novembro 23, 2010

Nota de desagravo, em defesa do tombamento do Encontro das Águas

PICICA: O arqueólogo Eduardo Góes Neves, professor da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade do Estado do Amazonas (UEA) foi alvo de argumentos reacionários (aqueles que querem neutralizar os efeitos de uma mudança: o povo não é mais passivo) de um articulista do jornal Amazonas em Tempo (reprodução abaixo), com a intenção de desqualificar o parecer que fundamentou o tombamento do Encontro das Águas pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), postado anteriormente aqui neste blog. Ao tentar atingir o ilustre professor com a suspeita de trabalhar por encomenda, impossível não reconhecer neste gesto uma projeção mental do modo como opera o acusador. O movimento socioambiental SOS Encontro das Águas, que nasceu no interior da Universidade do Estado do Amazonas, quando tive a honra de ocupar o cargo de Pro-Reitor de Extensão (2007-2010), não tem dúvida sobre os interesses em jogo: de um lado os que fazem a defesa popular contra o capital predatório, e do outro os que operam a favor deste. Construir um terminal portuário nas imediações de um importante patrimônio natural, seja do ponto de vista paisagístico, geológico, cultural ou arqueológico (estão a viajar pelo mundo as fotografias de Valter Calheiros sobre os desenhos rupestres achados recentemente na região das Lajes, a mesma onde desovam os jaraquis, peixe da culinária popular), só poderia merecer o mais veemente repúdio da parte de quem defende a posição republicana-participativa, que entende que bem comum é produção de discurso entre cidadãos livres e iguais. Não são os representantes dos "bourgeois" privados que tem o costume de se orientar para o bem comum, mas os "citoyens", politicamente virtuosos, que tem os interesses subordinados à soberania popular. Certamente, estes dois campos são marcados por atos lutúrgicos diferentes. O movimento SOS Encontro das Águas, por amor à verdade, vem desconstruindo os argumentos falaciosos dos porta-vozes do privatismo ensimesmado que põe em risco nossa "ecologia social". Quero dar apenas meu testemunho sobre quem recusa o debate, na prática. A fotografia abaixo (no qual o articulista mencionado, observa as lamentações de outro defensor do capital predatório: "Você veio aqui só pra detonar nossa reunião?") foi feita após o momento em que este blogueiro "desmonta" um cenário onde se tentava praticar a domesticação de uma audiência pública, suspensa por liminar da Promotoria Pública Estadual. Logo após o comunicado da decisão judicial, a população da comunidade de São Francisco, na margem direita do rio Amazonas, município de Careiro da Várzea, fora submetida à condição de espectadores dos argumentos da empresa em prol da construção do terminal portuário. Perguntei se haveria direito ao contraditório. Diante do argumento de que só haveria espaço para "esclarecimentos" da empresa, convidei os comunitários a se retirarem, menos por infração contra a liminar mencionada, do que pelo modo ignóbil com que os presentes estavam sendo tratados. Todos se retiraram do local. O articulista, que acusa os intelectuais do movimento popular de aversão ao debate, mais uma vez incorre numa projeção mental de uma covardia moral que não nos diz respeito. Não fomos nós que usamos da manipulação midiática, mediante campanhas publicitárias de conteúdo duvidoso, tentando criar opinião pública sem debate. O movimento popular foi a todas as instâncias onde se processava o debate público, muitas vezes com nítidas desvantagens ao interagir com interlocutores que não tem respeito por uma concepção radical de cidadania, em que a pluralidade das comunidades éticas e associativas disputam espaço na comunidade política, no enfrentamento entre os discursos públicos institucionalizados e não institucionalizados. Desqualificar o relatório do professor Eduardo Góes Neves e insistir em falácias já desconstruídas, merece o mais veemente repúdio. E mais, é agredir um movimento social que há dois anos trabalha na construção da verdade que vem subtraindo da opinião pública os interesses que sustentam a agressão ao Encontro das Águas, patrimônio da humanidade. A luta continua. 

Foto: Marisa Lima
Da esq. para dir.:  psiquiatra Rogelio Casado, filósofo Alfredo Lopes e o economista Machado

Artigo Amazonas Em Tempo 19 11 2010
 
Tombamento sob encomenda
Alfredo MR Lopes (*)
Saudado por movimentos ambientalistas de bandeiras seletivas e por intelectuais que se recusam ao debate do interesse público envolvido, aparentemente pelo ganho promocional que a causa propicia, o tombamento da área que abriga o fenômeno do Encontro das Águas traz à tona, mais uma vez, velhas fórmulas messiânicas de salvação da Amazônia. As bravatas fazem sucesso desde os hits ecológicos da dupla indígena-country formada por Sting e Raoni nos anos 90, às vésperas da Conferência da ONU, a Rio-92. Manipulada para responsabilizar a região pelos gases do efeito-estufa, causadores do aquecimento global, a Conferência foi pródiga nessas fórmulas de altruísmo maroto, absoluto descaso às demandas das populações locais e desacato à sua habilidade para identificar e decidir uso e ocupação de seu território. Decididamente a Amazônia continua sendo um bom negócio eco-publicitário, mesmo para aqueles que fingem não compreender a viabilidade sustentável de seu aproveitamento racional.  
Decidido num evento seleto, sem direito a voto, e celebrado no cenário glamoroso da arquitetura neoclássica do império lusitano - a sede Instituto do Patrimônio  Histórico e Artístico Nacional, no  Rio de Janeiro - o tombamento do Encontro das Águas se baseou num parecer do arqueólogo Eduardo Góes Neves, conselheiro do Instituto, através de um texto, não menos elegante, mas eivado de contradições, equívocos e inverdades, como é freqüente e peculiar nessas fórmulas de proteção messiânica da Hiléia. Ali não esteve presente a representação do tecido social envolvido pela medida, que prioriza na prosa o biótico/paisagístico em detrimento do antrópico-social, numa inversão inaceitável da escala de valores e prioridades do dogma darwinista. Neves, entre outros tropeços, atribui aos índios da região – e não aos heróis e mártires nordestinos – a força de trabalho que viabilizou o Ciclo  da Borracha e responsabiliza a “...a construção do Porto das Lajes pelos impactos arqueológicos” já detectados na área. Além da deselegância histórica, é a primeira vez que um projeto, em fase de licenciamento, retido há dois anos pela estratégia de protelação de interesses inconfessos, causa estrago arqueológico na condição de croqui.
Ora, diferentemente de todas as formas de ocupação antrópica da área em questão, o projeto do Terminal Portuário das Lajes – contra o qual se encomendou a liturgia publicitária do tombamento – é, segundo a Vara Ambiental e o Órgão Ambiental local (desculpem a ambigüidade dos significados) - o único que cumpriu a legislação dos estudos e relatórios de impacto ambiental, dedicou 70% de sua área para abrigar um parque botânico, com fins de reposição florestal  e educação ambiental, envolveu a comunidade na definição de demandas, formas de atendimento e oferta de oportunidades do empreendimento. A obra ficará à jusante da Tomada d’Água, portanto, sem risco de contaminar o aqüífero, e distante 2,4 quilômetros da APA, Área de Proteção Ambiental, o epicentro do fenômeno, já tombado pela autoridade estadual. Só nos resta cuidá-lo. Ou seja, a proposta é rigorosamente sustentável, paradigmática e adequada à preservação do fenômeno, como todos nós,  os nativos, queremos. Como bom arqueólogo, o professor Neves tratou de destruir para depois estudar. No caso, ele destruiu a objetividade dos fatos para legislar sobre uma realidade que, tudo indica, parece desconhecer.
   (*) Alfredo é filósofo e consultor ambiental.

Nenhum comentário: