novembro 17, 2010

Por que a mídia da burguesia não dará tréguas ao governo Dilma Rousseff?

PICICA: Algumas expressões, ao desaparecer, empobrecem, com sua falta, o debate público. A palavra burguesia, restrita ao espaço acadêmico, é uma delas. O autoritarismo tratou de fazer uma limpeza ideológica dos discursos, para tornar silenciosamente aceitável apenas o que interessa ao domínio de classe (outra expressão banida do vocabulário cotidiano). Animado com a leitura do PICICA por jovens jornalistas, despidos de preconceito, é a eles que dedico esta postagem. E nada melhor do que citar esta passagem sobre a relação entre a mídia e a burguesia nacional, segundo a experiência de Wladimir Pomar: "O caso das provas do Enem não deve ser tomado apenas como uma tentativa de vingança da grande mídia. É preferível tomá-lo como a primeira experiência, após a derrota eleitoral, de como o combate permanente será travado daqui para a frente." O que virá pela frente deve por questões éticas na ordem do dia: a ética jornalística e a ética cidadã.

Governo Dilma: Sem tréguas


Wladimir Pomar
Por Wladimir Pomar

Veja, Globo, Folha, Estadão e outras mídias da mesma linha parecem continuar em campanha. Suas manchetes quase sempre procuram transformar qualquer defeito, qualquer deslize, qualquer erro, numa ação deliberada, de alta envergadura, praticada pelo governo ou pelo PT, ou pelos dois ao mesmo tempo, dependendo da oportunidade.


Como os Bourbons, que jamais aprendiam com a realidade da vida, essa grande mídia nada aprendeu com o resultados das urnas e a eleição de Dilma. Ela continua empenhada em ser, ainda mais do que antes, um órgão de propaganda explícita de seus próprios interesses e do setor da burguesia que não se conforma em ter o PT à frente de um governo de coalizão, por mais quatro anos. Ela jogou fora qualquer verniz de órgãos de informação, que devem dar espaço equânime às diversas versões de um mesmo fato, e só publica a sua própria versão, em geral viciada de rancor e, agora, mais do que antes, do desejo de vingança.

O caso dos exames do Enem é emblemático dessa sede de vingança. É evidente que não se pode concordar com erros que prejudiquem os estudantes, como os dos chamados cadernos amarelos, e que tais erros devam ser denunciados publicamente. É óbvio, também, que se deve exigir que os prejudicados tenham uma segunda oportunidade, mesmo que eles fossem apenas um ou dois.

No entanto, essa grande mídia transformou em escândalo público um erro que, num universo de alguns milhões de estudantes, prejudicou menos de um por cento dos participantes. Com isso, não só praticou  mau jornalismo, como tentou deliberadamente colocar em dúvida a continuidade do próprio programa do Enem. Adotou a política de tentar transformar pelo em casca de ovo numa bomba terrorista, colocando em prática a vocalização de Serra de que não dará trégua a seus inimigos políticos.

Em outras palavras, evidenciou que Serra não estava apenas fazendo uso de uma figura de retórica, mas verbalizando uma ordem de combate emanada de um estado-maior acima dele. Nessas condições, a idéia de que o governo, o PT e a esquerda não podem errar, embora adequado para um empenho mais decidido em não fornecer brechas, não nos salvará de ataques.

Primeiro porque erros fazem parte da condição humana. A dinâmica da vida social, a toda hora apresentando problemas novos, exige soluções novas, e o erro é parte inerente das buscas a essas novas soluções e ao conhecimento. Portanto, por maior que seja o esforço para não errar, eles ocorrerão. E, como se viu no caso da provas do Enem, por menores que sejam, eles abrirão brechas para ataques ferozes de inimigos que estão dispostos a transformar o que quer que seja em grandes erros imperdoáveis.

Além disso, o problema do Enem não foi apenas um erro técnico de impressão errada de um caderno de prova. Ao mudar o processo de afunilamento dos vestibulares, o governo está cometendo, aos olhos de um setor da elite brasileira, o grave erro de pretender democratizar a educação no rumo de uma maior participação popular.

O erro técnico foi tão somente o pretexto para a grande mídia atacar, sem tirar a máscara, o erro que considera mais grave. Isto é, aquelas medidas e ações que ferem interesses consolidados de setores dominantes da burguesia. O caso das provas do Enem não deve ser tomado apenas como uma tentativa de vingança da grande mídia. É preferível tomá-lo como a primeira experiência, após a derrota eleitoral, de como o combate permanente será travado daqui para a frente.

Nessas condições, quem pensa que a burguesia se contentará com os lucros do crescimento econômico e que estes a levarão a colaborar para o soerguimento da nação, deverá rever seus conceitos e seus sonhos.  Primeiro, porque não lhe bastam tais lucros. Ela tem pânico de seu futuro estar em mãos de gente em quem não confia.

Depois, há sinais, ainda tímidos, de que os trabalhadores pretendem retomar suas lutas por aumentos salariais e outros benefícios econômicos. E as demais camadas populares, à medida que conquistaram algum poder de compra, tenderão a descobrir suas necessidades comprimidas em termos de moradia, transportes, saneamento, educação, saúde, cultura e segurança. Quanto mais o governo se preocupar em dar atenção a tais demandas, mais errará, segundo pensam setores influentes da burguesia e das classes médias.

Frente a tais cenários, será necessário aprimorar tanto os procedimentos para evitar os erros técnicos, como o dos cadernos do Enem, quanto o trabalho político entre os trabalhadores, as camadas populares e as classes médias, para que tenham clareza das suas conquistas, consideradas erros e desperdícios pela grande mídia da burguesia.

Um exemplo do tipo de trabalho político a ser desenvolvido consiste na desmistificação do conceito, disseminado entre grande parte da população, de que o governo cobra impostos altíssimos e não gasta o que deveria como retorno à população. Isto está tão impregnado que, apesar das políticas sociais do governo Lula, tal conceito não foi abalado em nada, nem mesmo na mente de muitos militantes sociais.

É preciso mostrar que as grandes fortunas pagam poucos impostos, proporcionalmente ao que pagam as classes médias e os trabalhadores.  Denunciar que o pagamento da dívida pública historicamente acumulada é uma carga insuportável. Mostrar o esforço realizado pelo governo democrático e popular, assim como os obstáculos que encontra, para canalizar parte dos recursos públicos para as obras e serviços que interessam à maior parte da população.

Em outras palavras, tendo em vista um cenário de acirramento do combate contra os reais e fictícios erros do governo, o PT e os partidos de esquerda terão que se voltar mais e mais para um trabalho político que parecem ter abandonado, na suposição de que o governo tudo poderia. A prática já demonstrou que o governo, mesmo sob a direção de um partido de esquerda, está longe de poder tudo. E que a grande mídia da burguesia não dará tréguas. 

Fonte: Página 13

Nenhum comentário: