junho 29, 2011

"Razão Crítica: Lutas Sociais e Fetichismo: notas sobre o debate iniciado pelo Passa Palavra (I)", por Elton Flaubert

PICICA: "Resumindo, o Passa Palavra acerta na análise: ao mostrar como grande parte da “cultura independente” e das ações de grupos empreendedores do open business está dentro da lógica de funcionamento do capitalismo; assim como, quando aponta os limites: das manifestações e marchas, da “cultura digital”, das novas tecnologias, da falta de sintonia com o cotidiano e anseios das classes mais pobres. E principalmente, quando expõe as motivações contrários ao FdE e parte da cultura “independente” e “alternativa”, sem entrar na lógica imediatista de achar “companheirismos” – sem o menor caráter reflexivo – em causas e movimentos, por parecerem, terem a imagem – por que não, a marca – de “alternativos”. Mas, erra na falta de mediações, não enxergando as possibilidades." Em tempo:  Leitura indispensável acerca do debate sobre movimentos emergentes na cena político-cultural brasileira. O caso do #Fora do Eixo: contradições, perspectivas e possibilidades.

Lutas Sociais e Fetichismo: notas sobre o debate iniciado pelo Passa Palavra (I)


Do que se trata: O ponto central no texto “A Esquerda fora do eixo” do Passa Palavra é mostrar a encruzilhada enfrentada pela esquerda, com a ascensão de uma nova classe gestorial, que através de mecanismos ideológicos da “cultura livre” fortalece o processo produtivo capitalista. Para isto, começam apresentando as especificidades de formação do fenômeno, na conjuntura paulista, ao analisarem cinco mobilizações na capital. Onde disto, conclui-se: “Dessa série de manifestações, extrai-se que as mídias sociais [...] mobilizaram conjunturalmente novos setores da classe média, mas, por outro lado, houve também um caráter diferenciado da pauta tradicional dos movimentos sociais e da esquerda em geral [...], (que) tem possibilitado a aproximação de elementos da classe política – tanto de esquerda como de direita – e também de novas empresas e ONGs com foco no marketing virtual, na publicidade e na cultura”.

Em seguida, passa-se a análise do coletivo “Fora de Eixo” (FDE), o trato da “cultura independente” como mercadoria, o empreendedorismo de organização ‘espartana’, e obviamente, seus planos de entrar no mainstream. O que chamou a atenção do Passa Palavra foi a reprodução pelo FDE de velhos vícios da “velha Indústria” – pelo menos no Brasil –, como a criação de um poder patrimonial dentro do Estado, que arrebata boa parte do financiamento. Além disso, destaca-se a relação deste coletivo com empresas, organizações e indivíduos que orbitam a “cultura digital”.

Diante disso, o Passa Palavra identifica os atuais confrontos do MINC (Ministério da Cultura), de maneira geral, como uma luta entre o tradicional mainstream versus grupos ligados a “Cultura digital”, pelas fatias do bolo orçamentário do Ministério. Um dado interessante do texto: “Em 2010 inscreveram-se em cerca de 125 editais e, com mais de 30 aprovados, captaram aproximadamente R$ 2 milhões para os projetos (festivais de música, de cinema, de economia solidária, etc.) e R$ 300 mil para as despesas do “institucional” . Um outro aspecto interessante é que eles possuem diversos tipos de cadastro jurídico: associações culturais, empresas, ONGs, casas noturnas. No total são 57 CNPJs [número fiscal] a serviço do FdE, uma fluidez que permite um amplo leque de atuação dentro dos negócios. Além dos editais há também propostas comerciais para emissoras de rádio como a OI FM”. Em síntese, o texto procura demonstrar a existência de empresas/coletivos/grupos, ligados à “cultura digital” (tendo como um exemplo marcante o “Fora de Eixo”), que propõe novos modelos de negócios, que estejam conectados com a “cultura independente”, e que através da gestão dela lhe tire melhor proveito.

A partir disto, o texto começa a analisar estes novos modelos de negócios, chamados de “open business”. Para eles, “O open business é a transformação do modelo de negócios de um mercado monopolista em concorrencial, ou seja, dada a natureza não rival do bem digital e a cópia a custo próximo de zero, o lucro passa a depender da produção material (camisetas, adesivos, etc.) e, principalmente, dos shows; caminha-se assim da renda para os serviços. Para as transnacionais da cultura e os oligopólios culturais regionais, isso significa a modificação do seu papel de intermediador entre mercado e consumidor, e, na dimensão econômica, a extração de lucro por renda é ameaçada”. Assim, para os defensores da “cultura livre”, associada ao “livre mercado”, isto estimularia a criação, o que aumentaria a riqueza transformada em mercadoria: “Em síntese, a cultura livre é a própria regra do jogo do capitalismo, a apropriação de algo que a classe capitalista não produz”.

Nisto, entra o coletivo “Fora do Eixo”, que indo de encontro à indústria rentista dos oligopólios culturais, pretende gerir os processos de interação da “cultura independente”. “O trabalho do FdE é fazer serviços para outros. Fazem realmente como um coletivo e não como proprietários de algo. Mas isso é justamente o que os identifica como gestores: possuir o know-how, o trabalho baseado no conhecimento e na gerência dos processos. Um tipo de trabalho que é possível vender e não ficar sem ele, já que conhecimento é um bem não rival”. É neste ponto que reside uma das questões do texto: a troca de elites. A passagem de uma burocracia arcaica e rentista, para uma classe de gestores, antenados com a “cultura independente”. Como ficou (e está) representada, de maneira geral, a briga pelo MINC é essencialmente por duas motivações: quinhão orçamentário e pelo modelo de negócio para cultura. Assim, não se trata de uma visão radicalmente – ou substancialmente – diferente de cultura, fora (ou pelo menos para além) do mercado, e da atuação do Ministério neste contexto.

No último – e talvez mais problemático – ponto, o Passa Palavra aborda as relações desta nova classe gestora com a esquerda. O texto apresenta como contexto histórico da ascensão desta nova classe, o governo Lula, com a ampliação do mercado de consumo, e amadurecimento do capitalismo tardio, assim como, a ampliação da lógica cultural desta ordem. Neste sentido, fez-se necessário o brado pela troca de “elites arcaicas” por novas classes, principalmente burocráticas, antenadas com este novo tempo. Assim, o recado para a elite de Higienópolis foi claro: “o futuro dos negócios chegou, não ignorem as novas classes médias, pois, mesmo morando na periferia, a sua empregada também pode consumir uma TV de plasma e ter um carro na garagem”.

Ou seja, o “churrascão” também – ou principalmente – representou: “Um processo que limita-se à modernização da mentalidade e renovação das elites, e que, por isso, foi incapaz de revelar a incoerência de destinar mais recurso público para a ampliação da oferta de transporte público na região mais rica da cidade”. O Passa Palavra associa a mentalidade desta nova elite “alternativa”: o ambientalismo (não fica claro se é certo ambientalismo, ou ele como um todo). E por fim, coloca uma questão – ou melhor, uma encruzilhada – que desconcerta qualquer defensor intransigente e ultraentusiasmado das novas mídias: quantas pessoas que estavam no “churrascão” interessavam-se em saber da lógica elitista de construção do metrô? Quantas pessoas professam tantas causas, sem ter o mínimo conhecimento delas? Como bem resumiu sobre o texto, Rodrigo Cássio: quando o protesto entra na moda, a política sai do protesto.

Comentário: A questão central do texto exige uma análise sobre a dinâmica do capitalismo e suas relações com o capital (concordando ou discordando, viu Ivana Bentes...), em especial, o “capitalismo tardio”. Para isto, gostaria de começar explanando sobre a teoria do fetichismo da mercadoria, e o desenvolvimento desta pelo “marxismo ocidental”.

No mercado, as relações de um homem com outro homem, as relações sociais, são mediadas pela troca de mercadorias/dinheiro. Ou seja, as relações entre as pessoas no mercado são entre portadores privados de dinheiro/mercadoria. Já que as relações são mediadas pelas mercadorias/dinheiro, elas se autonomizam, coisificando as relações entre seres humanos. Este é o primeiro movimento. Disto, decorre que o próprio processo de produção não só não é democrático (quem produz não discute sobre a produção e consumo global do que deve ser feito), como não é uma escolha do próprio dono do capital, que também está sobre influência dos mecanismos fetichistas. Assim, quem determina a produção, de maneira geral, é o mercado, estrutura criada por – mas que se sobrepõe – aos homens.

Disto decorre que o capital é um ser social objetivo, um “sujeito automático”, um “sujeito quase autônomo”, que se ergue diante das relações sociais coisificadas. Em outros termos, a roda viva do capital movimenta-se infernalmente, transformando as relações sociais coisificadas em “cursos das coisas como são”. Sujeito que forma uma civilização material, produzindo seu espaço, através de processos de modernização. O capital tem a potência de apropriar-se de qualquer tipo de produção, seja ela tradicional ou independente, para dar continuidade a sua reprodução. E também, o capital tem um movimento continuado de obscurecimento da consciência.

A partir de Lukács e Adorno, o marxismo traz a teoria do fetichismo da mercadoria para a cultura. Em termos gerais, o produtor cultural ao se preocupar em como vender melhor seu produto, como fazer corresponder seu conteúdo aos ritmos de produção e distribuição em detrimento da sua própria independência como artista, também está inserido nos mecanismos fetichistas. Um exemplo claro é daquela banda de música que despreocupada com o sentido de sua arte, está mais preocupada em produzir sucessos, refrões banais, submetendo sua arte aos processos massificáveis, generalizantes, e simplistas, da produção industrial. A centralidade deixa de ser a cultura, e passa a ser o mercado, o qualitativo se subordina ao quantitativo. Do outro lado, as pessoas acabam consumindo o valor de troca da música.

É importante destacar que os mecanismos de fetichização não se constituem uma totalidade fechada. Dois exemplos que podemos dar de desfetichização, tanto na produção sócio-material, quanto na cultura são: quando uma terra é utilizada para autoconsumo por camponeses ou indígenas, por exemplo, já que não se identifica produto com o capital, e as decisões de quanto e como produzir/consumir é feita em conjunto por pessoas; assim como, quando um escritor, produz um livro sem as pressões do mercado, depois podendo até utilizar essa indústria, o importante aqui é que ele não foi feito “para a indústria”, embora se utilize dela. Por isto, o fetichismo nunca é total.

Dito isto, é essencial analisar no capitalismo tardio, a apropriação da contracultura, da “cultura independente”, “alternativa”, enfim, pelos mecanismos fetichistas do capital, sem por isso, negar as fissuras, e principalmente sem dar às costas a negatividade presente, que pode ser transformada em outra espécie de negativo, contra o capital.

No livro “O novo espírito do capitalismo” de Boltanski e Chiapello, eles colocam que a partir da década de 70, o capitalismo entra na sua terceira fase: abandonando o espírito fordista, ele começa a se organizar em redes, através da participação de trabalhadores relativamente autônomos, mas dependentes, sendo divididos em grupos de trabalhos, os chamados “times”, tendo cada grupo um líder. Às vezes, apropriando-se da linguagem da “auto-gestão”, para definir o trabalho de seus empregados. Uma espécie de: “eles fazem o que tem que ser feito. Por isso, são livres, independentes, alternativos, e por que não, modernos”. Este novo capitalismo incorpora o discurso igualitário e anti-hierárquico de 68.

Fredric Jameson, em “Pós-Modernismo: a lógica cultural do capitalismo tardio”, afirma que o cultural é a lógica deste novo sistema, ou seja, não se trata do tipo de lógica cultural do capitalismo tardio, mas sim, que ele próprio tem como lógica essa cultura, a pós-moderna. Que significa, entre outras coisas: a transformação da realidade em imagens, ou seja, a estetização; a fragmentação do senso de identidade; a falta de sentido na construção da personalidade do sujeito; a dissolução do eu na entrega perpétua ao gozo; etc. Disto vem o esvaziamento do político e do esforço crítico.

A questão que fica colocada é: se “o discurso de 68” foi incorporado pela roda viva do capital ou se ele, quando refletido imediatamente e esvaziado de sentido, ou seja, de política, não faz parte da própria lógica cultural do capitalismo tardio.

Pois bem, deixarei para tratar da abordagem de alguns teóricos a este respeito na segunda nota, quando analisarei a resposta de Ivana Bentes e Pablo Ortellado. O que nos interessou até agora foi apresentar algumas explicações para o que me parece claro: a apropriação da “cultura livre, alternativa, independente” pelos mecanismos fetichistas do capital, e seu reforço do processo produtivo. Seja essa apropriação, ainda assim uma “ilha de comunismo” dentro do capitalismo, ou elemento da cultura deste novo capitalismo – isto será abordado na segunda nota.

Isto tudo fica ainda mais claro, quando o foco passa para o coletivo-empresarial “Fora de Eixo” (FdE). Parece-me sintomático, o interesse pela “cultura alternativa”, de novas empresas e organizações, que tem como pilar o marketing visual. No caso das marchas, o capital, como ‘sujeito automático’, se fez sentir no esforço de se apropriar e gerar ganhos estratégicos ao coletivo-empresa, feito pelo FdE. Não que o interesse tenha sido meramente econômico, não se trata só disso, como às vezes faz crer o texto do Passa Palavra, que por isso, peca por falta de mediação, às vezes, tendo um entendimento sectário e “imaculado” das lutas sociais.

Que o coletivo-empresa queira lucrar e ganhar “capilaridade” com as manifestações me parece previsível, tendo em vista que no centro da atividade empresarial está a reprodução do capital (capital inventivo?), e com isto: a preocupação tática e estratégica do grupo em crescer, principalmente com capital político, acima de uma pauta política de negação; e principalmente, o desejo de entrar no mainstream, o que demonstra vontade de mudá-lo, adaptá-lo, MODERNIZÁ-LO, mas não negá-lo, enquanto substância, até mesmo por que ela sequer é mais vista, eles “apenas fazem o que tem que ser feito”. É interessante também a relação do coletivo com o Estado, carregado de certa tradição patrimonial. Parece-me relevante que muitos “independentes” e “alternativos” só tenham erguido sua voz para criticar (com justiça) o governo em questões corporativas, como nos problemas com a atual ministra do Minc. Calando-se para problemas da ordem do dia, como o projeto de Belo Monte.

Sobre isto, recomendo a todos dar uma olhada nos comentários nesta matéria da TRIP: (link:http://revistatrip.uol.com.br/revista/199/reportagens/ministerio-da-cultura.html#4.) Dentre os comentários, encontraremos um de “Amargo”, que durante seu desabafo se identifica como Bernardo, da banda Elma. Nele, ele conta a confusão entre sua banda e o Mombojó para acertar horários da passagem de som, montagem do palco, entre outras coisas. O que nos interessa é esta sua conclusão: “Foi também explicitado o porquê da preferência pelo Mombojó (aqui você pode fingir que ainda não sabia): eles têm bem mais público, logo, eles podem mexer e remexer na vida dos outros, com a conivência do Studio SP e do Coletivo Fora do Eixo”. O fator rentabilidade, não só econômica, foi o adotado para a escolha do Mombojó, sendo desconsiderado obviamente quem tinha razão no imbróglio, ou até mesmo a qualidade artística; dentro desta mesma lógica age o Mainstream. O que fica claro é que o coletivo Fora de Eixo é empresarial, e justamente por isso, age – para o bem, ou para o mal – dentro da lógica do capital, e repete seus mecanismos fetichistas.

Acontece que nossa geração aprendeu, através da Indústria Cultural, a ideologia de que tanto a felicidade como prazer não somente existem, como estão à disposição, através do consumo. O consumo é uma forma de fuga, não propriamente de uma realidade desagradável, mas, acima de tudo, uma fuga da própria possibilidade de resistência.

Neste sentido, o coletivo FdE faz parte desta geração marcada pela “cultura alternativa”, pelo novo espírito do capitalismo, e criada na lógica cultural do capitalismo tardio. Sobre isso é interessante à opinião de Alexandre “pós-rancor” Youssef, sócio do Studio SP, que mantém parcerias com o FdE, em artigo intitulado “O Partido Pós-rancor” (sic) na Trip: “Imaginem um liquidificador em que se possa colocar as ramificações da esquerda, com estratégias e lógicas de mercado das agências de publicidade, misturando rock, rap, artes visuais, teatro, um bando de sonhadores e outro de pragmáticos, o artista, o produtor, o empresário e o público. O Fora do Eixo cria, portanto, uma geração que se utiliza sem a menor preocupação ideológica de aspectos positivos da organização dos movimentos de esquerda e de ações de marketing típicas dos liberais. É, como disse, o teórico da contracultura Cláudio Prado, a construção da geração pós-rancor, que não fica presa à questões filosóficas e mergulha radicalmente na utilização da cultura digital para fazer o que tem que ser feito” (grifos meu).

Primeiro, fica claro, a junção entre pautas e modelos de organização da esquerda com as ações de marketing, principalmente as visuais. Segundo, o “pós-rancor” despreza a memória e a reflexão crítica.

O que Cláudio "pós-rancor" Prado não sabe ou oculta, é que o seu “fazer o que tem que ser feito, longe das ideologias”, nada mais é do que ideologia. Lembra-me muito o slogan “Just do It” da Nike. Interessante é esta passagem de Naomi Klein, em “Sem logo: a tirania das marcas em um planeta vendido”: “Segundo o velho paradigma, tudo o que o marketing vendia era um produto. De acordo com o novo modelo, contudo, o produto sempre é secundário ao verdadeiro produto, a marca, e a venda de uma marca adquire um componente adicional que só pode ser descrito como espiritual”. O efeito desse processo pode ser observado na fala de um empresário da Internet comentando sua decisão de tatuar o logo da Nike em seu umbigo: “Acordo toda manhã, pulo para o chuveiro, olho para o símbolo e ele me sacode para o dia. É para me lembrar a cada dia como tenho de agir, isto é, ‘just do it’.” (grifos meus)

A ideologia do “basta fazê-lo”, “fazer o que tem de ser feito”, nada mais é do que o fetichismo tornando-se espetáculo visível dos processos de alienação. Afinal de contas, que tipo de ação consciente é essa que simplesmente joga fora todo sentido crítico, não se preocupa com os sentidos de seus atos, e “apenas faz o que tem de ser feito”? E o que é que tem de ser feito? Simples: fazer, consumir, trabalhar, comprar, ininterruptamente, como por um “feitiço”. Aqui, o fetichismo mostra-se claramente, como a naturalização das coisas.

O pós-rancor para isso abdica da memória. Os choques do mundo moderno enfraqueceram a experiência, ficamos ricos em informação, e pobres em conhecimento. A perda da experiência e da memória transforma o homem em autômato. Destituído de toda sabedoria, é incapaz de contar, analisar, dar conselhos, aprender com o tempo. A experiência, para eles, é rancorosa. O pós-rancor é o não filisteu, filisteu.

Por isto, o “pós-rancor” também abdica de qualquer crítica mais profunda, já que isto seria ressentimento, “parar na pista”, “não fazer o que tem de ser feito”, afinal, “a vida é muito alegre”, para pensarmos além da lógica do “sempre gozando, e tudo ficará bem”.

Ainda mais interessante é o comentário do mesmo Cláudio Prado no site do Passa Palavra, onde está publicado o texto, “Esquerda fora do eixo”: “Rancor é uma marca das esquerdas. Nasce da consciência das tiranias. Nasce da indignação. Rancor é esta indignação + fundamentalismo. Não sou do Fora do eixo. Colaboro com eles.
Considero a proposta do Fora do Eixo o melhor caminho que conheço para uma saída honrosa dos Movimentos Sociais rumo ao século 21”
. O objetivo é claro, e nada estranho aos mecanismos fetichistas: modernizar os movimentos sociais. Tirar deles o rancor, a indignação que vem da precariedade, da falta de democracia no processo produtivo, etc.

E acima de tudo, legitimar a ideologia a partir de uma racionalidade cínica (aqui tenho em mente o estudo de Vladimir Safatle: O Cinismo e a falência da crítica). Sem condições de desenvolver melhor este tópico, abordarei algumas pistas. Como coloca Safatle: “Atualmente, a ideologia já parte do pressuposto de que aquele que se submeterá aos padrões de conformação ideológicos não acreditará completamente neles.” Ou seja, a ideologia como “falsa consciência esclarecida”. Sabe-se da exploração, mas é preciso “fazer o que tem de ser feito”, a própria crítica feita ao que é “tradicional”, funciona como uma interversão que só é bem sucedida por justamente não ser levada radicalmente a sério. Assim, a crítica não escapa da lógica performativa da racionalidade cínica, pelo fato, de já se saber, da inadequação entre a práxis e aquilo que lhe dá fundamento, sentido. A crítica ao “tradicional”, transfigurada como “cultura independente”, funciona como uma espécie de interversão, uma passagem da lei para a infração, sem questionar o que fundamenta o sistema, logo, essa flexibilidade identitária é capaz de dissolver cinicamente os conflitos gerados pela lógica capitalista, e a crítica (a negação de certa maneira) fica impedida de transformar as estruturas sociais, de formar sujeitos refletidos na história. Neste sentido, lembro que Safatle coloca que a interversão cínica é a mola propulsora da economia libidinal da sociedade de consumo.

Não é de estranhar o tipo de convite feito por Pablo Capilé para um debate “faroeste-pop” com o coletivo Passa Palavra: “com data, hora e local marcados”; e claro, “transmissão ao vivo”. O debate foi iniciado com o texto do Passa Palavra, a partir disso, múltiplas respostas apareceram na rede, menos (pelo menos não a encontrei) a do Fora do Eixo. Ora, para que um debate ao vivo, com hora, data e lugar marcados, entre os coletivos? Para transformar a própria crítica ao FdE – e a expectativa diante da resposta – em espetáculo, em produto cultural? Acertadamente, o Passa Palavra não aceitou este tipo de debate. O texto foi colocado, as respostas são múltiplas, várias pessoas estão se pronunciando na rede, sem a intermediação de coletivos, e em tempo real, ao vivo, com possibilidades e mediações maiores do que uma conversa com poucos e específicos interlocutores, que dificilmente não se tornaria uma espécie de “Fla x Flu”.

Sobre as manifestações, é verdade elas de certa forma – e muitas vezes, em sua maioria – foram produzidas por uma histeria coletiva na internet, mais baseadas na imediaticidade de um discurso subjetivista, e de fácil manipulação do open business – sem dúvida, do que por uma consciência mais crítica do que estava sendo criticado. Interessante é a análise do pesquisador Rodrigo Cássio, no seu texto: “Comunicação de Massa, cinema e estereótipos nacionais” (http://vistoseescritos.opsblog.org/2010/05/23/comunicacao-de-massa-cinema-e-estereotipos-nacionais-tres-perguntas/) : “Esse “incentivo” ideológico aos falantes me parece evidente, por exemplo, no fato de que o uso político de maior frequência da internet (sites e blogs engajados, os militantes do Twitter etc) mostra um ímpeto muito maior para divulgar ou impor posições e opiniões que para debater projetos alternativos de sociedade. Temos uma reprodução virtual do modus operandi que define uma política partidária desgastada, reduzida a estratégias de marketing na medida em que os partidos perderam seu papel original, isto é, o de reunir as partes dissensuais do corpo coletivo em torno de ideias e propostas em franco debate. O que escapa a isso, hoje em dia, é casual, raro – em qualquer mídia.”

Mas isto não encerra a questão. Que os mecanismos fetichistas do capital continuam sendo reproduzidos incessantemente no coletivo-empresa, em certa “cultura alternativa”, e que a “cultura digital” tem limites, parece-me claro, mas o que nos interessa é a brecha, a fissura, o ponto escuro, deixado por estas mudanças.

O texto do Passa Palavra hora e outra confunde “alhos com bugalhos”, talvez por problemas de exposição. As marchas (e a participação nelas) são fundamentais, mesmo que boa parte de seus integrantes lá estejam por moda, não por consciência política, e mesmo que estes movimentos estejam sendo reforçados oportunamente por empresas. A questão é: como ir além do espetáculo? O sectarismo, que aponta heresias nas lutas sociais, não ajuda no diálogo com a classe média, tampouco reforça a militância de base, tão esquecida hoje em dia. A crítica imanente é fundamental, devemos ter o olhar de dentro e de fora do objeto ao mesmo tempo, como nos ensinou Adorno. Caso contrário a crítica torna-se não-dialética.

Embora, os problemas das marchas não se reduzam a empresas e grupos que queiram se apropriar dela, mas também ao fato de uma boa parte de aspirações e motivações dos participantes estarem integrados na cultura do capitalismo tardio, isto não encerra a questão. É preciso mediar, diferenciar, especificar. Dentro das próprias marchas existem aspirações para além delas, contra a lógica da economia libidinal da sociedade do consumo.

Além disso, ela oferece um espaço de mobilização, para quem sabe, depois construir alguma reflexão além. Então, não adianta dizer que o movimento está “contaminado”, ou que existem limites, é preciso dialogar, argumentar, convencer. Se o projeto de superação dos mecanismos fetichistas significa mais – e não menos – democracia, dialogar com esta nova classe média das marchas é fundamental. Do contrário, a postura sectária e ortodoxa terá o mesmo efeito das apropriações e só resultará no mesmo reforço do processo produtivo.

É preciso ser contundente na crítica, na demonstração – como foi feita no artigo – da reprodução dos mecanismos fetichistas, mas é preciso, ao mesmo tempo, dialogar com esta nova classe média, ansiosa por projetos, lutas, etc. As marchas oferecem está oportunidade. Os novos movimentos culturais, como: “Fora Bolsonaro”, “PLC-122 já”, “Contra o novo código florestal”, estão muito além da lógica cultural do capitalismo tardio, embora possam estar dentro dela, e serem apropriadas por ela. O que importa é a possibilidade de fissura que estes movimentos podem alcançar, se forem além de si, e refletirem o desejo de uma luta negativa.

Não só a clássica ideia de revolução deve ser colocada em cheque e refletida, como a própria ideia clássica do sujeito revolucionário, e a própria questão das classes. O que não significa abdicar de nenhuma das categorias, ou pelo menos de algumas delas. Mas, simplesmente não dá para retorcer o nariz para tudo que ocorreu no Século XX.

Desta forma, o sectarismo impotente é tão nocivo quanto às novas roupagens do capitalismo tardio. Se parte destas lutas – de fato – não incorporam o cotidiano do trabalho precarizado, nem a análise de classes, tampouco, fala de fetichismo; não significa que são desimportantes ou desviantes. O fetichismo se revela em várias esferas, poderia aqui citar Roswitha Scholz, que mostra através do “valor-dissociação”, como a educação dos filhos, o “trabalho” doméstico e até o “amor” - são dissociadas da produção do valor. Assim, o feminino é o dissociado da razão, do valor, da política; sendo associado à natureza, ao sensível, ao fútil. O nascimento da ideia de feminilidade está assim, em direta relação com os mecanismos fetichistas.

Sem por isso, deixar de fazer a crítica contundente, quando necessária, como coloca o Roman: “Que a “Marcha da Vadias” no Brasil tenha surgido por conta de postagens no Facebook, a respeito de um policial que se pronunciou desonramente a respeito de mulheres universitárias e não em solidariedade real a um caso como este do Rio significa muito em termos de demarcação social. Que o Greenpeace proteste pelo fato de a fabricação de Barbies usar materiais A ou B e não a respeito da exploração de trabalho infantil e degradante na fabricação da mesma boneca ao redor do mundo também é socialmente significativo. Que haja protestos por conta de um empresário ter sido atropelado em uma bicicleta e não por conta dos motoboys que morrem aos montes/dia o mesmo. Os exemplos se multiplicariam”.

O artigo esquece-se de analisar a possibilidade desta nova classe – gestorial – “bater no teto”. O fato de “não ser suficientemente” de esquerda, ou de serem empreendedores do open business não impede o diálogo, só o torna mais necessário, principalmente se este negócio alcançar seus limites – como acredito que acontecerá. O diálogo deve ser estendido ao FdE, sem que por isso, deixe de ser feita a crítica dura a sua atuação. Como colocou o “Arth”, ao comentar o texto: “Demonstra que qualquer mobilização política que não seja uma “mobilização ideal” está falida. As belas almas nunca farão nada além de discordar. Quem garante que esse jovens do FDE já definiram qual é seu programa político? Quem garante que não estão dispostos a se reinventar a partir de um diálogo com outros grupos? Quem garante que os meninos tem mais certezas do que dúvidas? Como enxergamos uma juventude que começa a achar que a militancia e subsistência estão no mesmo barco? Se eles falam que a cultura é meio será que não podemos ajudá-los a pensar o fim?”

Outro problema de abordagem, pela falta de mediação, dá-se quando a “cultura digital” é analisada, parece que vai tudo pro mesmo saco. É preciso entender que a internet e suas ferramentas possibilitam muitas vezes práticas “comunitárias”, para além da lógica fetichista, como: troca de ideias, de arquivos, experiências, músicas, etc. Tudo isto sem a mediação da mercadoria/dinheiro. Um meio onde a comunicação é estabelecida não por poucos interlocutores, mas por vários. Se a apropriação a isto é ruim e medíocre, diz menos da essência da técnica, e mais da cultura que temos. Obviamente, que parte da criação delas está ligada a certo tipo de desenvolvimento de uma sociedade tecnocrata. Mas a técnica não pode ser demonizada em si.

Aliás, embora a ideia de “Creative Commons” tenha um pé no liberalismo e no genuíno livre mercado, isto não impede que partes desta ideia, ou ela em sua essência, seja desprezada. A flexibilização dos direitos autorais pode permitir – dentro de alguns limites – certa quebra do núcleo duro, resistente, da cultura como mercadoria. A questão é: e se esta nova classe gestora, acompanhada pela ideia de Creative Commons, bater no teto, nos limites das ideias liberais, e sempre se deparar com a força dos oligopólios, dos lobbies dos direitos autorais – que ao contrário do que se pensa estão muito longe de serem derrotados? Não seria esta a chance de politização da arte ao invés desta estetização da política, como nos dizeres benjaminianos? Por isto, é essencial o diálogo. Mas o diálogo crítico, fundamentado, reflexivo.

Resumindo, o Passa Palavra acerta na análise: ao mostrar como grande parte da “cultura independente” e das ações de grupos empreendedores do open business está dentro da lógica de funcionamento do capitalismo; assim como, quando aponta os limites: das manifestações e marchas, da “cultura digital”, das novas tecnologias, da falta de sintonia com o cotidiano e anseios das classes mais pobres. E principalmente, quando expõe as motivações contrários ao FdE e parte da cultura “independente” e “alternativa”, sem entrar na lógica imediatista de achar “companheirismos” – sem o menor caráter reflexivo – em causas e movimentos, por parecerem, terem a imagem – por que não, a marca – de “alternativos”. Mas, erra na falta de mediações, não enxergando as possibilidades.

Na próxima parte analisarei as respostas de Ivana Bentes e Pablo Ortellado.


Fonte: Razão Crítica  

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