dezembro 31, 2010

Por que a decisão de Lula sobre o caso Battisti é sensata e correta

PICICA: "É necessário recordar que nos anos 70 o limite jurídico da prisão preventiva era fixado em 12 anos. É necessário recordar o uso da tortura e de processos sumários inteiramente construídos sob a palavra de presos aos quais era prometida a liberdade em troca de confissões. Este foi o clima dos anos 70. E não nos esqueçamos que nos anos 70 houve 36 mil detenções, seis mil pessoas foram condenadas e milhares se refugiaram no exterior." Sem esse tipo de informação, o leitor brasileiro, atoladado em noticiosos de má qualidade, fica impedido de fazer melhor juízo sobre o caso Battisti. Não é à toa que esse tipo de jornalismo vem perdendo a credibilidade, posto que suas fontes são viciadas. A entrevista abaixo, com o filósofo italiano Antonio Negri, é reveladora. A dica é de Bruno Cava.

 Anontonio Negri, imagem postada em midiaindependente.org

CASO BATTISTI, ENTREVISTA DE TONI NEGRI

02/03/2009 |
O limite da prisão preventiva era de 12 anos na Itália dos anos 70. Havia tortura e processos sumários inteiramente construídos sob a palavra de presos aos quais era prometida a liberdade em troca de confissões. Houve 36 mil detenções, seis mil pessoas foram condenadas e milhares se refugiaram. Seguem trechos da entrevista de Negri ao jornalista Thiago Scarelli, do UOL Notícias, em 15 de fevereiro de 2009.

Antonio Negri, 75, é professor da Universidade de Pádua (Itália) e do Colégio Internacional de Paris (França). Entre os anos 50 e 70, participou dos movimentos de esquerda na Itália, condenando tanto a direita quanto o stalinismo. Esteve preso entre 1979 e 1983, depois se exilou na França por 14 anos. Condenado por subversão, o filósofo voltou para a Itália em 1997 e cumpriu pena até 2003. Atualmente, divide seu tempo entre Veneza e Paris, cidades onde desenvolve atividades acadêmicas. Publicou uma vasta obra de filosofia política. É co-autor, com Michael Hardt, dos livros "Império" e "Multidão".

UOL - Como o senhor vê a posição da Itália no caso Battisti?

Antonio Negri - A posição italiana é uma posição muito complexa. Como se sabe, o governo italiano é um governo de direita e é um governo que, depois de 30 anos, retomou a perseguição das pessoas que se refugiaram no exterior depois do final dos anos 70, depois do final dos anos nos quais na Itália houve um forte movimento de transformação, de rebelião. E, portanto, o governo italiano retoma hoje uma campanha pela recuperação destas pessoas. Em particular, tentou fazê-lo com a França, para conseguir a extradição de Marina Petrella [condenada por subversão pela justiça italiana] e não conseguiu porque o governo francês, a presidência francesa [Nicolas Sarkozy], impediu. Neste ponto, aparece em um momento exemplar o caso Battisti.

UOL - O que significa esse "exemplo"? A punição de Battisti resolveria a questão da violência na Itália nos anos 70?

Negri - Precisamente. Resolveria em dois sentidos: por um lado, se recupera aquilo que eles chamam 'um assassino'; e por outro se esquece aquele que foi um Estado de Exceção, que permitiu a detenção e a prisão preventiva de milhares de pessoas durante estes anos. É necessário recordar que nos anos 70 o limite jurídico da prisão preventiva era fixado em 12 anos. É necessário recordar o uso da tortura e de processos sumários inteiramente construídos sob a palavra de presos aos quais era prometida a liberdade em troca de confissões. Este foi o clima dos anos 70. E não nos esqueçamos que nos anos 70 houve 36 mil detenções, seis mil pessoas foram condenadas e milhares se refugiaram no exterior. E se há quem duvide desses números, e que quer continuar duvidando, basta que deem uma olhada nos relatórios da Anistia Internacional naqueles anos. Portanto, essa é uma questão muito séria. O caso Battisti é, na verdade, um pobre exemplo de uma estrutura, de um sistema no qual a perseguição, insisto na palavra 'perseguição', era acompanhada por enormes escândalos na estrutura política e militar italiana. Houve uma construção, principalmente por meio de uma loja maçônica chamada P2, de uma série de atentados dos quais ainda hoje ninguém sabe quem foram os autores, atentados que deixaram milhares de mortos, por parte da direita. E o governo italiano nunca pediu, por exemplo, que o único condenado por estes atentados seja extraditado do Japão, onde se refugiou. Existe uma desigualdade nas relações que o governo italiano mantém com todos os outros condenados e refugiados de direitas que é maluca. O governo italiano é um governo quase fascista.

UOL - Como o senhor vê hoje o PAC [Proletários Armados pelo Comunismo, grupo do qual Battisti fazia parte]?

Negri - O PAC era um grupo muito marginal, mas isso não significa que não estivesse dentro do grande movimento pela autonomia. Mas ouça, o problema é esse: eu acho que as coisas das quais foi acusado Battisti são coisas muito graves, mas - e isso me parece importante dizer - estas são responsabilidades compartilhadas por toda a esquerda verdadeira. Não se trata de um caso específico. O Supremo Tribunal Federal do Brasil construiu uma jurisprudência pela qual foram acolhidos outros italianos nas mesmas condições que Battisti.

UOL - E como a Itália deve solucionar esta dívida com o passado?

Negri - Isso deveria ser feito por uma anistia, mas o governo italiano nunca quis caminhar por este terreno. Talvez tudo isso tenha determinado tremendas conseqüências no sistema político italiano, porque foi retirada da história da Itália uma geração ou duas, que poderiam ter conseguido determinar uma retomada política. É uma situação muito dramática. E gostaria de acrescentar uma coisa: o a postura da Itália no confronto com o Brasil a respeito deste tema é uma postura muito insultante.

UOL - Por quê?

Negri - Trata-se de uma pressão feita sobre o Brasil, enquanto um país fraco, depois que os franceses não extraditaram à Itália Marina Petrella. Psicologicamente, trata-se de uma operação política e midiática muito pesada contra o Brasil, na tentativa de restituir a dignidade da Itália, no âmbito da busca de restituir os exilados.

UOL - O senhor também esteve preso?

Negri - Eu fui detido em 1979 e fiquei na cadeia até 1983, em prisão preventiva, sem processo. Em 1983, houve um eleição parlamentar e eu saí da cadeia porque fui eleito deputado, porque não era ainda condenado. Fiquei preso quatro anos e meio - e poderia ter ficado até 12. Ou seja, quando os italianos dizem que nos anos 70 foi mantido o Estado de Direito, eles mentem. E isso eu digo com absoluta precisão, com base no meu próprio exemplo: fiquei quatro anos e meio em uma prisão de alta segurança, prisão especial, fui massacrado e torturado. Pude deixar a prisão apenas porque fui eleito deputado - do contrário, eu poderia ter ficado na prisão por 12 anos, sem processo. Durante os anos que fiquei na França, exilado, eu fui processado e condenado a 17 anos de prisão, mas que foram reduzidos porque havia uma pressão pública forte em meu favor. Quando voltei para a Itália, fiquei outros seis anos presos e encerrei a questão.

UOL - Quais eram as acusações?

Negri - Associação criminosa, gerenciamento de manifestações que eram violentas nos anos 70, em Milão, em Roma, em toda Itália. Mas a primeira acusação que sofri não era de agitador político, por escrever jornais etc., mas de chefiar as Brigadas Vermelhas, o que não é verdadeiro, e de ter assassinado [Aldo] Moro, acusações das quais fui absolvido depois. Entende? Na Itália se busca desesperadamente fazer valer uma mitologia dos anos 70, que é falsa. E a direita no poder hoje busca a qualquer custo restaurar um clima de falsidade e de intimidação para não permitir que a história seja contada como foi.


Fonte: ESTE MUNDO POSSÍVEL

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