janeiro 19, 2011

Bruno Cava resenha o "Despertar do capitalismo. Virtuosismo e Revolução"

PICICA: "O filósofo Paolo Virno finalmente teve um livro traduzido ao português. Defensor de um novo marxismo que não hesita em amalgamar a crítica da economia política, a semiologia e a filosofia pós-estruturalista".

18 de janeiro de 2011


Desertar do capitalismo. Virtuosismo e Revolução.


Resenha de VIRNO, Paolo, Virtuosismo e Revolução, Civ. Brasileira, 2008 [1994].

 

O filósofo Paolo Virno finalmente teve um livro traduzido ao português. Defensor de um novo marxismo que não hesita em amalgamar a crítica da economia política, a semiologia e a filosofia pós-estruturalista. No ensaio Virtuosismo e revolução, Virno aborda o estatuto da produção pós-industrial e a organização política que lhe corresponde. Visa a elaborar uma teoria da revolução original ― que ele chama êxodo. Marxista, sim, mas revisa e mesmo reprova partes da obra de Marx. E sem pedir licença nem desculpas aos guardiões da ortodoxia.

Na juventude, o autor se engajou nas mobilizações de esquerda dos anos 1970, numa Itália convulsionada politicamente. Na época, vigorava a aliança entre o Partido Comunista Italiano (PCI) e a Democracia Cristã ― uma espécie de pacto Molotov-Ribbentrop que excluía os movimentos sociais. Em 1979, aos 27 anos, terminou preso pela repressão que se seguiu ao assassinato de Aldo Moro. A estratégia da repressão se deu com a supervalorização das Brigadas Vermelhas. Esse grupúsculo guerrilheiro ― até hoje sinônimo “automático” da luta armada na Itália ― foi agigantado pela propaganda, para englobar um espectro muito mais variado, contendo dezenas de organizações, armadas ou não.

Acusado genericamente de “pertencimento a facções subversivas” e enquadrado em leis de exceção, Paolo Virno foi condenado a três anos de cadeia. Não chegou a integrar as Brigadas Vermelhas, mas participou do movimento da Autonomia Operária, cuja principal referência era o filósofo Antônio Negri. Grupo sem organicidade e plural, o operaísmo reunia os insatisfeitos com a esquerda tradicional (sindical ou partidária). Os operaístas envolveram-se nos principais conflitos do período, como o Outono Quente (1969) e o Movimento de 1977, e foram desmantelados em 1979.

O Movimento de 1977 serviu de laboratório para as ferramentas teóricas de Paolo Virno. Acontecimento histórico, não significara somente um “maio de 68” italiano. Se, no 1968 francês, apenas se esboçava um novo sujeito político além do operariado chão-de-fábrica; no 1977 italiano essa composição de classe emergiu em toda a sua exuberância. Vivenciou-se o primeiro tumulto de matiz claramente pós-industrial. Participaram dele jovens desempregados, feministas, hippies, punks, rádios livres, documentaristas, saltimbancos, “índios metropolitanos”. Embalados por canções de Eugenio Finardi, Gianfranco Manfredi e The Clash, puseram em xeque não somente o consenso autoritário de direita cristã e esquerda reformista, como também as pretensões de codificá-los no trabalho formal, subordinado e infeliz.

Foi um escândalo para a esquerda velha no poder, que se apressou em tachá-los de hedonistas, anarquistas, divisionistas, irresponsáveis, vândalos, criminosos e, por fim, terroristas. Em tempos de crise, conclamou pela unidade da classe proletária sob o estandarte dos sindicatos e do PCI, ou seja, deles.

O Movimento de 1977 rejeitava o modelo do militante tradicional: profissionalizado, leal, disciplinado e tendendo ao asceta. Militante reunido em coletivos hierárquicos e burocráticos, cujas tarefas se distribuem por especialidade. Todos unidos ao redor de uma causa comum, com sua verdade vocalizada, em última instância, pela cúpula. Com efeito, lembrava o padrão soviético de proletário: austero, digno, imbuído do senso de dever com o partido, pai-de-família-e-trabalhador. Em suma, uma identidade de classe à moda do Comintern.

Para os insurgentes de 1977 e Paolo Virno, esse modelo faliu. Tornou-se antipático às pessoas. A experiência dessa vida militante/proletária ficou mais pobre e desinteressante do que a oferecida pelo capitalismo. A mesma razão para as pessoas debandarem em massa dos países do socialismo real afugentou-as dos sindicatos e partidos vermelhos no ocidente. Simples assim: porque o mundo capitalista era mais atraente. Doravante, ninguém mais quer saber de sectarismo ou dogmatismo, de dirigentes paranóicos ou reuniões intermináveis em domingos ensolarados. Querem agora é comer um Big Mac, dançar que nem o Michael Jackson e andar de BMW lá na terra onde nasceram.

Ideologia? O capitalismo não precisa de ideologia. Não adianta sentar o cidadão numa sala de aula e, com sua total atenção, esforçar-se em convencê-lo da condição explorada dele e da necessidade de conscientizar-se e juntar-se à luta de classes. Como se as pessoas fossem trouxas e permanentemente enganadas por uma grande mentira. Não são ― por mais que certos líderes socialistas se julguem iluminados. Por sinal, a explicação de como uma contra-ideologia brota de uma ideologia dominante sempre foi o paradoxo das paralelas do socialismo.

Para Virno, não se trata de elaborar uma contra-ideologia, mas compreender como as formas de vida e os desejos (legítimos) das pessoas findam colonizados, isto é, como se é implicado no sistema integrado do capitalismo como entidade desejante e consumidora. Ao invés de negar os impulsos e reprimir o prazer, como se fossem ideologicamente motivados, é preciso afirmá-los e potencializá-los. Só que os desvinculando da captura capitalista, como produção livre.

Portanto, no século 21, o militante tradicional enxuga gelo. Não consegue demover as pessoas de buscar a consumação de seus desejos. Não percebe que, há mais de 30 anos, desertaram desse socialismo anêmico e não vão voltar. E desistiram espontaneamente, e não porque teriam sido iludidas por algum canto de sereia. A queda do muro de Berlim (1989) concluiu, na Europa, um processo de êxodo que irrompera em 1968 e deslanchara em 1977. Insistir hoje no antiquado modelo do operário/militante conduz à principal causa de frustração da militância. Quem nunca ouviu o estudante de camiseta vermelha lastimar: as pessoas não lêem o meu jornal, não ligam para o meu panfleto, e “só querem saber de carreira e consumir”.

Os tempos mudaram.

Em vez da identidade operária e sua coletivização através de sindicatos e partidos, agora o sujeito político é múltiplo e irredutível aos coletivos. Pulsa na porosidade criativa das minorias e na troca intoxicante da cultura livre. Articula-se numa rede militante, onde cada nó produz a sua verdade e extravasa os seus desejos. Não se restringe a criticar, mas também a criar. A sisudez e organicidade dão lugar à alegria de viver, à preocupação com o prazer, a um sentir afirmativo, a um otimismo crítico. Esgotou-se o ativismo no estilo “coletivos & reuniões”, substituído pelo “redes & vibrações”.

A verdade das lutas nunca pôde ser achada em círculos internos do partido ou em aparelhos burocráticos. Muito menos num esforço monástico de interpretação de textos canônicos. A verdade só pode emergir da prática dia-a-dia dos militantes-produtores. Ação política, trabalho intelectual e produção convergem no que Paolo Virno chama virtuose. Isto é, na sociedade pós-industrial, o processo de expressão não se separa do exprimido (o produto). O processo (existência) precede o produto (essência).

O virtuosismo não se resume à atuação de artistas ou intelectuais de primeiro time. Atualmente, todo o modo de produção depende, em alguma medida, da virtuose. Ou seja, de quem desempenha singularmente diante de um público. O que não se reduz a individualismo diletante, à medida que a virtuose demanda a presença dos outros e deles se nutre. Depende da orquestração dos muitos, em livremente circular e recombinar os conteúdos, em improvisar e inovar os sentidos, numa partitura comum e em incessante redação.

O artista profissional e o intelectual orgânico cedem a primazia para o saber socializado ― o “intelecto geral de massa”, quer dizer, a colaboração transversal dos diversos produtores e movimentos, imediatamente política e criativa. Nessa lógica, o conhecimento não é sintetizado de cima pra baixo, mas coordenado de baixo para baixo. A própria noção de “classe artística” ficou reacionária, pois a criação cultural inunda as ruas e se confunde com a produção de valores e sentidos ― como se propuseram as correntes da Arte Conceitual.

Longe de ludismo ineficaz ou arrogância pós-moderna, é preciso admitir que o proletariado, como pregado pela esquerda velha, nunca existiu. Seu conceito de classe era uma abstração diáfana que servia a relações de poder de uma elite burocrático-estatal ou partidário-sindical. Por sua vez, o Movimento de 1977 e as teorias que dele irromperam não negam a existência do proletariado, mas o constitui de um modo não-mistificador, sem perder de vista a busca do prazer e como mobilização de um tecido social heterogêneo. Não é por acaso que a esquerda tradicional o classifique “lumpenproletariado”, isto é, gentalha improdutiva. Mas inservível, precisamente, para o capitalismo. É o sistema capitalista quem ambiciona subsumir a todos como proletários dóceis, esforçados e honestos, qual um autômato corporativo ― mistificação que o marxismo ortodoxo subscreve na figura de seu operário modelo. E assim a esquerda só consegue dar passos de caranguejo, anquilosada em uma verdade obsoleta.

Nesse transbordamento que o Movimento de 1977 dispara, resta pequeno para a esquerda sair de chapéu na mão para pedir emprego e salário ao capitalismo. As pessoas podem ser mais livres do que o funcionário nove-as-cinco, que vende o seu tempo de vida para o lucro de terceiros. E podem ser mais ricas e mais felizes e mais virtuosas.

Nem flexibilizar o estatuto do trabalho em nome da precariedade de direitos, como quer o neoliberalismo; nem apostar no emprego formal subordinado industrial, como promete a esquerda antiquada. A revolução reside no terceiro termo, no cruzar em diagonal pela dualidade salarial x informal. Menos do que converter todo mundo em uma classe-média homogênea, constituir mil classes-médias em seus mil regimes distintos de produção-expressão, circulação e consumo.

No novo horizonte, pode-se constituir uma sociedade com renda universal, multiplamente produtiva, em que não haja mais patrões e capitalistas. Globalizado e sem centro, o capitalismo não precisa mais ― e, aliás, não pode ― ser objeto de um assalto frontal. A revolução não acontece com a tomada do poder do estado. É outro o caminho. A produção virtuosa das redes contorna o capitalismo, esgarça um campo alternativo ao trabalho assalariado e seu regime de acumulação, e multiplica os desejos com mais potência do que no limitado universo da publicidade.

Por tudo isso, Paolo Virno entende a revolução contemporânea como êxodo constituinte. Exemplifica-o com manifestações contemporâneas: o argentinazo e seu que se vayan todos!, a rebelião dos forajidos no Equador, os caracoles e as juntas de bom governo dos zapatistas, a ocupação de terras improdutivas pelo MST, e até a constituição dos quilombos do Brasil escravocrata.

Se, no século 20, as pessoas decepcionaram-se e acabaram abandonando espontaneamente o socialismo, hoje se tornou viável desertar do capitalismo. Isto também significa escapar de suas armadilhas: a lógica da representação, a figura do militante orgânico, a idéia de mercado de trabalho e o emprego formal como reivindicação.



:::::VIRNO, Paolo; Virtuosismo e revolução; tradução de Paulo Andrade Lemos, 1ª ed., Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2008.
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Veja também as resenhas de outros livros da mesma Coleção:


* Pode sair coisa boa quando Deleuze encontra Marx, sobre As Revoluções do Capitalismo, de Maurizio Lazzarato

* Que aconteceu com o meu marxismo?, sobre Os Marxismos do Novo Século, de César Altamira

* O economista das revoluções pós-modernas, sobre O Lugar das Meias, de Christian Marazzi

* Amor e pós-capitalismo, sobre Commonwealth, de Antônio Negri e Michael Hardt

* Por uma esquerda pós-moderna, sobre MundoBraz, de Giuseppe Cocco

Fonte: Quadrado dos Loucos

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