abril 29, 2011

"A cidade onde a Reforma Psiquiátrica não ocorreu", por Ricardo Carvalho

PICICA: O modelo de atenção psicossocial às pessoas com transtorno mental ainda convive com o modelo manicomial de atenção em saúde mental em vários estados da federação, e se constitui num dos desafios do governo Dilma Roussef. Ampliar e consolidar a reforma psiquiátrica antimanicomial é decisiva na restituição das relações entre a sociedade e a loucura, de modo a garantir para esta última possibilidades de marcar sua presença e participação na cultura, como nos lembram Ana Marta Lobosque e Miriam Abou-Yd. Afinal o modelo psiquiátrico tradicional tornou-se índice de marginalização e exclusão sociais. Queremos modelos abertos e dispositivos reabilitadores. Definitivamente, temos de desmontar o modelo de Sorocaba. E, na sua cidade, como vai a reforma psiquiátrica antimanicomial?  Em tempo: Este post é dedicado à psicóloga Deusdeth Martins, incansável militante antimanicomial de Goiânia-GO, e aos demais companheiros da Rede Nacional Internúcleos da Luta Antimanicomial (Renila) que, em parceria com o Conselho Federal de Psicologia, sustentaram a manifestação de mais de 2 mil usuários na "Marcha à Brasília," no final do governo Lula, reivindicando a radicalização da reforma psiquiátrica, assegurado, assim, o compromisso com a efetiva inserção social dos loucos na cultura dos nossos tempos. Em 1987, quando o movimento dos trabalhadores de saúde mental radicalizou com o lema "Por Uma Sociedade Sem Manicômios", gerando como consequência a mais importante mudança nos rumos da saúde mental brasileira, é chegada a hora de aprofundar esta radicalização. "Por Uma Reforma Psiquiátrica Antimanicomial" é a proposta da Renila. Mais e melhores frutos virão por aí.

A cidade onde a Reforma Psiquiátrica não ocorreu



Sorocaba tem a maior concentração de leitos psiquiátricos do País, centralizados em hospitais de grande porte. Movimento social denuncia abusos. Por Ricardo Carvalho. Foto: José Eduardo Cunha

Daniela Gonçalves, de 30 anos, deu entrada na Santa Casa de Sorocaba no dia 1º de junho de 2008. O exame clínico apontava estado febril e desidratação e ela foi diagnosticada com pneumonia. Portadora de um transtorno mental genético, Daniela estava internada há dois meses no Hospital Mental, instituição psiquiátrica localizada no mesmo município e que tem cerca de 350 leitos. Diante do quadro, ela foi transferida à uma Unidade de Tratamento Intensivo (UTI) e faleceu 12 dias depois. Sua mãe, Jane Gonçalves, acusa o hospital de negligência. “Quando eu cheguei na Santa Casa, a minha filha já estava em coma. Uma enfermeira do Mental me disse que ela começou a passar mal numa terça-feira, e a internação só aconteceu no domingo. Em dois meses, eles acabaram com ela”, lamenta.

Um levantamento organizado pelo Fórum de Luta Antimanicomial de Sorocaba (Flamas), coordenado pelo professor de Psicologia da Universidade Federal de São Carlos (Ufscar), Marcos Garcia, aponta que o caso de Daniela não é uma exceção. Segundo o estudo, entre 2006 e 2009, foi registrado um total de 233 mortes nos quatro hospitais psiquiátricos do município. O maior deles, o Hospital Vera Cruz, com 512 leitos, registrou no período 102 óbitos. Se comparado com os dois maiores hospitais psiquiátricos do Estado de São Paulo, o Vera Cruz registrou 20 mortes para cada cem leitos, enquanto que o Instituto Américo Bairral, em Itapira (820 leitos), e a Clínica Sayão, em Araras (808 leitos), tiveram, no mesmo período, seis e sete óbitos para cada cem leitos, respectivamente. A média de mortes da região de Sorocaba, que engloba outros três hospitais psiquiátricos de grande porte nos municípios de Salto de Pirapora e Piedade, é de 16,5 mortes para cada 100 leitos nesses três anos, segundo a pesquisa.

Leia aqui o Levantamento de indicadores sobre os manicômios de Sorocaba e Região, de autoria do professor Marcos Garcia

A explicação mais provável para o alto número de óbitos, segundo o fórum, é o quadro de funcionários insuficiente para dar assistência à população internada. A legislação brasileira estabelece um número de horas trabalhadas em função do número de leitos. Numa análise dos sete hospitais psiquiátricos de Sorocaba e região, o levantamento de Garcia indica clara deficiência. São previstas, por exemplo, 2.216 horas semanais de assistência para enfermeiros e médicos, além 980 horas para psicólogos. Os hospitais da região disponibilizam apenas 37%, 72% e 43% da assistência prevista, respectivamente.

Lúcio Costa integra o Fórum de Luta Antimanicomial. Ele estagiou por um ano, em 2006, no Hospital Mental e relata situações de descaso e negligência. “Eu percebia um quadro de funcionários muito inferior ao necessário para atender os pacientes. O Mental é um hospital feminino, e eu via uma quantidade grande de mulheres nuas, muitas vezes urinadas e sentadas em cima das próprias fezes. Além de um excesso de medicação, o que impossibilitava essas mulheres de participar de grupos terapêuticos”.

Na quarta-feira 27, uma vistoria surpresa realizada pelo Núcleo de Saúde Mental e Combate à Tortura da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência esteve no Mental. Segundo o coordenador geral do núcleo, Aldo Zaiden, que participou da operação, havia apenas três enfermeiras e uma médica quando a vistoria chegou ao local, por volta das 11 horas da manhã. Elas estavam responsáveis por 350 pacientes. Zaiden afirma que foi encontrada uma paciente completamente nua e três seminuas, além de uma em situação de isolamento. Os peritos devem permanecer no hospital até o final de maio, quando um relatório da auditoria será produzido.

Outro caso de suposta negligência ocorreu na cidade de Salto de Pirapora, município próximo a Sorocaba. Familiares do jovem Rodrigo da Silva, encontrado morto aos 25 anos no final do ano passado, acusam o hospital psiquiátrico Santa Cruz, com cerca de 500 leitos, de não prestar assistência adequada. Rodrigo sofria de esquizofrenia e estava na sua 13ª internação. Segundo a irmã do jovem, Francieli, a família foi informada de que Rodrigo fugira do manicômio e fora encontrado por dois enfermeiros nas proximidades, porém eles não conseguiram contê-lo. Eles teriam deixado o local para pedir auxílio à Polícia Militar, mas quando regressaram, não encontraram o jovem. Rodrigo foi achado morto em um córrego poucos dias depois. Sua irmã, Francieli, reclama do procedimento adotado pela instituição. “O meu irmão foi encontrado vivo e os enfermeiros não tiveram competência para conter um paciente agressivo. Eles deixaram o Rodrigo fugir novamente”. Francieli diz que a fuga do irmão só foi possível porque um dos enfermeiros esqueceu de fechar uma porta do hospital, procedimento padrão em instituições desse tipo.

Financiamento

Os quatro hospitais do município são privados e recebem, anualmente, 20,7 milhões de reais do Sistema Único de Saúde (SUS). O SUS repassa a prefeitura que, por sua vez, encaminha a verba aos hospitais. Se incluídas as outras instituições da região, o valor chega a 39,7 milhões de reais anuais. A quantia é considerada insuficiente pelos responsáveis por hospitais psiquiátricos.


Perguntado por CartaCapital sobre como o hospital consegue manter o quadro de funcionários previsto pela legislação, levando em conta que o repasse do SUS é considerado insuficiente pelos próprios hospitais, David Haddad, diretor do Mental, disse que desde o início de sua gestão na administração, em 2009, os três sócios da instituição optaram por abdicar dos lucros, mantendo apenas seus salários fixos de acordo com os cargos médicos que ocupam no hospital. Isso foi feito, diz o diretor clínico, para não prejudicar “o serviço de qualidade do hospital”. Haddad relata que os sócios do hospital aguardam a conclusão de uma ação movida contra o Ministério da Saúde por um repasse maior às instituição psiquiátricas, o que “deve triplicar a verba por paciente dos hospitais”.

O Hospital Vera Cruz, por sua vez, argumentou que todos os hospitais dependentes do SUS não conseguem cumprir o determinado pela legislação. Apesar disso, na avaliação deles, o hospital conta com um quadro suficiente para oferecer um tratamento “com qualidade”. Sobre o número de óbitos contrastado com o do instituto Américo Bairral, o Vera Cruz argumenta que, por tratar-se de uma instituição com mais da metade de leitos particulares, “com diárias que chegam a mais de 200 reais por paciente”, o comparação com a instituição de Itapira é inválida.

Política de des-hospitalização

A denúncia do Flamas acendeu um debate sobre as políticas de assistência que devem pautar o tratamento de doentes mentais na cidade e no País. O assunto chegou à Defensoria Pública do Estado de São Paulo, que vai investigar os dados. “A situação de Sorocaba é peculiar e preocupante, com uma alta concentração de grandes manicômios, um modelo ultrapassado de isolamento total. Isso quem diz é a legislação brasileira”, relata a defensora pública Daniela Skromov, que acompanha o caso.


Ela faz referência à lei 10.216, de 2001, a chamada Lei da Reforma Psiquiátrica. Essa legislação prevê a substituição progressiva dos hospitais de grande porte por uma rede substitutiva, em que o paciente é tratado em instituições extra-hospitalares, também conhecidos por “hospitais dias”. Na rede pública, o tratamento nesse modelo é feito principalmente em Caps (Centros de Atenção Psicossocial), menores do que os hospitais psiquiátricos e que trabalham principalmente com grupos terapêuticos. Neles, os pacientes chegam pela manhã e são dispensados ao longo do dia para voltar a seus locais de moradia. Em casos de surtos, os pacientes podem ficar internados por, no máximo sete dias. A lei também prevê que as internações sejam feitas, preferencialmente, em alas especializadas de hospitais gerais.

A legislação, entretanto, não proíbe a existência de hospitais psiquiátricos nos moldes dos de Sorocaba. O artigo que estabelecia o fechamento dessas instituições em 10 anos foi retirado do texto. O que ocorre é o direcionamento gradativo dos investimentos da área de saúde mental do Ministério da Saúde para a rede substitutiva em detrimento dos repasses aos hospitais psiquiátricos. Para se ter uma ideia, há cerca de 10 anos, 85% do financiamento de saúde mental ia para os hospitais psiquiátricos. Em 2010, esse valor foi de 35%, e o restante foi investido na rede substitutiva. Além do mais, a lei estabelece que o repasse por paciente internado aos hospitais seja menor em caso de hospitais com grande número de leitos. As diárias por paciente em hospitais menores (de até 160 leitos) são, por exemplo, de 49,7 reais por dia. Já em hospitais com mais de 400 leitos, como o Vera Cruz, a diária é de 35 reais por paciente.

Para a defensora pública Daniela, Sorocaba é uma das regiões mais atrasadas do País nesse quesito. O coordenador do estudo do Flamas, Marcos Garcia, complementa: “Sorocaba é uma cidade em que a reforma psiquiátrica, gradualmente incentivada desde os anos 80 e obrigatória por lei desde 2001, não ocorreu”. Ele afirma que o modelo manicomial estimula a segregação e o preconceito com a população internada. Além do mais, o coordenador do estudo explica que os modelos de segregação foram, ao longo da história, substituídos por um princípio de inclusão. “Isso aconteceu com o modelo de separação racial norteamericano nos anos 60 e com os leprosários, e foram superados”.

Como dado, ele aponta uma concentração de leitos psiquiátricos na região (2,3 leitos para mil pessoas) quase cinco vezes maior do que o preconizado pela legislação brasileira (0,45 leitos para mil pessoas). Com 2406 leitos conveniados pelo SUS, o Rio de Janeiro é a única cidade no Brasil com mais leitos do que Sorocaba. Com a ressalva, é claro, de ter mais de seis milhões de habitantes, frente a 580 mil do município do interior de São Paulo.

Outro dado que chama atenção é o grande número de pessoas institucionalizadas nesses hospitais. Também na quarta-feira 27, iniciou-se uma auditoria no Hospital Vera Cruz, que deve estender-se até maio. Segundo o coordenador de Saúde Mental do Ministério da Saúde, Roberto Tykanori, quase 70% dos pacientes moram no local. “Muitos estão há anos internados”, diz. O coordenador participou de uma reunião com o prefeito da cidade, Vitor Lippi, que contou também com a presença da Defensoria Pública e do Núcleo de Saúde Mental e Combate a Tortura da Secretaria de Direitos Humanos. Ficou acertado que será elaborado um plano de atuação para adequar a cidade no contexto da Reforma Psiquiátrica. Uma primeira medida será a desospitalização gradual dos pacientes institucionalizados.

Leia a entrevista de Roberto Tykanori sobre a política de saúde mental ao site Brasilianas.org

Roberto Tykanori ressalta que a Reforma Psiquiátrica prevê um deslocamento do eixo de atendimentos, priorizando estabelecimentos menores e descentralizados. A adequação do município depende, nesse sentido, da construção de residências terapêuticas, ampliação e capacitação da rede Caps existente na cidade e a implantação de programas que reaproximem os internos institucionalizados de seus familiares. Até lá, entretanto, Sorocaba continuará a ser uma cidade obrigada a conviver com um modelo centralizador, arcaico e que permite situações de abandono como as constadas pela vistoria no Hospital Mental.

Ricardo Carvalho


Fonte: Carta Capital

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