Assisti ao vídeo do Presidente Lula na abertura da XII Semana de Luta Contra as Drogas, em Brasília, dia 21 próximo passado. Confesso que fui invadido por um enorme desânimo e tristeza ao ouvir e ver o Presidente centrar seu pronunciamento no combate, na luta contra as drogas e em particular contra o crack. Um aviso: sou fascinado pela personagem Luiz Inácio Lula da Silva, pelo homem de inteligência incomum, por sua capacidade para aprender e apreender coisas inimagináveis. Entendo porque 120 milhões de brasileiros compreendem suas metáforas simples e diretas, sem rebuscamento, apoiadas num gestual e voz inconfundíveis. Ouço o Presidente Lula quando fala do que conhece bem: a pobreza; a luta pela sobrevivência; a persistência; a política; o Brasil, seu poder e lugar no mundo. Contudo, ouvi-lo falar das drogas pareceu-me antigo e comum. Pior, com seu extraordinário poder de convencimento pode ter feito retroceder os difíceis avanços conquistados nos últimos anos e as estratégias de atenção às substâncias psicoativas em suas dimensões sócio-culturais, educativas e mesmo clinicas, quando propõe encarar a droga como o principal inimigo a vencer, lutar contra o crack e recuperar nossos filhos, que ele chama de “nossa juventude”. Convoca prefeitos, igrejas, sindicatos a se unirem nesta cruzada. O Presidente só não convoca os técnicos da saúde e os cientistas sociais. Aliás, adverte paternalmente: “não podemos teorizar muito, precisamos envolver a sociedade…”. Sugere colocar o crack nas escolas. Entenda-se bem, como preocupação das escolas; os educadores devem tratar do tema, fiscalizar melhor nossas crianças viciadas e recuperá-las, disse ele.

O Presidente não foi orientado a dizer que a demonização de uma ou muitas drogas nunca surtiu bom efeito; a luta contra as drogas ao longo de 40 anos nos Estados Unidos da América do Norte foi um retumbante fracasso; que a violência desmedida relacionada ao tráfico passa pela ilegalidade deste comércio sem limites nem fronteiras; que todos nós consumimos drogas– em particular o álcool – uns mais outros menos; que cada um usa a droga que precisa: não é a droga que nos escolhe, cada um escolhe a droga que lhe convém. Neste sentido, lembremos que o crack, com seu extremo poder intoxicante, é a droga dos excluídos dentre os excluídos, dos desfavorecidos dentre os desfavorecidos. O crack é a droga dos sem futuro algum ou dos que perderam qualquer esperança. Alguns dirão: pessoas da classe média estão usando crack! É verdade. Mas lembremo-nos que o crack não permite a socialidade, não há prazer em seu consumo; só a angústia e ansiedade, somadas. A classe média não quer a morte, quer alegria e arte e por isto não acentuará este consumo. Atenção, o Presidente advertiu “não podemos teorizar muito”. Compreender o consumo de drogas através de estudos epidemiológicos, sociais, farmacológicos e clínicos é teorizar ou se instrumentar para agir? Conhecer o perfil dos consumidores facilita ou atrapalha? Não acredito que o Presidente Lula considere o estudo sobre o consumo de drogas por universitários, apresentado em 23 de junho pela Universidade de São Paulo e patrocinado  pela Secretaria Nacional de Políticas para Drogas (SENAD), seja uma mera teorização.

Quando o presidente se refere às escolas, deveria fazê-lo no que diz respeito ao fracasso de nosso ensino fundamental e médio, com escolas públicas caindo aos pedaços e professores despreparados e mal pagos, como mostra, de tempos em tempos, nossa mídia. O Presidente poderia ter sido orientado a considerar a invenção dos Centros de Atenção Psico-Social (CAPS), alternativa ao velho modelo hospitalar psiquiátrico, cronificante, exclusor e mortal.

Ainda em seu discurso o Presidente Lula anunciou a destinação de 410 milhões de reais para subsidiar a luta, tendo o cuidado de advertir aos prefeitos da necessidade de apresentarem projetos. Ainda bem. Mesmo assim, temo que muitas bocas vorazes tentem arrancar pedaços desta oferta. Espero que muitos apresentem propostas assistenciais inovadoras voltadas para pessoas e não para lutar contra o inimigo errado. Nosso alvo deve ser sem dúvida nossos filhos e filhas, adoecidos, sem perder a dimensão do “por que, para que, como, quando, onde”. Permito-me, sugerir ao Presidente que em seu próximo discurso tome como alvo a necessidade de restauração de nossos laços sociais, restauração da Lei, restauração do gosto pelo ensino e pelo orgulho (perdido) de ser professor. Pelo respeito à coisa pública e de tantas outras certamente ouvidas por ele nas preleções de D. Lindu.

O crack não é inimigo da Humanidade. É a Humanidade, sem rumo, que se depara com o crack, na tentativa de aplacar o sintoma, seu mal-estar. A escolha é dos humanos. Espero que o Presidente Luiz Inácio Lula da Silva em outro momento, talvez na próxima Semana de Atenção ao Uso e Usuários de Substâncias Psicoativas (em lugar de luta contra as drogas), possa usar sua voz para nos convocar à tolerância com os diferentes e ao restabelecimento de valores fundamentais à vida. Certamente, estará fazendo verdadeira prevenção da necessidade do consumo de drogas.