julho 03, 2011

"Cracolândias, a hora das narcossalas", por Wálter Maierovitch

PICICA: "Barre Simousse recomenda a adoção da política de Frankfurt implementada em 1994, ao enfrentar o problema representado por 6 mil drogados que vagavam pelas ruas. A experiência espalhou-se por outras oito cidades alemãs e vários países-, como Suíça e Espanha, aderiram aos ambientes fechados de consumo. Nos EUA, existem salas seguras para uso de metadona, droga substitutiva à heroína." Em tempo: Todo cuidado é pouco. Teve uma época em que o diretor do hospício de Manaus, empolgou-se com o incentivo ao turismo, patracinado pela prefeitura, e cometeu o desplante de propor que os loucos de rua (não institucionalizados) fossem devidamente identificados através de fotografias, para posterior recolhimento ao hospício. Com isso, a indigitada criatura nem se deu conta que estava incorrendo na reedição das velhas carrocinhas, que recolhiam os cães vadios da cidade. Você que mora fora de Manaus pode estranhar o alerta. É que você não conhece a leseira que campea por aqui. Aqui boas idéias costumam sofrer reinterpretações e cair na vala comum do reducionismo, desvitalizando e comprometendo a potência das boas práticas. Não é à toa que algumas políticas públicas, testadas com êxito alhures, cá padecem de excesso de realidade e pobreza de criatividade.

Cracolândias, a hora das narcossalas


O Brasil continua mergulhado nas trevas e demora em adotar medidas eficazes para contrastar o fenômeno sociossanitário representado pelo crack, cujo consumo se espalhou pelas cidades brasileiras. Diante desse quadro, com prefeitos e governadores despreparados, o governo federal anunciou, em fevereiro deste ano, um acanhadíssimo projeto de centros regionais de referência, e isso para capacitar 15 mil profissionais de saúde em 12 meses.
O desatino maior deu-se na capital de São Paulo, onde o prefeito Gilberto Kassab já promoveu, com o auxílio da polícia, a internação compulsória de usuários frequentadores da Cracolândia, localizada na degradada zona central. Depois de obrigados a se desintoxicar em postos de saúde, os dependentes voltaram rapidamente à Cracolândia para novo consumo. Quanto à polícia paulista, revelou-se incapaz de interromper a rede dos seus fornecedores de crack.
No momento, Kassab pensa em uma segunda overdose de desumanidade, e o Rio de Janeiro, com falso discurso humanitário, repete, em essência, a fórmula piloto do alcaide paulistano, ou seja, internações compulsórias para desintoxicação. Kassab vem sendo contido pelo secretário para Assuntos Jurídicos, que parece ter percebido a afronta à liberdade individual, constitucionalmente garantida.
Como o prefeito sonha com a reurbanização do centro da cidade, os usuários de crack viram um estorvo para a concretização de sua meta. E quando colocada a Polícia Militar em ronda permanente pela Cracolândia, os consumidores, em farrapos, migram para o vizinho bairro de Higienópolis, tido como aristocrático. Kassab sofre, então, a pressão de uma classe social privilegiada, que não suporta nem estação de metrô no bairro, por entender inconveniente a presença dos não residentes. Mais ainda, muitos higienopolistas reagem, quando topam com um drogado, como a desejar uma solução tipo Rio Guandu, época do governo Carlos Lacerda no Rio.
Diante das multiplicações das cracolândias, o governo federal tarda em ousar e partir para a adoção de narcossalas, também chamadas de salas seguras para consumo. Até o Nobel de Medicina, Françoise Barre Simousse (isolou o vírus HIV-Aids), preconizou a adoção de narcossalas na França, em face da resistência do direitista presidente Nicolas Sarkozy, que prefere a cadeia para os usuários, como FHC e Serra nos seus governos.
A respeito, o Conselho Municipal parisiense tenta derrubar a proibição de Sarkozy e está pronto para implantar uma narcossala piloto em Paris. Para os membros das respeitadas e francesas Associação Nacional para a Prevenção do Álcool e das Dependências (Anpaa) e Associação para a Redução de Riscos (AFR), a “história epidemiológica e a experiência clínica demonstram que o projeto de uma sociedade sem consumo de drogas é ilusório. As posturas proibicionistas e repressivas são inócuas-. Isso porque a cura raramente se dá apenas com a abstinência”. A abstinência, frisaram, causa exclusão. Ou seja, afasta dos sistemas de proteção e de acompanhamento uma parcela frágil e frequentemente marginalizada de consumidores- de drogas.
Barre Simousse recomenda a adoção da política de Frankfurt implementada em 1994, ao enfrentar o problema representado por 6 mil drogados que vagavam pelas ruas.  A experiência espalhou-se por outras oito cidades alemãs e vários países-, como Suíça e Espanha, aderiram aos ambientes fechados de consumo. Nos EUA, existem salas seguras para uso de metadona, droga substitutiva à heroína.
Com as narcossalas de Frankfurt, o número de dependentes caiu pela metade até 2003. Os hospitais e os postos de saúde, antes delas, atendiam 15 casos graves por dia, com um custo estimado de 350 euros por intervenção.
O sistema alemão de Frankfurt oferece acolhida aos que vivem marginalizados e em péssimas condições de saúde e econômicas. Sem dúvida, virou uma forma de aproximação, incluindo cuidados médicos, informações úteis e ofertas de formação profissional e de trabalho. Nas oito cidades alemãs e entre os usuários dos programas de narcossalas, caiu o índice de mortalidade em virtude da melhora da qualidade de vida. -E pesquisas anuais sepultaram a tese de que as narcossalas poderiam estimular os jovens a ingressar no mundo das drogas.
As federações do comércio e da indústria alemãs apoiam os programas de narcossalas com 1 milhão de euros. E ninguém esquece a lição do professor Uwe Kemmesies, da Universidade- de Frankfurt: “Podemos reconhecer que a oferta de salas seguras para o consumo de drogas melhorou a expectativa e a qualidade de vida de muitos toxicodependentes que não desejam ou não conseguem abandonar as substâncias”.


Fonte: Carta Capital

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