abril 18, 2011

"FHC entre o povão e a contradição", por Diego Viana

PICICA: "Dê-lhes emoções e eles o seguirão… Essa é a proposta de Fernando Henrique. Mas se a emoção vier de adversários políticos, é “subperonismo” e comparável a Mussolini (foi ele quem disse, não eu). Para o autor, a solução para seu partido é o marketing. Há um Duda Mendonça em cada esquina."

FHC entre o povão e a contradição

por Diego Viana

Como é pobre a celeuma em torno do artigo de Fernando Henrique! Debater se o homem propõe ou não que o partido dele “abandone o povão” e se concentre na classe média, como se fosse algum absurdo haver partidos de classe média… Um texto inteiro poderia ser dedicado à preferência do brasileiro pela polêmica mesquinha, até mesmo na política, onde as discussões deveriam ser mais penetrantes e corajosas diante da aporia inescapável (sim, a política, enquanto arte, é o bailado numa pista de aporias). A algazarra em torno do texto fernandino é um claro exemplo dessa mediocridade escolhida. Valeria bem mais a pena, por ora, destrinchar o artigo, porque ele expõe o impasse em que se enreda, com muito gosto, o partido de que o autor é presidente de honra. Façamo-lo.

Nosso ex-presidente entende seu texto como um raio-x das insuficiências da oposição, especificamente o PSDB, e uma proposta de reorientação. Entre circunlóquios, lugares-comuns e interpretações bem livres da história recente do país, FHC acaba dizendo, um pouco sem querer, algumas coisas bastante verdadeiras. Se fossem ditas por querer, seriam talvez dolorosas demais para os tucanos e seus correligionários, porque revelam em filigrana que as diretrizes peremptórias que FHC delineia para seu partido, ora, são simplesmente o que o partido, tal como se organiza hoje, não poderá nunca realizar. Em outras palavras, Fernando Henrique atirou no que viu e acertou no que não viu. Só que, como estamos falando de política, o “ver” significa “querer ver”­ – é uma maneira de recortar a realidade de um universo político, tornando-a um discurso coerente, mas coerente segundo determinados pressupostos – e o “não ver” significa “recusar terminantemente, a ponto de não poder ver”.

Isso dito, ao texto: o penúltimo parágrafo resume o argumento, mas se abre com a frase que denuncia a principal fraqueza do artigo. Ei-la.

Engana-se quem pensar que basta manter a economia crescendo e oferecer ao povo a imagem de uma sociedade com mobilidade social. Esta, ao ocorrer, aumenta as demandas tanto em termos práticos, de salários e condições de vida, como culturais. Em um mundo interconectado pelos modernos meios de comunicação o cidadão comum deseja saber mais, participar mais e avaliar por si se de fato as diferenças econômicas e sociais estão diminuindo.
Observe o leitor que Fernando Henrique se esmerou em negar a existência de uma nova classe média no Brasil através da distinção entre “classe social” e “categorias de renda”, no que ele tem toda razão. Sem mencionar o conceito de “capital cultural” (ainda bem, porque esse tipo de sintagma é terrivelmente problemático), o ex-presidente explica que “a definição de classe social não se limita às categorias de renda (a elas se somam educação, redes sociais de conexão, prestígio social, etc.)”. Acontece que, ao usar essa distinção para se referir ao conceito de uma “nova classe média” brasileira como “impreciso”, ele torna o trecho que destaquei acima invisível, inócuo e falso (na verdade, um tanto contraditório) para quem queira seguir seu argumento, ou melhor, para falar claramente, suas instruções.

Pior ainda, ele oferece de bandeja a interpretação de querer “abandonar o povão” para a frase do parágrafo anterior: “Enquanto o PSDB e seus aliados persistirem em disputar com o PT influência sobre os “movimentos sociais” ou o “povão”, isto é, sobre as massas carentes e pouco informadas, falarão sozinhos”. Sem essa confusão conceitual, o trecho serviria apenas para mostrar que o ex-presidente ou não sabe bem quem tem à sua volta, ou prefere deixar esse detalhe de lado – o que seria, por sinal, perfeitamente compreensível.

O maior problema do artigo de Fernando Henrique é a confusão que resulta de dissociar a ascensão econômica de dezenas de milhões de pessoas (que ele não nega, mas só reconhece alusivamente e como rebarba de suas próprias iniciativas) e o surgimento daquilo que seria a “nova classe média”. Para obter esse efeito retórico, é preciso questionar, com a maior sutileza do mundo, “educação, redes sociais de conexão, prestígio social” desse contingente de pessoas que acedem à sociedade de consumo. Ora, essas três coisas, e muitas outras, só têm realidade, na visão de FHC e de muita gente, infelizmente, se submetidas aos parâmetros da “velha” classe média. Ou seja, quem chega à sociedade de consumo pela via das classes baixas jamais pode ser classe média, mesmo “nova”, e continua sendo “povão, isto é, [...] massas carentes e pouco informadas”, porque seus valores e suas demandas serão outras e, como tal, inválidas. Resultado? Essa gente não poderia formar grandes novidades no campo das “demandas tanto em termos práticos, de salários e condições de vida, como culturais”. Não há nada de novo na “nova” classe média, só “povão” endinheirado sem nada na cabeça e facilmente cooptável pelo PT, descrito no artigo (e no discurso dos grupos a que se destina) como uma malta de trogloditas, embora tão cheios de ideias e tão difíceis de vencer.

Seria de se esperar que um sociólogo de campo (como ele mesmo já se definiu) saísse, ora, a campo para verificar uma proposição tão forte. Será mesmo que o brasileiro, ao melhorar de emprego, abrir pequenas empresas ou conseguir enfim passar num concurso público, continua com a cabeça de um Jeca Tatu e está condenado a essa condição por toda a eternidade? (A condenação eterna transparece em outros trechos do artigo, de que pretendo falar mais adiante.) Pesquisas de campo ou acadêmicas parecem indicar o contrário: que os ascendentes, “nova classe C” ou não, são exigentes, entendem sua posição e têm plena consciência de que precisam consolidar seus ganhos econômicos com aquele “capital social” que o ex-presidente menciona sem citar. Sem querer enveredar pela autopropaganda, eu mesmo tive a oportunidade de fazer, recentemente, uma matéria sobre jovens dessa nova classe média e seus estudos universitários. Conclusão das conversas: eles sabem muito bem, mas muito bem mesmo, quais são suas demandas sociais, econômicas e culturais. Ouso dizer que sabem muito melhor do que nós, porque, para eles, há algo bem mais crucial em jogo.

Estabelecida a confusão, está jogado o óleo na pista para os escorregões. Eis o mais grave: como quer o ex-presidente que seu partido conquiste o eleitorado da nova classe média através de suas demandas sócio-econômico-culturais se seu traço distintivo é justamente o fato de não ter demandas classificáveis como “de classe média” (“povão” que são, isto é, massas carentes e pouco informadas)? Fernando Henrique tenta esvaziar a noção de “nova classe média” inserindo-a como um apêndice irrelevante (são pelo menos 30 milhões de almas) de

toda uma gama de classes médias, de novas classes possuidoras (empresários de novo tipo e mais jovens) [observe a minúscula variação termionológica, pretendendo tornar qualquer novidade real invisível], de profissionais das atividades contemporâneas ligadas à TI (tecnologia da informação) e ao entretenimento, aos novos serviços espalhados pelo Brasil afora.
Mas, ao impor à imagem do brasileiro ascendente uma passividade que só mesmo uma aristocracia muito obtusa e ineficaz poderia supor, o que ele acaba esvaziando é o próprio objeto que, ao final do texto, vai designar para seu partido. No fundo, no fundo, Fernando Henrique quer que o PSDB, e em seu vácuo os demais partidos de oposição, corra atrás de fantasmas. Tudo isso como resultado de uma contradição em termos, algo pouco digno de um intelectual do quilate do ex-presidente, mas corrente na expressão política.

O segundo escorregão pode ser menos grave em termos argumentativos, mas expõe aquele que é o verdadeiro drama do PSDB e, por extensão, do sistema político brasileiro em geral (não só as oposições). No artigo, os olhos do autor brilham para falar de jovens usuários de redes sociais, membros da classe média que exigem moralidade pública (ainda que raivosa e difusamente) e consumidores maravilhados com as benesses da globalização e do capitalismo – assim mesmo, enquanto conceito abstrato (foi-se o tempo em que só a esquerda falava assim). Ele se refere a movimentos sociais entre aspas e só uma vez: por sinal, na mesma frase em que fala do “povão” (também só mencionado uma vez, o que foi o suficiente para elevar tantas vozes contra ele e algumas a favor). Por que os movimentos sociais estão entre aspas? Por acaso a sociedade brasileira não se move? Compreendo que o sociólogo queira criticar o sindicalismo brasileiro, no único ponto em que entra, de fato, na questão de movimentos vindos da sociedade; quanto a isso, lhe dou muita razão (mas não toda). Seria então o sindicalismo o único movimento possível de uma sociedade, descontados casos excepcionais como as revoluções árabes e as eleições de 1974, que colocaram o MDB no protagonismo político do Brasil?
 
Diante dessa juventude conectada, mas passiva, segundo FHC, e de uma sociedade cujos movimentos estarão sempre colocados entre aspas, porque não podem ser reais ou efetivos (o que, no fundo, é a mesma coisa), o articulista decreta: cabe à oposição, liderada pelo PSDB, “conquistar”, “seduzir, “buscar”, “falar para” esse público. O brasileiro de classe média, desamparado pelo “triunfalismo lulista” (ele às vezes usa um termo ainda mais sombrio, “lulopetismo”), está sentado, à espera da voz redentora da oposição. É o carisma, minha gente! Não o carisma de Lula, que esse não serve e, se usado, será sempre classificado como populismo; mas o carisma esclarecido e vertical de um príncipe qualquer…

Observe: só é possível chegar a essa conclusão porque o autor, numa circunvolução retórica hábil, mas falaciosa, postulou a existência de uma classe “possuidora” e, ao mesmo tempo, absolutamente passiva, ignorante de seus interesses até que esses lhe sejam apontados por uma inteligência mais privilegiada: um “povão”. É falso que o artigo exija um abandono do povão. O que o artigo faz é chamar todo mundo de povão, até mesmo quem não pertence à “nova classe média”, porque mesmo esses estão à espera de profetas que lhes falem. No frigir dos ovos, o povão somos nós.

O vício, porém, é inerente ao PSDB, como eu já disse, e à política brasileira em geral, historicamente, como há de se lembrar qualquer um que tenha lido Machado de Assis, com seu Brás Cubas parlamentar e seu Rubião financiador de jornal político. Pouca coisa mudou. Não é o caso de um PFL da vida, que muito honestamente se reconhece como um partido de gente que quer mandar, nada de ouvir anseios da população. Mas é, sim, o caso de um partido com nome de social-democrata, mas cujas escolhas são sempre feitas na cúpula, a cada vez sufocando a anêmica militância que ainda lhe resta – por puro milagre, aliás, e uma vaga ideologia mercadista que mal enxerga onde está o mercado. Enquanto o PFL nem dá pela existência de um povo, “ão” ou “inho”, a não ser na tentativa de recuperar os votos dos grotões (hélas! E FHC ainda fala em clientelismo!), o pobre do PSDB ainda pretende falar “ao” povo… (Talvez seja essa a fonte de toda a confusão em torno do “povão” que marcou a última semana.)

Em mais uma de suas já folclóricas comparações hiperbólicas e fantasiosas, o ex-presidente evoca a ascensão do MDB como paradigma para a recuperação da oposição brasileira. Perfeito! Seria uma ótima evocação, se a ideia transmitida fosse de um movimento (sim, movimento) da sociedade civil em que ela marcasse sua própria posição e a fizesse reverberar no sistema político através de um partido – ou mais, aliás, idealmente mais. Eis o que Fernando Henrique deixa de lado: o MDB, àquela altura, não estava falando à sociedade civil. O MDB era a sociedade civil, ou pelo menos sua porção contrária à ditadura. Não quero dizer que o MDB era “idêntico” à sociedade civil, mas que ele representava, ou melhor, expressava um movimento que tinha origem na sociedade civil. Não porque alguma voz da razão a conquistou ou lhe falou. Mas porque ela tem demandas (econômicas e culturais, sim) e, portanto, se move, formando blocos com potência individual no sentido espinozano, isto é, de direção conjunta e coerente.

Fernando Henrique e muitos outros opositores gostam de sugerir que o Brasil vive sob um regime parecido com uma ditadura. A maior semelhança, na minha opinião (estou exagerando para efeitos de impacto, mas há verdade aqui), é que vivemos num regime de “único partido”. Não digo “de partido único”, o que é outra coisa. Mas a noção de partido implica a repartição de potências sociais (daí o radical, “partir”) e seu reagrupamento em unidades que disputam parcelas do poder. No Brasil, porém, os partidos não são nada disso. Fundam-se por afinidades de interesse, formação universitária ou ideologia, tanto faz, contanto que de cima para baixo. A criação do ”partido do Kassab” é um caso recente e gritante, pelo descaramento do partido que “não é de centro, nem de direita, nem de esquerda…” Mas não é um evento excepcional.

Todos sabemos que o PSDB, por exemplo, é um partido de cardeais. O militante que não ouse colocar as asinhas de fora. Até em eleição de diretório a cúpula interfere com truculência. As disputas, hoje, se dão entre o “grupo de Alckmin” e o “grupo de Serra”, sendo que, agora, a figura (nem falei em grupo) de Aécio parece estar na crista da onda. Quais são os movimentos que esses líderes representam? E Fernando Henrique, por sinal? Pois é… Depois lemos no artigo do ex-presidente críticas à “personalização da política” promovida pelo PT.

Esse eixo de leitura permite um desnudamento de um artigo que contém diversas verdades, mas cujas verdades se desmiliguem tão logo confrontadas com a contradição central. Afinal, não existem verdades desconectadas de um corpo discursivo, como bem sabe o autor do artigo. É por isso que a figura do camaleão, que FHC cola ao PT, o surpreende e revolta tanto. Enquanto o PSDB pensará exatamente como pensam seus chefes, que, por sinal, estão um tanto velhinhos e não mudam de opinião desde princípios da década de 90, o PT pode mudar seus conceitos sempre que o mundo mude e, com o mundo, seus militantes, oriundos da sociedade e dos movimentos sociais (com ou sem aspas, não faz diferença). Um exemplo da direita, para não parecer que a conexão com a sociedade é privilégio das esquerdas: por que o Tea Party segue como parte do GOP, mesmo esvaziado, em vez de dar uma kassabada e abrir um novo partido? Porque há disputas internas entre os republicanos. E, surpresa: os radicais estão começando a perder terreno…

Mais um trecho do artigo, como demonstração de que os parágrafos acima oferecem um parapeito contra fraquezas conceituais. Diz FHC:

Não deve existir uma separação radical entre o mundo da política e a vida cotidiana, nem muito menos entre valores e interesses práticos. No mundo interconectado de hoje, vê-se, por exemplo, o que ocorre com as revoluções no meio islâmico, movimentos protestatários irrompem sem uma ligação formal com a política tradicional.
Mas já estamos carecas de saber, e o próprio ex-presidente mais ainda do que nós, que esses movimentos (observe que, desta vez, faltaram as aspas) sempre foram políticos, muito antes de saírem às ruas. Mesmo na opressão, mesmo no sufocamento, o dia-a-dia é político, ainda que só consiga assumir uma forma unificada e explosiva em situações extremas. “Não deve existir uma separação radical entre o mundo da política e a vida cotidiana”, presidente? Ora, mas jamais existe essa separação, radical ou não! Vou citar o trecho seguinte apenas para demonstrar minha absoluta descrença na possibilidade de que FHC desconheça o pulsar político constante da vida quotidiana:

Talvez as discussões sobre os meandros do poder não interessem ao povo no dia-a-dia tanto quanto os efeitos devastadores das enchentes ou o sufoco de um trânsito que não anda nas grandes cidades. Mas, de repente, se dá um “curto-circuito” e o que parecia não ser “política” se politiza. Não foi o que ocorreu nas eleições de 1974 ou na campanha das “diretas já”? Nestes momentos, o pragmatismo de quem luta para sobreviver no dia-a-dia lidando com questões “concretas” se empolga com crenças e valores. O discurso, noutros termos, não pode ser apenas o institucional, tem de ser o do cotidiano, mas não desligado de valores.
Alguém que leia esse trecho sem conhecer o PSDB e a história da política brasileira poderia pensar que nosso ex-presidente redescobriu a roda. Mas não é o caso. Ele está manifestando o desconforto da política brasileira, tal como ela é feita tradicionalmente, com o fato de que o país precisa evoluir e, supremo terror, já está evoluindo, bem debaixo de seus olhos. Mas essa política (que o autor denomina “a oposição”) não tem coragem de agir de acordo, porque seria obrigada a atuar de uma maneira que lhe é inteiramente desconhecida. Então não é a política que se alimenta do “não institucional”, para eles: é “o discurso”… Será que foi só isso que sobrou à oposição? Discurso? (Tenho amigos que dizem que o PT se tornou o que o PSDB deveria ter sido. Às vezes lhes dou razão…)
Mais um trecho ainda:

as oposições precisam voltar às salas universitárias, às inúmeras redes de palestras e que se propagam pelo país afora e não devem, obviamente, desacreditar do papel da mídia tradicional.
Voltar às salas universitárias, presidente? Mas as salas universitárias há tempos estão sedentas para enviar suas mensagens às oposições! Essas últimas não precisam voltar às salas, elas precisam simplesmente se deixar impregnar pelas salas, pelas redes, pelas palestras, por todo o mundo exterior às suas mesquinhas disputas palacianas. Como bem sabe Fernando Henrique, salas, palestras e redes sempre precedem, repito, sempre, os partidos! A diferença entre o camaleão PT e o cágado PSDB é que o camaleão percebe isso de imediato e o cágado se esconde dentro do casco… Eu disse “percebe”, mas deveria ter dito exprime, porque o caso não é de observação, é de permeabilidade. Permeabilidade a quê? Às demandas, presidente, “tanto em termos práticos, de salários e condições de vida, como culturais”.

E o parágrafo continua:

Além da persistência e ampliação destas práticas, é preciso buscar novas formas de atuação para que a oposição esteja presente, ou pelo menos para que entenda e repercuta o que ocorre na sociedade. Há inúmeras organizações de bairro, um sem-número de grupos musicais e culturais nas periferias das grandes cidades, etc., organizações voluntárias de solidariedade e de protesto, redes de consumidores, ativistas do meio ambiente, e por aí vai, que atuam por conta própria. Dado o anacronismo das instituições político-partidárias, seria talvez pedir muito aos partidos que mergulhem na vida cotidiana e tenham ligações orgânicas com grupos que expressam as dificuldades e anseios do homem comum. Mas que pelo menos ouçam suas vozes e atuem em consonância com elas.
A referência às organizações de bairro, aos grupos musicais e às periferias é perfeita. Mas o que vem depois? Um “mergulho”, “ouvir vozes”, “atuar em consonância”. Presidente, basta não virar as costas que “as dificuldades e anseios do homem comum” vêm em enxurrada. Um bom começo é abdicar de chamar todo mundo que discorda de você de “povão”, “massa carente” e cooptável. Desse jeito, não se vai longe com o homem comum. Aliás, nem com o incomum.

Qual pode ser o âmago de uma proposta como essa de Fernando Henrique, para estabelecer um vínculo com a sociedade baseado em “discurso”, pressupondo o brasileiro como alguém passivo, cujos movimentos sociais se dizem entre aspas, anexando à ideia da ascensão social o epíteto de “imprecisa” e ao cidadão, esse que luta para consolidar a vida melhor, a pecha de “povão” e “pouco informado” (leia-se ignorante)?
Ei-lo:

É preciso persistir, repetir a crítica, ao estilo do “beba Coca Cola” dos publicitários. Não se trata de dar-nos por satisfeitos, à moda de demonstrar um teorema e escrever “cqd”, como queríamos demonstrar. Seres humanos não atuam por motivos meramente racionais. Sem a teatralização que leve à emoção, a crítica – moralista ou outra qualquer – cai no vazio. Sem Roberto Jefferson não teria havido mensalão como fato político.
Dê-lhes emoções e eles o seguirão… Essa é a proposta de Fernando Henrique. Mas se a emoção vier de adversários políticos, é “subperonismo” e comparável a Mussolini (foi ele quem disse, não eu). Para o autor, a solução para seu partido é o marketing. Há um Duda Mendonça em cada esquina. Sabendo disso, como podemos ler o último parágrafo? Aquele que diz:

No mundo contemporâneo este caminho não se constrói apenas por partidos políticos, nem se limita ao jogo institucional. Ele brota também da sociedade, de seus blogs, twitters, redes sociais, da mídia, das organizações da sociedade civil, enfim, é um processo coletivo. Não existe apenas uma oposição, a da arena institucional; existem vários focos de oposição, nas várias dimensões da sociedade. Reitero: se as oposições institucionais não forem capazes de se ligar mais diretamente aos movimentos da vida, que pelo menos os ouçam e não tenham a pretensão de imaginar que pelo jogo congressual isolado alcançarão resultados significativos. Os vários focos de insatisfação social, por sua vez, também podem se perder em demandas específicas a serem atendidas fragmentariamente pelo governo se não encontrarem canais institucionais que expressem sua vontade maior de transformação. As oposições políticas, por fim, se nada ou pouco tiverem a ver com as múltiplas demandas do cotidiano, como acumularão forças para ganhar a sociedade?
Podemos lê-lo da mesma maneira como lemos o resto do texto. Como a manifestação de desconforto entre a percepção de uma evidência atroz – “brota também da sociedade, de seus blogs, twitters, redes sociais, da mídia, das organizações da sociedade civil [onde, diga-se de passagem, uma organização da sociedade civil não é um movimento social, por algum motivo, porque, se fosse, deveria estar entre aspas], enfim, é um processo coletivo” – e a consciência íntima de que a política brasileira tradicional é incapaz de reagir a essa evidência – “se as oposições institucionais não forem capazes de se ligar mais diretamente aos movimentos da vida, que pelo menos os ouçam”.

Muito se tem falado sobre a necessidade de haver um bom, sério e forte partido conservador no Brasil. Chegou a meus ouvidos, recentemente, a notícia de que existem jovens por aí dispostos a fundar uma agremiação que corresponda a essa descrição. A julgar pelas palavras do presidente de honra do principal partido conservador estabelecido, esses jovens estão se movimentando em boa hora. Aliás, presidente, isso é um movimento social, também. Sem aspas.

Jornalista e economista, escreve também no jornal Valor Econômico.

Diego Viana

Nenhum comentário: