junho 30, 2011

"Ensaios de Orwell, dois de três", por Daniel Lopes

PICICA: "Esses são de fato belos textos, mas o leitor que chegou ao Orwell ensaísta devido ao impacto de 1984 e A revolução dos bichos encontrará mais satisfação ao percorrer outras páginas de Como Morrem os Pobres. A marca mais forte da segunda coletânea de ensaios é a defesa da honestidade intelectual, tanto na tomada de posições políticas quanto na expressão dessas posições – a parte 2 chama-se “A insinceridade é inimiga da linguagem clara”; a parte 3, “A covardia intelectual é o pior inimigo”; e a 4, “’Pacifismo’ é uma palavra vaga”."


Ensaios de Orwell, dois de três

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por Daniel Lopes

-- "Como Morrem os Pobres e outros ensaios", de George Orwell --

Esse é o segundo de três volumes que a Companhia das Letras pretende lançar com ensaios de George Orwell. O primeiro, Dentro da Baleia e outros ensaios, de 2005, com seleção e introdução de Daniel Piza, reuniu em três partes os mais famosos ensaios de Orwell sobre a arte de ler e escrever, alguns ensaios políticos e outros sobre as interseções entre política e literatura. Estão lá das coisas mais interessantes que o autor de 1984 escreveu, como o corajoso “Meu país à direita ou à esquerda” e o tragicômico “Confissões de um resenhista”.


Como Morrem os Pobres e outros ensaios, com umas 150 páginas a mais que o predecessor, está sendo festejado entre os fãs brasileiros do escritor principalmente por trazer em sua primeira parte cinco ensaios (inclusive o que dá título ao tomo) da fase inicial de Orwell, período punk em que viveu entre indivíduos humilhados e ofendidos, as sobras do capitalismo laissez-faire da Depressão, que não poupou a Europa como a nenhum continente. Na pior em Paris e Londres é sua obra representativa desse período.

Esses são de fato belos textos, mas o leitor que chegou ao Orwell ensaísta devido ao impacto de 1984 e A revolução dos bichos encontrará mais satisfação ao percorrer outras páginas de Como Morrem os Pobres. A marca mais forte da segunda coletânea de ensaios é a defesa da honestidade intelectual, tanto na tomada de posições políticas quanto na expressão dessas posições – a parte 2 chama-se “A insinceridade é inimiga da linguagem clara”; a parte 3, “A covardia intelectual é o pior inimigo”; e a 4, “’Pacifismo’ é uma palavra vaga”.


Após ler essas seções, em especial a segunda, se você ainda permanecer com dúvidas a respeito da enorme falta que sujeitos como Orwell fazem, talvez deva ir direto ao livro de Christopher Hitchens, A vitória de Orwell, e ler o capítulo 9, intitulado “Desconstruindo os pós-modernistas: Orwell e a transparência”. O professor Fernando Lima resenhou aqui no Amálgama essa obra, que saiu ano passado também pela Companhia das Letras. “A política e a língua inglesa” é o ensaio mais representativo da categoria.

“A liberdade de imprensa” eu usei recentemente como uma das referências para meu “Ensaio sobre a cegueira de Graciliano Ramos”, mas lamentado aqui pra mim que não pudesse indicá-lo em um local de mais fácil acesso para o leitor brasileiro. Pois bem, agora Matias Suzuki Jr., organizador de Como Morrem os Pobres, fez o favor de deixar esse texto ao alcance de todos nós. Trata-se de um prefácio escrito para a edição de 1945 de A revolução dos bichos, falando das dificuldades de arranjar um editor para essa sátira da revolução e pós-revolução bolchevique, num período em que Stalin ainda era um valioso aliado de Grã-Bretanha e EUA. Mas é mais do que isso. É no fundo uma denúncia da pequenez de intelectuais, inclusive no campo liberal, que não compreendem que fazer alianças de conveniência e arrumar racionalizações para os crimes de aliados pode ser uma tarefa compreensível para diplomatas e líderes de partidos e de governos (e podemos explicá-las nestes termos), mas jamais deve ser uma das funções de intelectuais pretensamente livres. “A liberdade de imprensa” só saiu junto à Revolução em 1995.

Os dois ensaios que praticamente compõem a seção “’Pacifismo’ é uma palavra vaga” servem como mais uma das tantas amostras da não-ortodoxia de Orwell. No primeiro, “A vingança é amarga”, de novembro de 1945, o jornalista relata sua passagem por um campo de prisioneiros alemães no sul do país vencido, observando a rudeza desumanizadora com que os agora carcereiros, inclusive um judeu, tratavam os soldados rendidos. Ele chega a escrever que
Na verdade, resta pouco ódio forte à Alemanha neste país [Inglaterra] e menos ainda, eu espero, no exército de ocupação. Somente a minoria de sádicos, que precisam ter sua dose de “atrocidades” de uma fonte ou de outra, se interessam muito pela caça aos criminosos de guerra e colaboradores. Se perguntarmos ao homem comum de que crimes Goering, Ribbentrop e o resto devem ser acusados em seus julgamentos, ele não saberá dizer. De algum modo, a punição desses monstros deixa de parecer atraente quando se torna possível: com efeito, depois de encarcerados eles quase cessam de ser monstros.
O caráter patético de ex-genocidas quando despidos de poder sempre foi notado ao longo da história, como Hannah Arendt narrando o comportamento de Eichmann em Israel, Milošević e Saddam escutando suas sentenças com expressão apalermada e, nestes dias, cabeças do Khmer Vermelho acertando as contas com a justiça no Camboja por terem ajudado a dizimar um quarto de seus nacionais. Mas nem por isso devem deixar de ser punidos. Felizmente, Orwell jamais parou de ver Goering e companhia como os monstros que eram – esse “quase cessam de ser monstros” é puro Orwell. Apenas, e compreensivelmente, naquela altura dos acontecimentos ele temia que a desforra contra a Alemanha repetisse a tragédia dos “acordos” ao final da Primeira Guerra, com todas as consequências incômodas que tiveram. Tivesse vivido alguns anos mais, acredito que Orwell teria encontrado tempo para aprovar com alguma efusão a maneira como as áreas alemãs sob ocupação francesa, britânica e estadunidense foram desnazificadas – com os invasores reaproveitando antigos colaboradores do regime nazista em serviços essenciais ao mesmo tempo que educavam as massas com o julgamento de criminosos maiores e lições sobre o valor da democracia, reforçadas com as práticas que o boom econômico veio a permitir na Europa Ocidental.


De qualquer forma, após esse ensaio, temos “Pacifismo e progresso”, e eu dizia que, junto com “A vingança é amarga”, ele serve para mostrar o espírito avesso a dogmatismos de Orwell. Se foi ruim demonstrar crueldade com os alemães vencidos, também o foi entrar na impensada corrente pacifista do pré-Guerra, pelo menos quando havia se tornado evidente que a guerra era a única forma que restava para conter os camisas-negras e camisas-pardas.
[o pacifismo] só pode sobreviver onde exista algum grau de democracia; em muitas partes do mundo, jamais conseguiu existir. Não havia movimento pacifista na Alemanha nazista, por exemplo.
A tendência do pacifismo, portanto, é sempre enfraquecer os governos e sistemas sociais que são mais favoráveis a ele. Não há dúvida de que, durante os dez anos anteriores à guerra, a predominância de ideias pacifistas na Grã-Bretanha, na França e nos Estados Unidos estimulou a agressão fascista. E mesmo em seus sentimentos subjetivos, os pacifistas ingleses e americanos parecem mais hostis à democracia capitalista do que ao totalitarismo.
Obviedade? Sim, agora sim. (Eu espero.)


As últimas duas partes de Como Morrem os Pobres reúnem escritos sobre aspectos curiosos da “inglesidade” (o país e alguns de seus costumes eram paixões de Orwell) e crônicas sobre qualquer coisa (você acha que comprar livros é uma atividade muito cara? compare com o que você gasta com cigarros, se é um fumante contumaz; ou, já que isso não está mais na moda, você pode imaginar uma comparação com o que gasta com cerveja).


O esforço que a Companhia das Letras vem fazendo já há algum tempo para trazer ao Brasil, em traduções de qualidade, o essencial da ficção e não-ficção de George Orwell é louvável. Mesmo. Veja só as esclarecedoras notas do editor e do tradutor que ocupam as páginas 386-411 de Como Morrem os Pobres e diga se estou mentindo. Mas há uma faceta importante de Orwell que ainda não apareceu nas coletâneas da editora e que eu ficaria muito feliz de ver no planejado terceiro volume: o Orwell resenhista.


Matias Suzuki e João Moreira Salles coletaram os textos para o presente livro, entre outras fontes, nos quatro volumes da Nonpareil Books com o essencial da ensaística, jornalismo e correspondências do autor. Pois eu acho que uma seção com as resenhas de Orwell fecharia muito bem a terceira coletânea da Companhia. O senhor Eric Blair engajou-se com as grandes questões de seu tempo não apenas através de intervenções públicas (intervenção armada, no caso da Espanha), ensaios e reportagens, mas também em opiniões generosas sobre algumas das principais obras da época. Por exemplo, em 1935, ele resenhou Trópico de Câncer de Henry Miller. Em 38, o Testamento espanhol de seu amigo Koestler. Em 40, Mein Kampf (você não seria capaz de gastar uns minutos lendo Orwell resenhar Hitler?). Em 44, O caminho da servidão de Hayek (como Raymond Aron, Orwell foi um crítico qualificado do austríaco). Em 48, A alma do homem sob o socialismo de Wilde, e Reflexões sobre a questão judaica de Sartre (a crítica mais profunda que alguém já conseguiu fazer em uma página e meia da teoria sartriana do antissemitismo). Em 49, foi a vez das memórias de Churchill ganharem uma resenha.


Então, acho que ficaremos todos em dívida com a editora se alguns desses textos vierem junto com a próxima coletânea.

::: Como Morrem os Pobres e outros ensaios ::: Geoge Orwell (trad. Pedro Maia Soares) :::
::: Cia. das Letras, 2011, 416 páginas ::: compre na Livraria Cultura :::

LEIA TAMBÉM
::: Dentro da Baleia e outros ensaios ::: George Orwell (trad. José Antonio Arantes) :::
::: Cia. das Letras, 2005, 232 páginas ::: compre na Livraria Cultura :::

Editor do Amálgama.

Daniel Lopes

Fonte: Amálgama

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