maio 30, 2010

O Escritor Fatasma


diariodecinema 1 de fevereiro de 2010 — O roteiro fala sobre um escritor fantasma britânico que concorda em escrever as memórias do ex-primeiro-ministro Adam Lang porque seu agente lhe garante que esta seria a oportunidade de sua carreira. Mas o projeto parece estar condenado desde o início, devido a um acidente misterioso.

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[ O Escritor Fantasma ]



por Bruno Cava – O ultimo longa de Roman Polanski, que ganhou o Urso de Prata (melhor direção) no Festival de Berlim de 2010, estreia hoje no Brasil. Não, não é mais um da febre espírita. O título refere-se ao ghostwriter: aquele que, apesar de escrever o texto, não o assina e fica oculto. Atribui-se a autoria a outra pessoa, geralmente uma celebridade. No longa, o escritor interpretado por Ewan McGregor é o “fantasma” do primeiro-ministro britânico Adam Lang (Pierce Brosnan), que deseja produzir uma autobiografia de sua carreira política. O roteiro baseia-se num romance de mistério de Robert Harris, que co-escreveu com Polanski o roteiro. Sem ser nomeado na história, o Fantasma/McGregor é convocado de última hora para substituir o ghostwriter anterior, morto em circunstâncias suspeitas quando terminava a “autobiografia” de Lang. Obviamente as coisas vão se complicar para o novo redator. Desse argumento simples, parte um thriller preciso e maduro, que multiplica os sentidos de interpretação.


Como comentário político, O Escritor Fantasma expõe ligações mais ou menos ocultas por trás do discurso da guerra ao terror. Denuncia o enlace de bastidores entre os governos, órgãos de inteligência e institutos de pesquisa e ativismo (“think tanks“), que cimentaram a aliança unha-e-carne entre a política externa dos EUA/Bush e do Reino Unido/Blair. Lang/Brosnan representa o ex-premiê Tony Blair, mas no filme também aparecem “disfarçados” outros políticos ingleses, Condeleeza Rice, a CIA, o Instituto Claremont e até a Haliburton — megaempreiteira ligada ao vice de Bush, Dick Cheney, empresa responsável principal pela reconstrução do Iraque pós-guerra. Se Tarantino reescreveu a Segunda Guerra em Bastardos Inglórios (2009), Polanski faz o mesmo agora, já que, na sua ficção, o premiê britânico é intimado pelo Tribunal Penal Internacional a responder pelos crimes de guerra cometidos — entrega de prisioneiros para interrogatórios com tortura pela CIA. Nesse sentido, O Escritor Fantasma trava um diálogo com o filme vencedor do Oscar passado, Guerra ao Terror (Kathryn Bigelow, 2009), que contorna qualquer comentário sobre as dinâmicas políticas da guerra, em favor da exposição acrítica do aqui-e-agora dos soldados no fronte.



-- Cena do filme --

Como filme de estilo, Polanski apresenta outra obra matizada pela sobrevivência do protagonista em um mundo-cão, como em Chinatown (1974), O Inquilino (1976), O Pianista (2002), Oliver Twist (2005), entre outros de sua filmografia. Personagens isolados envoltos por uma atmosfera opressiva de perigo e estranhamento. Neste filme, boa parte da ação transcorre numa ilha semideserta e cinzenta, sob céu de tempestade, como metáfora da condição do Fantasma/Gregor. Nessa ilha, situa-se a mansão-bunker ultra-vigiada que é, ela mesma, uma prisão. O thriller se realiza nesse clima intoxicante e confinado, de ameaça desconhecida, onde não se pode confiar em ninguém, o que evoca o contemporâneo Ilha do Medo (2010). Mas dele se distancia, pois se Scorsese monta o suspense de modo direto, contínuo e rococó (principalmente ao trabalhar a memória), Polanski refina o seu suspense com simplicidade e um cinismo característico, como em O Bebê de Rosemary (1968) ou Cul-de-sac (1966).



De fato, o diretor, da escola hitchcockiana, demonstra como a intercalação de momentos cômicos e mesmo banais, ao invés de reduzir o suspense, aguça-o. Assim há cenas de piadas, facilitadas pela ironia fleumática do Fantasma/McGregor, e seqüências banais: a bicicleta atola no terreno, o vento desfaz montes de feno, o jet-lag deixa o escritor cochilante. O filme é mais falante do que de ação e dispensa malabarismos em 3D, explosões ou tiroteios. Por sinal, a única perseguição de carro é narrada de maneira elegante, sem clímaxes barulhentos. E o único lugar em que o protagonista se sente seguro e confortável é dentro de seu BMW, em merchandising cara-de-pau.


Há quem veja em O Escritor Fantasma uma espécie de metalinguagem reversa diante da situação pessoal do diretor. Afinal, ele finalizou o filme em prisão domiciliar na Suíça, país que possui tratado de extradição com os EUA e, portanto, reconhece uma sentença condenatória da justiça americana de 1978. Em janeiro deste ano, um mês antes de estrear na Berlinale, a justiça suíça decidiu detê-lo. No festival, quando a transferência forçada aos EUA parecia iminente, houve campanhas favoráveis a Polanski. A extradição não ocorreu até hoje e o advogado de Polanski segue interpondo recursos nas justiças americana e suíça. A referência metalingüística, por conseguinte, estaria na analogia com o político Lang, enquanto celebridade acusada no exílio, mas sobretudo com o Fantasma: um artista moralmente cinzento que não compreende a conspiração a seu redor e acaba, menos por ingenuidade do que azar, caindo numa armadilha.

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