fevereiro 12, 2011

"O Islamismo no Mundo que Muda", por Hugo Albuquerque

PICICA: "(...)várias ditaduras pelo Norte da África e Oriente Médio são máscaras do Ocidente civilizado e sofisticado e isso não tem nada a ver com religião". Leia também: A verdadeira tragédia dos países árabes é o desaparecimento de uma esquerda forte e laica
Imagem postagem no The Guardian

O Islamismo no Mundo que Muda

Ibn Tulun -- um das mesquitas mais antigas do Cairo

Muito se discute acerca da relação entre religião e a Revolução que se desdobrou pelo mundo árabe ao longo de Janeiro e, não raro, surgem certas indagações curiosas: Acaso não seria um marcha de fundamentalistas? Qual o risco disso não resultar em um novo Irã? Ainda que essas preocupações sejam, isoladamente, legítimas, elas têm sido usadas - justamente pela sua legitimidade - para falsear questões importantes sobre o que realmente se passa, o primeiro item nesse sentido, sem dúvida, é esconder os reais motivos da participação do Ocidente na sustentação de todos aqueles regimes nefastos (ou quem sabe, atenuar tal participação), o segundo, para lançar sombras sobre a legitimidade daquele grande movimento revolucionário - o que, em último caso, é uma apologia cínica à situação existente até Dezembro -, o terceiro, a própria função da religião nesse processo de neocolonização. Sim, várias ditaduras pelo Norte da África e Oriente Médio são máscaras do Ocidente civilizado e sofisticado e isso não tem nada a ver com religião - com Islã decadente que eles encontraram nos fins do século 19º certamente não era -, mas sim com petróleo e, num segundo momento, o movimento não menos importante de exercer domínio estratégico para afirmar a disseminação de sua cultura - logo, sua economia - e esse movimento, naturalmente, é anterior ao fundamentalismo islâmico: É da destruição de uma esquerda secular árabe e persa que surge esse fenômeno, desde sua eliminação física até o fato de toda uma geração ter sido empurrada para as mesquitas (onde, supunha-se, tornariam-se inofensivos e submissos). Um plano curioso, sem dúvida: Promover a exploração dos recursos naturais e sociais de toda uma região com regimes linhas duras que deveriam, por sua vez, deixar as portas abertas às inovações do Ocidente e, como movimento subsidiário, deixar as populações marginalizadas no suposto atraso da religião, onde se tornariam ovelhinhas crentes ou, em uma segunda situação, atores políticos deslegitimáveis, mas inofensivos quanto à ameaça à ordem. Os nacionalistas e socialistas eram mortos ou presos, os jovens iam para as mesquitas e, quando surgiam movimentos islamizados, alguém dizia em tom professoral até bem pouco, "sim, são regimes austeros, mas existe o risco do fundamentalismo" - como se os ocidentais não tivessem responsabilidade sobre isso e como se tudo que viesse daquela religião se confundisse com violência. O Islã dentro do contexto do novo imperialismo que se seguiu à Segunda Guerra precisava cumprir uma função neutralizante das camadas plebeias, mas, caso se tornasse um mecanismo de luta, ele próprio seria rotulado de forma a ser neutralizado (como foi) - em outras palavras, o Islamismo do Mundo muçulmano dos fins do século 19º é uma espécie de novo arcaísmo criado pelo mesmo Capitalismo que esquizofreniza aquelas sociedades; ele não é uma volta ao antigo, mas sim o uso de um antigo à serviço do atual, uma espécie de reterritorialização - um mecanismo subsidiário à atuação da axiomática da máquina capitalista junto àquelas sociedades, o qual ele pode prescindir, mas não nessas condições históricas determinadas. Não, o Islã - e nenhuma outra religião, nem na sua variante mais opressiva -, é inimiga da ordem capitalista na medida em que são instrumentalizados em prol de uma ordem econômica e social que pouco tem a ver com aquela na qual surgiram - e a expansão do número de muçulmanos nos últimos cem anos nos parece uma evidência razoável disso - ao mesmo tempo em que se tonaram fantasmas na medida em que, em seu interior, engendram movimentos em seu interior que se não são necessariamente inimigos do Capitalismo, ameaçam a ordem posta. Por outro lado, as próprias revoltas vistas recentemente passam ao largo de um movimento deflagrado de dentro das mesquitas para as praças públicas: Trata-se de uma irrupção revolucionária que mobilizou diversos setores daquelas sociedades, revoltados que podem ser muçulmanos, mas que não o são exclusivamente por o serem, engolfando assim até mesmo seus movimentos de reivindicação muçulmanos: Isso coloca em xeque desde a elite local até ao Ocidente. Isso equivale a um movimento que é transversal entre a luta por uma democracia e direitos e a luta contra a opressão imperialista - afinal, uma coisa está junto da outra naquele contexto - formado por intensa mobilização multitudinária, o que é um golpe bastante duro na prática e no discurso do poder - mas não baixemos a guarda, sua propriedade é, justamente, se rearticular.


P.S.: Vale a pena ler o que Noam Chomsky e Slavoj Zizek escreveram sobre a Revolução Árabe. Concorde-se ou não com eles, não resta dúvida que são intelectuais de relevo e polemistas necessários na cena atual.


Atualização de 05/02 às 18:17: O Tsavkko escreveu a respeito do assunto deste post para o Amálgama.  Sobre a violência no Cairo nos últimos dias, vale a pena ler este relato impressionante de Robert Fisk traduzido no Outras Palavras.

Fonte: O Descurvo

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