julho 23, 2010

STF institui 'diferença de classe' no serviço público de saúde. É o fim da picada!

Ilustração Marcelo Marques de Melo

Pacientes poderão pagar por atendimento no SUS


Em decisão favorável ao Conselho de Medicina do Rio Grande do Sul, STF permite pagamento no município de Giruá (RS). Conass, Conasems e Conselho Nacional de Saúde questionam a medida.

Por Raquel Júnia

Em Giruá, no Rio Grande do Sul, há pouco mais de 17 mil habitantes. Segundo a Secretaria Municipal de Saúde, a rede de saúde do município é composta por quatro Postos de Saúde da Família (PSFs) e um posto central que atende especialidades. Além disso, há também outros cinco postos em distritos do interior, onde há atendimento uma vez por semana. Há um único hospital em Giruá, que não é público e sim filantrópico, mas atende pelo SUS e destina cerca de 32 dos 50 leitos ao serviço público de saúde, por meio de convênio. De acordo com a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) proferida no último mês de maio, passa a ser instituída em Giruá a chamada ‘diferença de classe' no serviço público de saúde. Isso significa que qualquer habitante da cidade que tenha dinheiro poderá pagar por determinado serviço nesse único hospital da cidade, que atende pelo Sistema Único de Saúde (SUS). O paciente pode comprar um leito individual ou a possibilidade de ser operado por determinado médico de sua preferência. O pagamento pode ser feito ao hospital e também ao profissional escolhido.

A ação para permitir essa diferenciação de classe partiu do Conselho Regional de Medicina do Rio Grande do Sul (Cremers) e primeiro obteve decisão favorável da Vara Federal de Santo Ângelo (RS). Há outras 11 ações do Cremers contra 10 municípios e uma contra o governo do estado, que também é responsável pela gestão da saúde em cidades gaúchas.

A prefeitura de Giruá entrou com uma ação na justiça federal para não cumprir o que determina o STF. De acordo com o prefeito da cidade, Fabiam Thomas (PDT/RS), não é possível que o município cumpra a diferenciação de classe e a prefeitura está disposta, inclusive, a pagar multa caso os instrumentos jurídicos que está movendo para embargar a decisão não surtam efeito. Foi estipulada uma multa de R$ 500 reais por dia se Giruá não estabelecer a possibilidade de pagamento pelo SUS. "Não há como cumprir essa decisão sem descumprir inúmeras outras normas, principalmente a Constituição Federal, porque esta decisão tem um alcance muito maior do que se imagina. Não é simplesmente dar ao cidadão o direito de pagar a diferença e escolher um quarto melhor ou o seu médico. Estamos falando do SUS, que possui duas marcas muito evidentes: uma é a igualdade e outra é a gratuidade. O gestor de saúde hoje não pede o contracheque de ninguém no posto de saúde", protesta o prefeito.

No último dia 8 de julho, uma comitiva formada por prefeitos e secretários de municípios do Rio Grande do Sul, representantes do Conselho Nacional de Saúde, do Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass), do Conselho Nacional de Secretarias Municipais de Saúde (Conasems), de associações dos municípios, da procuradoria do estado e deputados realizaram uma audiência com o ministro do STF Carlos Ayres Britto para questionar a decisão. "Na audiência foi ressaltado pela procuradora do estado do Rio Grande do Sul a diferença entre os primeiros casos que criaram a jurisprudência no tribunal e os casos que estão sendo julgados atualmente. O Supremo está utilizando uma jurisprudência dele mesmo, mas os casos concretos são diferentes. O ministro disse que reconhecia a gravidade da situação e que iria avaliar a questão com cuidado", conta a assessora jurídica do Conasems, Fernanda Terrazas.

Fernanda explica que as decisões anteriores na qual o Supremo se baseou para julgar a medida em relação ao município de Giruá foram relativas a casos de pessoas que solicitavam acomodações diferenciadas no SUS em decorrência de uma necessidade de saúde. Ela exemplifica com o caso de um paciente com leucemia e que, por isso, precisava de um isolamento. Mas num caso como este, segundo Fernanda, o SUS já seria obrigado a dar este tratamento diferenciado devido a uma necessidade de saúde. "O que o STF fez foi apenas garantir este direito", afirma.

O Procurador Regional da República da 4ª região (Rio Grande do Sul), Paulo Leivas, diz que neste caso, a jurisprudência - decisão que abre precedentes para que outras situações tenham o mesmo julgamento - é questionável. "Ela se cria exatamente a partir da repetição de fatos: é aplicado o mesmo entendimento judicial em relação aos mesmos fatos. Então, se aquelas decisões foram tomadas para casos distintos, não se pode dizer que há uma jurisprudência do Supremo Tribunal Federal em relação a esta matéria", diz.

Decisão polêmica
Paulo Leivas considera que se o STF fizer uma análise melhor do caso, poderá haver uma decisão diferente com relação às outras 11 ações movidas pelo Cremers, já que, na opinião dele, não foram atentados nessa decisão a estrutura e o funcionamento do SUS. "A justiça tem considerado há muitos anos ilegal, inclusive considerando crime, a cobrança de honorários médicos de usuários do SUS", aponta. Paulo informa que foi feito um pedido de vista pelo Ministério Público Federal dos processos em tramitação, o que também pode contribuir para mudar o entendimento sobre o tema.

O procurador questiona também o fato de essa matéria ter sido analisada e a decisão tomada por um único ministro. Para ele, a possibilidade de qualquer pagamento dentro do SUS viola o direito de igualdade previsto na Constituição. "Isso vai permitir que usuários do SUS sejam tratados diferentemente de acordo com sua condição econômica, o que contraria todos princípios constitucionais que regulam o SUS", destaca.

O Cremers, entretanto, tem uma leitura diferente da situação. O presidente da entidade, Fernando Mattos, diz, inclusive, que a medida pode ajudar a Constituição a ser cumprida. "Todos nós, ricos ou pobres, temos o direito constitucional individual de utilizar o SUS, mas na maioria das vezes nós estamos aguardando numa fila de espera que demora um, dois, três anos. Neste caso os pacientes com maior poder aquisitivo poderiam pagar pela diferença de classe, por um quarto em melhores condições que permitisse ficar junto com seus familiares na hora da doença e escolher o seu médico de confiança", argumenta.

Para o Cremers, a decisão ajuda, inclusive, a reduzir as filas do SUS. "Na medida em que um paciente está na fila e consegue sair dela pagando ele mesmo pelo seu direito, ele abre oportunidade para o próximo que, por sua vez, chegará mais rapidamente para receber o atendimento do SUS", defende Fernando. O médico explica que neste caso, o SUS seria desonerado do pagamento do quarto e do médico e arcaria com os gastos de medicamentos e exames que o paciente faria durante a hospitalização.

O presidente do Conselho Nacional de Saúde, Francisco Batista Júnior, que também esteve na audiência junto ao STF para questionar a decisão, refuta o argumento de que as filas do SUS diminuirão. "Quem está na fila hoje é quem não tem condição de pagar um plano de saúde e um procedimento privado, e essa pessoa não pagaria de qualquer maneira. Ela permanecerá na fila e agora com um quadro mais grave: esta fila será furada, como se diz popularmente" , contesta.

Francisco diz que o Conselho lamenta muito que a ação tenha partido de um órgão de classe que representa profissionais da saúde. Para ele, trata-se de uma tentativa de reserva de mercado para os médicos. "Isso é uma violência com os princípios básicos do SUS. Nós temos um sentimento que eu não sei se é tristeza ou indignação - tudo que nós sempre combatemos para implementar o SUS de repente aparece através de uma proposta que é desconstrutiva, desestruturante, violenta, ilegal, imoral e anti-ética", comenta.

Desconstrução do SUS
Francisco acredita que há cerca de 10 anos começou a ser deflagrado no país um movimento para desconstruir o SUS, fisicamente, politicamente e ideologicamente. A diferença de classes, para ele, é uma das ações que vêm sendo adotadas para desestruturar o sistema. "São vários os movimentos: estão aí as fundações de direito privado e as parceirizações, que é como estão sendo chamadas as privatizações da gestão do SUS, como a parceria público-privada, que está sendo realizada na Bahia com atores internacionais. Para mim esses movimentos são as provas absolutamente cabais de que estão em curso já há alguns anos os processos de desconstrução do SUS", explicita.

Os professores- pesquisadores da Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz) Felipe Machado e Camila Borges acreditam que a medida fere a universalidade, princípio fundante do SUS e que o diferencia do sistema de saúde que vigorava anteriormente. "É um retrocesso assustador em direção à situação que a gente viveu até a Constituição de 1988, na qual se diferenciava o tipo de atendimento pelo tipo de inserção que o paciente tinha no mercado.  O SUS tenta romper com isso. Trata-se de um retrocesso legitimado pelo poder judiciário e levado a cabo por uma instância de classe. É evidente que  há médicos que não compraram a ideia do SUS", diz Felipe.

Camila aponta que a dependência do SUS em relação aos setores privados que atuam em convênio com o sistema público é um agravante para este tipo de problema. "O poder executivo tem dificuldades de dotar o orçamento para investir em rede própria. Quando conseguirmos investir em rede própria talvez diminuamos a dependência do setor filantrópico, que é uma instância privada, e consigamos fazer frente a este tipo de ação", observa.

Os pesquisadores explicam que na 8ª Conferência Nacional de Saúde, em 1986, foi aprovada a total estatização da saúde, de forma que não poderiam existir no país redes de saúde privada. Entretanto, na Constituição isso não foi garantido, mas sim a convivência entre os sistemas público e privado de saúde. Foi definido ainda que os últimos poderiam participar do SUS de forma complementar, mediante convênio ou contrato de serviços. Atualmente, de acordo com dados do Conselho Nacional de Saúde, mais de 90% de alguns procedimentos, como a hemodiálise e análises clínicas, estão na rede privada. Estas instituições são pagas pelo SUS para oferecerem atendimentos gratuitos à população.

Para Felipe, a definição pela diferença de classe no SUS está dentro das recentes práticas de judicialização da saúde, nas quais há uma sobreposição do indivíduo em relação à coletividade, pela via judicial. "Isso tem acontecido no SUS de outras formas. A pessoa que tem curso superior, que fala inglês, que tem acesso aos estudos científicos de uma universidade estrangeira, por exemplo, descobre que estão pesquisando um leite que talvez sirva para o filho dela. O leite não é vendido no Brasil, custa dois mil dólares a lata, e ela entra na justiça para o Estado comprar. É a mesma coisa, é o judiciário atuando para garantir os privilégios e o status de classe", opina.

De acordo com Francisco, o CNS, junto a outras entidades, continuará tentando conversar com os ministros do STF para que não julguem as outras ações do Cremers da mesma maneira. Para o prefeito de Giruá, os municípios devem continuar mobilizados para impedir decisões como essa. Na opinião dele, se o julgamento for o mesmo em relação a outras cidades do Rio Grande do Sul, isso pode significar a expansão de ações desse tipo por conselhos de medicina de outros estados. "Todas as entidades nacionais estão envolvidas nesta luta, como os conselhos e a própria secretaria de estado. O Sistema não tem como continuar com o poder econômico fazendo parte do processo de escolha, todos têm que percorrer o mesmo caminho para poder se beneficiar do SUS - esta é a essência. Isso existia no antigo
Instituto Nacional de Assistência Médica da Previdência Social (Inamps) , e a própria sociedade brasileira fez questão de sepultar este sistema", recorda o prefeito.

Um comentário:

Ivana Lima Regis disse...

Notícia de lascar, estilo "morro e não vejo tudo"...