junho 30, 2011

"Sair dos eixos à esquerda (1)", por Bruno Cava

PICICA: "Se o Fora do Eixo, bem como todos esses movimentos de composição nova, — e se pode incluir aí, guardadas as particularidades, Túnis e Tahir no norte da África e o 15-M na Europa, — se eles terminarem capturados pelo capitalismo, terá sido a gente, a esquerda, que os perdemos, quero dizer, nós teremos perdido. Mas não perdemos, porque a luta continua com eles, através deles e neles."
Sair dos eixos à esquerda (1)

Tenho acompanhado o debate iniciado pelo coletivo Passa Palavra com o artigo A esquerda fora do eixo. Desde a sua publicação, em 17 de junho, repercutiu em cerca de uma dezena de bons textos pela blogosfera. Há tempos não suscitava uma discussão tão aberta e provocativa, ao redor de um tema candente para a esquerda. Ponto para o Passa Palavra. Discute-se algo crucial: como organizar-se politicamente, como mobilizar-se de modo expansivo, como fazer a luta de maneira coordenada, potente e eficaz?

Neste artigo, que pretendo o primeiro de uma série, proponho-me a pensar ao contrário. Em close reading, repassar e problematizar os principais textos produzidos sobre o assunto.

Começo com o artigo inaugural e, no próximo, passo à réplica de Ivana Bentes, publicada no portal Trezentos.

I. A esquerda fora do eixo“, Passa Palavra, 17/06/2011
 

É pertinente a preocupação crítica com a burocratização e aparelhamento dos movimentos, que assim vão distanciando-se das forças sociais vivas, caindo numa lógica autofágica e, no limite, reinscrita no sistema de controle e exploração capitalistas. Acertada a preocupação crítica também ante os riscos de cooptação de movimentos sociais/ONGs/coletivos, quando o ativismo se aproxima demais, amiúde aliando-se às empresas e ao estado. Ao dissociar meios e fins, o velho dilema tática x estratégia geralmente encobre a domesticação, engessamento e eventual pacificação do movimento. No âmbito da organização do trabalho, costuma ser fatal. Disso já se sabe desde o exame por sociólogos marxistas do sindicalismo de modelo japonês, toiotista. Seduzidos pelo ideal de desenvolvimento e inovação tecnológica, tais sindicatos promoviam a ideologia da empresa, o esforço conjunto de chefes e operários, um modo de vida conciliado para o bem de todos. O sindicato acabava fortalecendo a divisão social do trabalho, em vez de denunciá-la e combatê-la. Esse modelo de organização se difundiu e está presente na maioria das empresas hoje (com muita incidência nas multinacionais), e se reflete na expectativa, num sistema de cobranças e gratificações, em que toda a vida do funcionário — como se veste, onde mora, o que consome, como se comporta, como se relaciona — deve estar, em última análise, subsumida à imagem coletiva da empresa. A moral da empresa (a “carreira”) se estabelece como dimensão principal do indivíduo.

De modo geral, compartilho com o artigo a percepção que a emergência de nova composição política nas lutas não deve afastar uma autocrítica quase jesuítica. Com muita razão, toda nova forma de organizar e resistir está exposta ao capitalismo. O modo de produção dominante e global não cessa de identificar essas novidades e passará a tentar reapropriar-se das dinâmicas. Se os novos grupos político-culturais se esforçam em constituir espaços alternativos à indústria hegemônica, ao mercado dominante e ao emprego formal subordinado; não devemos ser ingênuos, tudo isso também se torna alvo preferencial para a investida capitalista. Nessa linha, o Passa Palavra dá um recado útil: não sejam tão otimistas com o novo, não alimentem a ilusão que estão na crista da onda da história — como se a luta de classes tivesse terminado na ilha dos bem aventurados pós-modernos.  Isso não existe. A luta por autonomia, por libertação do trabalho e pelo trabalho, continua inclusive por dentro da cultura livre, das redes produtivas e das marchas das liberdades. Se o trabalho imaterial e cultural se coloca no centro da economia política, tanto mais será o palco das disputas.

O que se deve ressalvar ao Passa Palavra, contudo, é que reconhecer a ambiguidade dos movimentos 2.0 não pode significar desqualificá-los, nas linhas ou entrelinhas, como genéricos, vagos, vendidos, desviantes. Incomoda naquele artigo o apelo à tradição da “esquerda em geral”, o que me parece um argumento de autoridade. Aborrece a insinuação que tais lutas, talvez por contarem com “setores da classe-média”, estariam desviando-se da linha justa. Em um ou outro ponto, fica parecendo que os autores trazem um marxímetro à mão, — ou então inventaram um novo teste de tornassol, que, sem maiores análises, revela quem é de esquerda e quem de direita. O mundo real é mais complexo e acontece em cores. É preciso diferenciar rancor de rabugice.

Existem, — e é indisputável, — esquerda e direita, — porém jamais sem ambiguidades, vaivéns, contradições, contágios, pontos de fuga, estabilizações e rupturas. Perceber as contradições e aproveitá-las no sentido da libertação — eis aí uma boa tarefa crítica, logo, tarefa de militante, que é o portador do método “científico”. Marx dixit. Sou da opinião que a esquerda só pode ser potente — isto é, perseverar esquerda — quando reconhece a sua heterogeneidade. Quando admite a diferença em seu seio: a possibilidade de lutar por muitas pautas, sem perder de vista as opressões, explorações e expropriações do capitalismo. Multiplicar as lutas sem cair na cacofonia, e orquestrar-se como polifonia.

Portanto, por serem tão produtivas, tão inovadoras, tão vivas, por produzirem e circularem tanto valor, exatamente por essas redes político-culturais autônomas (ou semi-autônomas) darem tão certo, que as empresas engordam o olho e mostram as suas garras sobre os novos terrenos da produção e do trabalho vivo. Se não valessem nada, ninguém iria querer. O capitalismo sabe bem que o mundo se tornou 2.0, então não pode a esquerda ficar pra trás, muito menos renunciar ao campo. É por isso que a indústria cultural e a aristocracia “artística”, aliás, tomaram de assalto o ministério da cultura no governo Dilma, para ir contra essas dinâmicas de libertação. Pois de tão produtivas e autônomas, os ameaçam. Isso não afasta o fato que o capitalismo veio depois, num segundo momento, pra se apropriar das novas lutas e novos movimentos, para torcer o sentido à direita, para cooptar a organização e reconfigurar a composição técnica do trabalho. E daí as lutas, as marchas, as disputas teórico-práticas, tudo isso que resiste. Porque nunca houve pureza, nem se diz isso, nem ninguém proclamou sovietes e internet!. Ao redor das novas redes produtivas e da revolução 2.0, existe e continuará existindo antagonismo, noutras palavras, luta de classe: trabalho x capital, esquerda x direita, liberdade produtiva x comando, expropriação e controle social. O caso, então, em vez de considerar a batalha perdida de antemão, só pode ser mesmo resistir: o que também significa autocrítica, esquiva, reinvenção, reconstituição.

Se o Fora do Eixo, bem como todos esses movimentos de composição nova, — e se pode incluir aí, guardadas as particularidades, Túnis e Tahir no norte da África e o 15-M na Europa, — se eles terminarem capturados pelo capitalismo, terá sido a gente, a esquerda, que os perdemos, quero dizer, nós teremos perdido. Mas não perdemos, porque a luta continua com eles, através deles e neles.
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Próxima resenha, em breve: A esquerda nos eixos e o novo ativismo, Ivana Bentes, 22/06/2011

Fonte: Quadrado dos Loucos

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