janeiro 30, 2011

"Luta de classes no Egito", por Juan Cole

PICICA: "Por que o estado egípcio perdeu a sua legitimidade? Max Weber distinguia entre poder e autoridade. O poder sai do cano de uma arma, e o estado egípcio tem muitas delas. Porém Weber define autoridade como a probabilidade de o comando ser obedecido. Líderes que têm autoridade não precisam atirar nas pessoas. O regime de Mubarak teve de atirar sobre pelo menos 100 pessoas nos últimos dias, e feriu outras mais. Literalmente, centenas de milhares de pessoas ignoraram o comando de Mubarak para respeitar o toque de recolher. Ele perdeu a sua autoridade." Leia, também, "Egito: uma revolução de verdade".
Carlos Latuff

Luta de classes no Egito


Por Juan Cole, do Informed Comment | Tradução: Bruno Cava

Na manhã de domingo, havia algum sinal das Forças Armadas do Egito assumindo responsabilidades de segurança. Soldados começaram a prender saquadores suspeitos, enquadrando 450 deles. O desaparecimento da polícia das ruas levou à ameaça de saque generalizado, o que virou preocupação dos militares. Outros métodos de controle foram usados. O governo fechou definitivamente os escritórios da Al-Jazeera em Cairo e cancelou a licença dos jornalistas de reportar as histórias, de acordo com tuítes (Al-Jazeera não estava conseguindo transmitir direto do Cairo inclusive antes desta manobra). O canal, baseado no Qatar, é visto pelo presidente Hosni Mubarak como uma tentativa de solapá-lo.


Por que o estado egípcio perdeu a sua legitimidade? Max Weber distinguia entre poder e autoridade. O poder sai do cano de uma arma, e o estado egípcio tem muitas delas. Porém Weber define autoridade como a probabilidade de o comando ser obedecido. Líderes que têm autoridade não precisam atirar nas pessoas. O regime de Mubarak teve de atirar sobre pelo menos 100 pessoas nos últimos dias, e feriu outras mais. Literalmente, centenas de milhares de pessoas ignoraram o comando de Mubarak para respeitar o toque de recolher. Ele perdeu a sua autoridade.


A autoridade enraíza-se na legitimidade. Líderes são reconhecimentos porque as pessoas consentem que existe uma base legítima de sua autoridade e poder. Em países democráticos, essa legitimidade vem da urna eleitoral. No Egito, derivou entre 1952 e 1970 no papel de liderança das forças militares do Egito em livrá-loda hegemonia ocidental.


Essa luta incluía disputar com o Reino Unido o controle sobre o Canal de Suez (originalmente construído pelo governo egípcio e aberto em 1869, mas comprado a preço de banana em 1875 com manobras prévias do sistema financeiro para endividar o país e levá-lo à bancarrota, forçando a operação de venda). Também envolveu aparar tentativas agressivas de Israel em ocupar a Península do Sinai e afirmar influência sobre o Canal de Suez. O líder nacionalista árabe revolucionário Gamal Abdel Nasser conduziu uma reforma agrária extensiva, rompendo com o imenso sistema de hacienda típico da América Central e criando uma classemédia rural. Leonard Binder argumentou que no final dos 1960 essa classemédia rural foi a espinha do regime de Nasser. O líder nacionalista também implementou, pela via do estado, uma industrialização, que produziu uma classemédia urbana, beneficiada das obras de construção civil comissionadas pelo governo.

Desde 1970, Anwar El Sadat levou o Egito numa nova direção, abrindo a economia e abertamente ficando lado a lado com a nova classe de empresários multimilionários. Esta, por sua vez, era ávida por investimentos europeus e americanos. Cansada das guerras infrutíferas entre árabes e israelenses, o povo egípcio era extensivamente simpático ao acordo de paz de 1978, que Sadat firmou com Israel e encerrou o ciclo de guerras. Isto pavimentou o caminho para o desenvolvimento da indústria turística do Egito e para o investimento ocidental, assim como para o início da ajuda financeira dos Estados Unidos e Europa. Egito movia-se à direita.


Mas enquanto as políticas socialistas de Nasser levaram à duplicação da renda média real no Egito entre 1960 a 1970, de 1970 a 2000 não houve desenvolviment real no país. Parte do problema é demografia. Se a população cresce 3% ao ano e a economia cresce 3% ao ano, a renda per capita fica estagnada. Desde 1850, Egito e a maior parte dos países do Oriente Médio tiveram um (misterioso) boom populacional. A sempre-crescente população também aumentou a sua concentração nas cidades, onde se oferecem salários mais altos do que no campo, mesmo na economia informal (ex: vender fósforos). Cerca da metade dos egípcios vivem agora nas cidades, e mesmo diversas vilas se tornaram subúrbios das metrópoles vastas.


Assim, a classemédia rura, embora ainda importante, não é mais um apoio de peso ao regime. Um governo de sucesso precisaria ter os números crescentes da população urbana a seu lado. Mas aí, as políticas neoliberais, impostas a Mubarak pelos Estados Unidos desde 1981, não ajudaram. As cidades egípcias sofrem de um alto desemprego e relativamente alta inflação. O setor urbano foi apossado por uns poucos multimilionários, mas muitos trabalhadores ficaram pra trás. O número enorme de graduados do ensino médio e superior produzidos pelo sistema raramente acham emprego à altura de sua formação, ou então não conseguem qualquer tipo de emprego. O Egito urbano tem ricos e pobres mas uma pequena classemédia. O estado cuidadosamente tenta controlar os sindicatos, que podem poucas vezes agir independentemente.


O estado paulatinamente se tornou um estado de poucos. a velha base nas classemédias rurais rapidamente declinou na medida em que os jovens mudaram-se para as cidades. Pouco era feito em benefício das classes trabalhadoras e classemédias urbanas. Um estado com uma classe ostentatória de empresários emergiu, profundamente dependente dos contratos públicos e da boa vontade do estado, que se reúne em hotéis turísticos suntuosos. Mas as massas de graduados no ensino médio e superior se limitavam a dirigir táxis ou vender tapetes e não se beneficiavam as taxas de crescimento oficiais da década passada.


O regime militar no Egito inicialmente tinha legitimidade popular em parte por seu papel em conter França, Reino Unido e Israel em 1956 e 1957 (com a ajuda de Ike Eisenhower).  Depois dos acordos de Camp David, ao revés, Egito se retirou das grandes lutas do Oriente Médio, e realizou o que se conhece por “paz separada”. A cooperação do Egito com o bloqueio de Gaza por Israel e sua geralmente quieta aliança com os Estados Unidos e Israel irritou politicamente a maioria dos jovens, ainda mais por sentirem as frustrações com a economia. Nos bastidores, é bem sabido que Cairo ajudou os Estados Unidos no Iraque e com suspeitos da al-Qaeda torturados. Pouca coisa é tão desgostosa aos egípcios do que a Guerra do Iraque e a tortura. O estado egípcio foi expropriado da ampla base social dos 1950 a 1960 pela concentração numa pequena elite. Ele passou de símbolo da luta por dignidade e independência de décadas de jugo britânico, a cachorrinho do Ocidente.


O fracasso do regime em ligar-se às classemédias urbanas e trabalhadoras crescentes, e sua inabilidade de prover de empregos às massas de graduados, preparou o terreno para os eventos da semana passada. Diplomadas, os trabalhadores de colarinho branco precisam da lei como  moldura para suas atividades econômicas, e o comando arbitrário de Mubarak é visto como um empecilho aqui. Enquanto a economia crescia 5 ou 6% na última década, o ímpeto do governo relacionado a esse desenvolvimento ficou relativamente escondido – ao contrário de seu papel ostensivo na reforma agrária dos 1950 e 1960. além disso, a renda advinda do comércio crescente concentrou-se numa pequena classe de investidores. Por exemplo, desde 1991 o governo privatizou de 150 a 314 fábricas, mas o benefício das vendas foi para uma fatia delgada de pessoas.


A recessão econômica mundial de 2008-09 teve um efeito horrível e direto nos egípcios marginalizados. Muitos pobres passaram fome. E então a queda dos preços do petróleo e dividendos fez com que muitos trabalhadores no exterior perdessem seus salários. Eles não podiam remeter sua renda aos familiares como faziam, ou voltavam para casa humilhados.


O estado nasserista, com todos seus defeitos, ganhou legitimidade porque era visto como um estado de massa dos egípcios, quer internamente, quer na política externa. O presente regime é visto abertamente no Egito como um estado para os outros – para os EUA, Israel, a França e o Reino Unido, e como um estado para poucos, os emergentes do neoliberalismo.


O islamismo não tem nenhum papel na análise porque não é uma variável independente. Movimentos muçulmanos servem de protesto pela falta de responsabilidade do estado, ao não prover serviços. Mas eles são um sintoma, não a causa. Tudo isso explica por que a nomeação por Mubarak de militares a vice-presidente e primeiro-ministro não pode temponar a crise. Eles, como homens do sistema, não tem mais legitimidade do que o presidente, e talvez até menos.

About the Author


Bruno Cava é escritor, engenheiro e bacharel em direito. Mestrando em filosofia política do direito, autor de "A Vida dos Direitos" (2008), escreve em vários sites e publica o blogue Quadrado dos loucos.

Fonte: OUTRAS PALAVRAS

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