
Daniel Freitas

Ao chegar ao Cersam, o paciente passa por avaliação e, dependendo do caso, pode ficar na permanência-dia e a equipe verifica se há necessidade de acompanhante. Não há limite de dias em caso de internação. Rosa afirma que a grande diferença entre o Cersam e o hospital é que lá o doente tem participação mais ativa no tratamento, mais mobilidade, possuindo acesso a todas as áreas. Segundo ela, o contexto é diferente também porque o paciente lava suas próprias roupas e, em alguns casos, pode ser atendido em casa. Pude constatar que o que ela estava me contando era verdade.
Pacientes e familiares sentam-se juntos no pátio do Galba Velloso
Pacientes e familiares sentam-se juntos no pátio do Galba Velloso
“A doença mental é um recorte do horror, por isso há tanto preconceito. Se não tivermos postura constante de inquietação, também poderemos nos transformar em manicômios”
Rosa Maria Vasconcelos
Realmente, não faz muito tempo, os hospitais psiquiátricos segregavam os internos. Hoje, entretanto, tendo em vista o que vi, parece não ser mais assim, pelo menos no Galba e no Raul Soares. Ainda há alguns traços de isolamento, mas é muito diferente do que acontecia nos hospícios antes do início da reforma. Por outro lado, o Cersam possui algumas características desses hospitais. Por isso, minha percepção é de que há semelhanças en­tre os dois serviços. Será que se houvesse uma integração maior, não seria possível melhorar toda a rede de atendimento à saúde mental da cidade?
Muitos doentes foram abandonados pela família
Muitos doentes foram abandonados pela família
Voltando à minha incursão ao Cersam Noroeste, também vi pacientes andando pelos corredores com liberdade. Um, inclusive, chegou a cismar que eu havia roubado seu estômago e disse que iria me matar. Não tive medo e, inclusive, comecei a falar sobre outros assuntos. Logo, eu e Geraldo estávamos numa conversa animada sobre chocolates e compras em supermercados. O impacto que eu havia tido no Galba Velloso havia passado e comecei a ver aquelas pessoas que estavam ali de outra maneira: elas eram como eu, apenas um pouco diferentes.
Rosa esteve ao meu lado durante todo o tempo da visita e pude perceber o quanto ela se preocupa com o bem-estar daquelas pessoas. Entre lágrimas, me disse que é preciso um exercício diário para sustentar a lógica antimanicomial, mesmo nos serviços substitutivos. “A doença mental é um recorte do horror, por isso há tanto preconceito. Temos que nos perguntar a todo tempo o que queremos para nossos usuários. Se não tivermos postura constante de inquietação, também poderemos nos transformar em manicômios.”
Internas travam conversa animada em jardim do Instituto Raul Soares
Internas travam conversa animada em jardim do Instituto Raul Soares
Além dos Cersams, a rede municipal conta com centros de convivência, que oferecem cursos de música, teatro, pintura, marcenaria, costura, além de passeios, idas ao cinema e festas. Nesses locais, os frequentadores também têm a oportunidade de gerar renda. Parte das produções é comercializada e o artista recebe porcentagem da venda. Criada e coordenada por usuários dos centros de convivência, a cooperativa Suricato – Associação de Trabalho e Produção Solidária – mantém quatro grupos de trabalho: mosaico, marcenaria, costura e culinária. Todas essas ações visam um único objetivo: permitir que essas pessoas tenham uma vida mais digna e integrada à sociedade e à família.

Dois dias após conhecer o Cersam Noroeste, fiz minha terceira visita: Instituto Raul Soares, no bairro Santa Efigênia. A estrutura, com vários prédios, impressiona. Há duas décadas, o lugar internava cinco mil pessoas por ano. Hoje, esse número baixou para 1,5 mil. Na oportunidade, o diretor geral do hospital, o psiquiatra Maurício Leão, ressaltou, porém, que a humanização do atendimento começou há 30 anos. “Hoje, o paciente sai daqui e é encaminhado aos serviços substitutivos”, assinalou, ao destacar que o tempo médio de internação na atualidade é de 19 dias. Entretanto, foi incisivo ao dizer que “não há sociedade no mundo hoje que possa prescindir do hospital psiquiátrico”. E asseverou que o movimento de desospitalização na medicina psiquiátrica está progredindo e que em Minas Gerais não é diferente.
Rede pública de saúde mental necessita de mais investimentos
Rede pública de saúde mental necessita de mais investimentos
Assim como o Galba Velloso e os Cersams, o Raul Soares também tem investido em atividades de recreação, oficinas terapêuticas e outras ações que buscam reintegrar o paciente à sociedade. Há, inclusive, curso de infor­mática que aten­de não apenas os usuários do hospital, mas também seus familiares, além de funcionários da instituição. 

Durante o período que passei no Raul Soares, percebi que os pacientes têm horários mais regulados. Eles circulam pelos corredores, pelos pátios, mas homens de um lado e mulheres do outro. As instalações são boas e alguns setores ainda estão sen­do reformados. Fui a um grande jardim onde algumas mulheres estavam sentadas. Quando me viram, me chamaram. Queriam saber quem eu era e o que fazia ali. Sentei-me junto a elas e comecei a bater papo, como se faz numa roda de amigos.

Não passou muito tempo e elas começaram a me contar suas histórias. A mais falante – e torcedora fanática do Atlético – Sulamita, disse que estava ali para se curar da depen­dência química. “Tenho quatro filhos e eles precisam de mim”, falou. Pouco depois, uma jovem loira, de cabelos lisos e compridos se aproximou. Ta­ma­nha era sua beleza, que qualquer um poderia dizer que se tratava de alguma modelo. Não era. A garota de 28 anos, mãe de três filhos, enfrentava sua segunda internação por depressão pós-parto. Rimos, falamos de coisas triviais e, em nenhum momento, parecia haver qualquer diferença entre mim e elas. Éramos apenas garotas conversando sobre homens, maquiagem, novelas – enfim, coisas de mulher. Talvez, a única diferença eram os uniformes com a logomarca da Fhemig que elas vestiam e os embornais que algumas carregavam com seus poucos pertences. Despedimo-nos como se fôssemos conhecidas de longa data.

Qual o melhor modelo de atendimento? Talvez esta não seja a pergunta correta, mas o que todos nós – sociedade, governo (todas as esferas), ONGs, familiares e amigos – podemos fazer para que essas pessoas, seres humanos como quaisquer outros, que sofrem de uma doen­ça mental, tenham vida digna, tratamento adequado, laços sociais consolidados, oportunidades de trabalho e o direito a ser o que são: cidadãos. Nos casos mais graves, sabemos que nem tudo é possível, mas há sempre algo que pode ser feito para melhorar a qualidade de vida dessas pessoas.

Na próxima matéria, direi como funcionam as residências terapêuticas de BH, onde moram portadores de sofrimento mental que tinham sido abandonados em hospitais psiquiátricos. E, principalmente, tentarei narrar um pouco sobre aquela que já foi conhecida como a cidade dos loucos, Barbacena. Contarei depoimentos emocionantes de quem viveu o período mais macabro da antiga Colônia e que, hoje, tenta superar os horrores sofridos com doses de amor e dignidade.

Um comentário:

Unknown disse...

Muito triste a matéria. O problema da ingenuidade da jornalista é não entender a profundidadde da questão. Nem sempre o que os sentido nos mostra é realidade, por isso Jesus falava: "tem que ter olhos de ver e ouvidos de ouvir".

Com liberdade as possibilidades são infinitas. Trancados não passamos de animais docilizados pela instituição.

Uma sociedade sem manicômios é possível. Os sentidos das pessoas na sociedade atual estão treinados para entender o status e não sentimentos e diversidade.

Eu não sei o que assusta mais as pessoas a pobreza ou a loucura ou os dois juntos. Ver além das apar~encias e entender o sofrimento da alma é falar sobre loucura e a construção para a manifestação da loucura na sociedade.