março 21, 2011

"Excessos da autocrítica no ateísmo: Duas respostas", por Eli Vieira

PICICA: "Recentemente, dois artigos de ateus criticando ateus foram publicados no ótimo “pensódromo” Amálgama. O primeiro, de Raphael Tsavkko Garcia, li assim que publicado. Mas foi o segundo, de Bruno Cava, que me impeliu a escrever esta resposta aos dois."

Excessos da autocrítica no ateísmo: Duas respostas

Autor: Eli Vieira

Charge da excelente revista britânica New Humanist

Para uma comunidade cética, como se caracteriza parte da comunidade de ateus, autocrítica não é apenas útil, é salutar.

Recentemente, dois artigos de ateus criticando ateus foram publicados no ótimo “pensódromo” Amálgama. O primeiro, de Raphael Tsavkko Garcia, li assim que publicado. Mas foi o segundo, de Bruno Cava, que me impeliu a escrever esta resposta aos dois. Esperei um mês após a publicação do texto do Cava para escrever esta resposta, porque precisava sentir o conforto da poeira assentada. E hoje é um dia apropriado: estamos a dois meses do segundo Dia Internacional de Desenhar Maomé.

1 – O Islã e as práticas

Começou com a religião de Maomé o texto do Tsavkko, intitulado “Quando confunde-se religião com práticas”. Raphael, como sugere no título, mostra-se incomodado quando “ligam ditadura e repressão ao islamismo”, quando o mote é por exemplo o regime do Irã. Violência e terrorismo são atos políticos, não seria justo associá-los à religião – quem já leu o Corão saberia que o islamismo pregado pela Al Qaeda é uma deturpação. “O problema não está na religião/ideologia, mas na prática desta, na apropriação e leituras feitas a posteriori por quem tinha claros interesses em desvirtuar aquilo que milhões seguem ou acreditam”.

Recentemente, no programa de Bill Maher, o parlamentar muçulmano estadunidense Keith Ellison usou exatamente estes mesmos argumentos, e quando Bill leu a afirmação de Sam Harris de que “em quase toda página o Corão instrui muçulmanos devotos a detestar os descrentes”, Ellison respondeu que isso é um “absurdo, ridículo, não é verdade”, e acrescentou que o argumento dos terroristas é completamente baseado em política. Sam Harris, em seu blog, replicou:
“[E]stá ficando cada vez mais desconcertante ver muçulmanos moderados mentindo reflexivamente sobre os cânones de sua fé. É claro, é difícil saber se Ellison estava mentindo ou meramente incônscio sobre o conteúdo do Corão. (…) Quem reformará o Islã se os moderados se recusam a falar honestamente sobre tais doutrinas que necessitam de reforma?”
Alegar que não há relação entre certas passagens do Corão e as decisões morais dos terroristas não é promover uma religião moderada, é tentar tapar o sol com a peneira. Eis algumas passagens compiladas por Harris, uma amostra limitadíssima:
“E matai-os, onde quer que os acheis, e fazei-os sair de onde quer que vos façam sair. E a sedição pela idolatria é pior que o morticínio. (…) Então, se eles vos combaterem, matai-os. Assim é a recompensa dos renegadores da Fé. E, se eles se abstiverem, por certo, Allah é Perdoador, Misericordiador.  E combatei-os, até que não mais haja sedição pela idolatria e que a religião seja de Allah. Então, se se abstiverem, nada de agressão, exceto contra os injustos.” (2:190-193)
“É-vos prescrito o combate, e ele vos é odioso. E, quiçá, odieis algo que vos seja pior. E Allah sabe, e vós não sabeis.” (2:216)
“Por certo, aos que renegam a Fé, de nada lhes valerão as riquezas e os filhos, diante de Allah. E esses serão combustível do Fogo.” (3:10)
“Por certo, a religião, perante Allah, é o Islão. E aqueles [judeus e cristãos] aos quais fora concedido o Livro, não discreparam senão após a ciência haver-lhes chegado, movidos por agressividade entre eles. E quem renega os sinais de Allah, por certo, Allah é Destro no ajuste de contas.” (3:19)
“E que os que renegam a Fé não suponham que o prazo que lhes concedermos seja um bem para eles mesmos. Apenas, concedemo-lhes prazo, para se acrescentarem em pecado. E terão aviltante castigo!” (3:178)
A LiHS tem uma sócia emérita, Maryam Namazie, que nasceu no Irã, saiu de lá por causa da revolução dos aiatolás, e acabou no Sudão, de onde foi deportada por um outro regime islâmico recém instalado, pelo “crime” de ter fundado uma organização pró direitos humanos. Tudo isso nada teve a ver com religião? Ela discorda. O Islã tem uma lei própria, a lei da Sharia, que explicitamente recomenda a morte como pena contra a apostasia, e é devidamente aplicada em alguns países islâmicos. A Sharia prevê outras coisas como menor direito de herança para mulheres, e praticamente nenhuma garantia de direitos iguais para qualquer cidadão de outra religião. Maryam Namazie fez parte de um movimento que teve sucesso em banir a Sharia no Canadá, e agora luta pela mesma causa no Reino Unido.

Só para dar um exemplo recente, mas de forma alguma isolado, em outubro passado foi preso na Palestina um jovem chamado Walid Husayin, por ser ateu e promover suas opiniões em seu blog Noor al-Aqel (Esclarecimento da Razão). Isso num país ao qual interessa promover uma visão moderada do islamismo para ser reconhecido como Estado independente pela comunidade internacional. A Autoridade Palestina pretende punir seu ateísmo com prisão perpétua, mas o povo clama mesmo é pela execução.

O New York Times relatou há três dias que um dos líderes mundiais do islamismo moderado, o americano Yasir Qadhi, tem problemas frequentes com alunos que desejam seguir a Jihad das formas mais extremas. Um de seus alunos foi preso no Natal de 2009 – pretendia explodir um avião com uma bomba escondida na cueca. Nada a ver com religião? Então por que há recém-convertidos ao Islã entre os acusados de terrorismo?

Não estamos confundindo religião com práticas: religiões são majoritariamente suas práticas. E a forma como o Islã é apresentado no Corão o torna uma religião indissociável da política – por esta razão é difícil encontrar Estados laicos de maioria islâmica. Apesar de ser uma religião descentralizada em liderança, o Islã centraliza-se na noção da ummah, a nação islâmica no mundo que foi comparada pelo profeta a um corpo – se uma parte se machuca, todo o corpo sente. Por isso um recém-convertido ao Islã tem um dever para com seus correligionários afegãos sob opressão das tropas americanas. Portanto, falar em política como se isso isentasse o islamismo de responsabilidade é infrutífero.

Estou de acordo com Tsavkko quanto a religião ser parte do problema, mas em muitos casos não é “apenas” parte do problema, mas seu cerne. Atribuir tudo a uma entidade amorfa chamada “política” é deixar para trás os fenômenos cognitivos pelos quais passa a mente religiosa – que podem, sim, incluir a sensação de presença real de um deus que quer, sim, que os infiéis sejam submetidos ao tratamento recomendado pelo Corão ou pela Bíblia. Queremos um Islã mais amigável, mas nos fazer de cegos como o deputado Ellison não é promover isso, é autoengano. E é por isso que Qadhi por exemplo quer discutir a Jihad com seus estudantes na forma como ela é apresentada pelo Corão, porém, temendo que as conclusões sejam desagradáveis para o FBI, ele diz ter as mãos atadas e a língua silente.

Que atualmente haja mais muçulmanos obedecendo às passagens belicosas do que cristãos é tanto acidente histórico quanto maior insistência e clareza do Corão nesta mensagem de ódio, além de no ocidente a maior laicidade ter sido uma conquista dos valores seculares promovidos concomitantemente à revolução científica que nos levou de uma expectativa de vida de 30 anos para uma de 70. E, se podem ser tomados como exemplo, os líderes cristãos, ou parte deles contando com o silêncio do resto, espernearam ao longo de todo caminho: protestaram contra a anestesia, contra a pílula, contra a camisinha, e continuam sendo um entrave para direitos fundamentais que envolvam em seu cerne alguma liberdade de viver a vida com prazer.
Mas uma parte considerável dos cristãos não se importa que façamos troça do Papa, mesmo entre católicos. Enquanto isso, mais de 100 mortes resultaram da reação islâmica aos cartuns publicados no jornal dinamarquês Jyllands Posten em 2005. E desde então, anualmente, os países islâmicos têm atravancado as reuniões do conselho de direitos humanos da ONU tentando passar uma resolução que faça todos os países membros aprovarem leis antiblasfêmia.

Vamos promover aqui neste minúsculo espaço, no dia 20 de maio, mais um Dia de Desenhar Maomé. Isso é uma forma da comunidade internacional tentar separar o joio do trigo: é uma boa heurística julgar que será muçulmano moderado aqueles que respeitarem nosso direito de desenhar o que bem entendermos, sem pagar tributo a sistemas de crença que consideramos logicamente e factualmente tão absurdos quanto o cristianismo. Está na hora de mostrar que na hierarquia da convivência pacífica, as leis seculares vêm primeiro!

2 – Negando o preconceito contra ateus: uma síndrome de “Estou-calmo”

Conhecemos uma síndrome psicológica interessante que pode abater pessoas que foram sequestradas e depois de soltas defendem seus sequestradores: a síndrome de Estocolmo.  Lendo o texto do Bruno Cava, “Ateísmo em si, causa desfocada“, não pude resistir ao chiste de fazer algum paralelo com a síndrome e batizar a negação do preconceito contra ateus na sociedade brasileira de “síndrome de estou-calmo”.
Bruno está calmo quanto a seu ateísmo não atrair para ele preconceito, e eu também estou. Vivo num ambiente acadêmico em que ser ateu não apenas não faz a mínima diferença: é comum, e não surpreende ninguém. Só entra em pauta quando algum criacionista ou outro militante anticiência religiosamente motivado faz barulho suficiente na imprensa ao ponto de chegar até quem não sai procurando que tipo de coisa eles andam dizendo. O máximo que me aconteceu foi, durante a graduação na UnB, ter encontrado uma professora de botânica que tomou tempo de uma disciplina de criptógamas para dizer que “não existe ateu de verdade no Brasil”. Eu, talvez por covardia, talvez por não-violência, não me manifestei, mas meus colegas todos puseram os olhos em mim esperando por reação. E se resume nisso o preconceito que posso relatar ter sofrido na minha vida fora da web.

Eu estaria sofrendo da “síndrome de estou-calmo” se eu tentasse generalizar minha situação para todos. Veridiana, nos comentários ao post do Cava, relata ter sido demitida por ser ateia. Erandir Toneto, na lista de emails da LiHS, relata:
“[A]qui na empresa algum tempo atrás, um indivíduo em particular veio tirar satisfação quanto a minha situação de ser ateu.
Perguntou se podia entrar na minha sala para conversar e eu disse que sim.
Mas percebi pelo tom dele que a coisa não ia tomar um rumo bom.
Começou a perguntar do porque eu não acreditar em deus, quem me dá as coisas que tenho? Eu respondi que tudo que tenho é por mérito meu. Ele me disse que tudo o que ele tem é com a graça de deus e que se eu tinha alguma coisa era com a ajuda do diabo.
Eu disse: ‘eu nunca fiquei desempregado e você esteve anos parado. Eu não acredito nem em deus nem no diabo. Mas se você diz que ambos existem o que me ajuda deve ser mais poderoso né?’
O cara ficou tão nervoso que se levantou e saiu.
Uns dias depois na fila do refeitório ele veio bufando em minha direção me deu um soco de leve mas forte e disse alto, ‘essa porra é ateu’. O empurrei na mesma hora e disse, sou ateu e educado. Quando ele se armou para pular em cima os amigos dele o seguraram.”
Então, está dado o recado. Há ateus vivendo em situações sociais hostis a eles, e a razão para isso é que em média a sociedade brasileira é, sim, hostil aos ateus. Não vou me dar ao trabalho de botar o link da pesquisa da Perseu Abramo denovo, que mostrou que os brasileiros odeiam mais os ateus do que os viciados em drogas. Há bons motivos para acreditar, também, que aquelas minorias que mais se expõem na busca de direitos são as que mais sofrem a retaliação reacionária. Então nós ateus ainda não vimos nada do que nossos concidadãos reservam para nós em matéria de ódio.

Há porém um mérito no texto do Bruno Cava: o ateísmo pode sim ser uma causa desfocada. Nos últimos tempos aqui no Bule Voador, houve debates acalorados depois que o Conselho de Mídia aceitou minha sugestão de trazer dois cristãos para postarem textos quinzenalmente (‘Advocati Fidei‘). Tivemos sim manifestações de alguns ateus sem foco que não conseguem entender que lutar pelo humanismo e pelo ceticismo é mais importante que lutar pelo ateísmo puro e simples.

Tanto quanto desenhar Maomé é uma heurística para separar moderados e fundamentalistas, defender aqui no Bule, que já deve ser o maior blog ateu do Brasil, os direitos dos gays, das mulheres, o ceticismo sem amarras no ateísmo e uma posição política informada pelo humanismo é nossa heurística para separar o joio do trigo entre os ateus. E o Bruno Cava, que é um blogueiro muitíssimo articulado e culto, lembra isso muito bem citando o caso Central Ceticismo.

Termino essa crítica com dois adendos: o primeiro é que, no racionalismo, o ateísmo não é causa desfocada quando defendido com argumentos filosoficamente informados. É um trabalho filosófico racionalista responder a Pascal, C. S. Lewis e William Lane Craig.

E o segundo é: devo insistir que o Bule Voador não é um blog de esquerda. Já argumentei que o humanismo secular não é posição à direita ou à esquerda, mas um árbitro. Christopher Hitchens é de direita e poucos discordariam que ele é humanista, embora haja motivos para discordar do que ele diz sobre WikiLeaks e a Guerra do Iraque. Já Sam Harris se diz mais à esquerda.

Ser de direita, de centro, de esquerda, tangenciar ou ser perpendicular a cada uma dessas posições políticas não é diferente de ser corintiano, flamenguista ou cruzeirense para o humanismo secular: é irrelevante.

Desconfio que o maior problema nos dois textos que critiquei aqui é algo que pode ser chamado de “reducionismo político”. Tsavkko reduz fatos importantes sobre a cognição religiosa à política, e Cava reduz à política uma miríade de conflitos entre uma minoria e uma maioria associados às respectivas cosmovisões com complicadores epistemológicos e éticos.

Pode ser verdade que tudo é política, mas também é verdade que o que explica tudo não explica nada.
Fiquem com Zeus. (Grécia está na moda neste blog.)

Fonte: Bule Voador

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