julho 11, 2011

"Dormindo na marcha (3)", por Bruno Cava

PICICA: "O tropicalismo, a contracultura, ora, a Revolução Russa tiveram seus momentos de lutas inovadoras, seus devires libertários e comunistas. Toda revolução são muitas revoluções. Se depois foram neutralizados, mastigados, deformados, se depois passaram a falar em nome disso tudo para outros propósitos, como de fato passaram, ora, isso foi depois. Não dá pra julgar a revolução pelo futuro da revolução. Seria a suma injúria. Existe toda uma memória militante, muito além da história que ficou, onde faíscas e lampejos podem ressignificar o presente e, uma vez mais, efetuarem-se no sentido da libertação. Porque, acredito, ninguém é ingênuo para sustentar que a virada digital resolva os problemas do estado, dos partidos e dos patrões, como se sovietes e internet conduzisse ao fim da história."
Dormindo na marcha (3)

Segue abaixo a terceira resenha da série sobre a crítica começada pelo coletivo Passa Palavra, com A esquerda fora do eixo (17/06). Em 29/06, o Quadrado dos loucos publicou o comentário Sair dos eixos à esquerda e, em 3/07, Pós-modismo pós-festivo, que dialoga com texto de Ivana Bentes ao Trezentos, A esquerda nos eixos e o novo ativismo.
Neste, enfrenta quatro artigos sob o título Domingo na marcha, também do Passa Palavra: aqui, aqui, aqui e aqui.
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Cada vez mais fica clara a referência teórica do Passa Palavra. Em 1987, o teórico marxista e capo militante João Bernardo escreveu Capital, Sindicatos, Gestores (1987). Nesse livro, expõe a sua teoria dos gestores — burocratas do estado ou gerentes/executivos de empresas. Os gestores não integram a classe proletária, servem como altos funcionários do capital e são centrais para a cooptação do movimento operário. Em síntese, “A partir do momento em que são os gestores que comandam incontestadamente o capitalismo, é o antagonismo entre eles e a classe operária que passa para primeiro plano.” (p. 9).

No Brasil, o sociólogo do trabalho Ricardo Antunes, fundador e intelectual orgânico do PSOL, em Adeus ao trabalho? (2008, 15ª ed.), entre outros, compartilha de tese semelhante, tomando por objeto de estudo o sindicalismo: “Uma tendência crescente de burocratização e institucionalização das entidades sindicais, que se distanciam dos movimentos sociais autônomos”, com consequente “distanciamento cada vez maior de ações anticapitalistas e perda da radicalidade social” e “incapacidade para desenvolver e desencadear uma ação para além do capital” (p. 70). Logo a seguir, em nota de fim de capítulo, elogia João Bernardo, que “levou ao limite esta crítica, mostrando, não sem boa dose de razão, que os sindicatos tornaram-se também grandes empresas capitalistas, atuando, enquanto tal, sob uma lógica que em nada difere das empresas privadas. (p. 75)

Essa matriz é então utilizada para identificar uma lógica de gestão empresarial capitalista, seja no coletivo Fora do Eixo, no Instituto Overmundo, na Casa da Cultura Digital e, generalizando, no amplo e heterogêneo espectro de grupos e coletivos organizados ao redor de editais e programas do ministério da cultura no governo Lula, com Gilberto Gil (2003-08) e Juca Ferreira (2009-10). 


Na ótica do Passa Palavra, tais grupos não passam de “ativismo empresarial”, sob o ponto de vista do trabalho. Disfarçam-se de inovação, militância 2.0 e discurso revolucionário para fazer o mais do mesmo: a exploração capitalista do trabalho. Assim, cooptam energias rebeldes da juventude, usurpam as bandeiras da esquerda e agem como colaboracionistas para o desenvolvimento de um novo capitalismo de redes e fluxos. A disputa entre esses movimentos político-culturais 2.0, de um lado, e a indústria cultural, ECAD, IIPA, SECULT-PT e medalhões, do outro, não vai além de uma briga interna ao capital, entre os exploradores fordistas e os pós-fordistas. Sim, é o novo contra o velho, porém todos inteiramente atrelados à lógica do capital e sua mercantilização da cultura. O Overmundo, o Fora do Eixo, o Creative Commons, a Casa da Cultura Digital, os Pontos de Cultura em geral, tudo isso não é anticapitalista o bastante, apesar da propaganda. Falta tensão dialética, falta luta de classe, falta rancor. Basta analisar a dinâmica produtiva do Tecnobrega, para ali perceber a formação de uma indústria desigual, da divisão social e de um regime de acumulação. Se esse é o “novo modelo de negócios”, nada mais capitalista, logo injusto.

Na realidade, para o Passa Palavra, todas essas iniciativas sob crítica são ainda outra vez capitalismo — um capitalismo mais profundo e abrangente. Não admira o rapper Emicida vender a sua contracultura e atitude irresignada e se tornar o garoto-propaganda do Banco Itaú. Nem tantos slogans de “responsabilidade social” ou “consciência ambiental” na publicidade empresarial. Starts with you! O capitalismo cognitivo, enfim, não vende produtos, mas mundos em que esses produtos existem. Isso já se conhecia desde as sofisticadas propagandas de cigarro nos anos 1980/90, em que todo um modo de vida modernoso era engendrado para cada marca.

Assim como a geléia geral da contracultura dos anos 1960 terminou reapropriada pela ordem capitalista, o pós-modernismo se integrou inteiramente ao fetichismo da mercadoria na sociedade de consumo. Daí o rancor dos textos, quando os novos gestores e empresários, e o Fora do Eixo em especial, tentam capitalizar simbolicamente em cima das marchas das liberdades. Pior do que isso, agora os gestores não fazem mais nada, limitando-se a capturar o ciclo produtivo de fora, chamando-o malandramente de “externalidade positiva”. Nada mais vampiresco. Eis a origem da necessidade de denunciá-los, de expô-los como traidores da classe, colaboracionistas em pele de cordeiro.

Afinal, vocês, ativistas 2.0, não passam de acadêmicos new age deslumbrados e empresários da novidade-que-veio-dar-à-praia, em qualquer caso distantes da verdadeira revolta que move os oprimidos e alimenta o motor das rupturas históricas. Então, a certa altura, o Passa Palavra mostra o muque, cospe no chão e se proclama mais militante: “Não há teoria que não seja reflexão sobre lutas concretas, reais, vividas, sentidas na pele e narradas por aqueles que lutam, enquanto lutam. E é o que temos feito.

A análise é pertinente, bem estruturada, marxista e parte de premissas indisputáveis. Mas onde está o erro? o tremendo desvio de perspectiva? nas conclusões?

É claro que o mercado engorda os olhos para o manancial de novos movimentos político-culturais. É evidente que as suas engrenagens buscarão reapropriar-se e alimentar-se dos novos modos de produzir e organizar, transformando-os em mercadorias e imagens e espetáculo. O carnaval, o tropicalismo, o samba, o funk, o hip hop, a cultura hacker, o compartilhamento, as redes produtivas de cultura, os fluxos de afetos e desejos da geração, tudo isso é óbvio que se tentará tirar da circulação comum, privatizar, pôr um preço e atrapalhar, quiçá criminalizar o uso livre. É assim mesmo que funciona a Grande Máquina: canibalizando o trabalho vivo, o trabalho social combinado, tudo o que os homens produzem e se produzem e se valorizam, nesse processo de constituição do mundo.

Os autores do Passa Palavra insistem na luta de classe. Ora, isso é reconhecer, em primeiro lugar, que a relação social mediada pelas coisas possui dois pólos. Que, onde há exploração e explorado, também há resistência e sujeito político. Que, se o capitalismo tanto se interessa por certos processos de produção e valoração, é porque ali há trabalho e riqueza. Porque sem isso, sem o trabalho vivo, sem a potência de vida dos homens, o capital não é capaz de produzir nada. Então menos do que recuar e torcer o nariz para esses movimentos tão produtivos (eureca, o capitalismo já percebeu isso!), é preciso mergulhar neles. Pessimismo na razão, otimismo na ação. Faz-se urgente mergulhar com todo o senso crítico e toda a revolta rancorosa nunca-ressentida da geração.

O tropicalismo, a contracultura, ora, a Revolução Russa tiveram seus momentos de lutas inovadoras, seus devires libertários e comunistas. Toda revolução são muitas revoluções. Se depois foram neutralizados, mastigados, deformados, se depois passaram a falar em nome disso tudo para outros propósitos, como de fato passaram, ora, isso foi depois. Não dá pra julgar a revolução pelo futuro da revolução. Seria a suma injúria. Existe toda uma memória militante, muito além da história que ficou, onde faíscas e lampejos podem ressignificar o presente e, uma vez mais, efetuarem-se no sentido da libertação. Porque, acredito, ninguém é ingênuo para sustentar que a virada digital resolva os problemas do estado, dos partidos e dos patrões, como se sovietes e internet conduzisse ao fim da história.

Vale escutar o coletivo EduFactory: “Acolher a radical inovação da forma-rede significa, antes de tudo, assumi-la como um campo de batalha, continuamente atravessado por diferenciais de potência e por linhas de força antagonistas, pela produção do comum e pelas tentativas de capturá-lo.  E evitar toda e qualquer teleologia ingênua que termine por ler a intelectualização do trabalho como desmaterialização das relações sociais e o fim das experiências de luta. A rede é, ao contrário, uma estrutura hierárquica, e que a horizontalidade não é nada além de uma relação de força que é posta em questão. As práticas de subtração e autonomia, por um lado, e os processos de captura e de subsunção, por outro, constituem o ponto de tensão imanente à cooperação social.

Portanto, identificar e esquadrinhar as estratégias da reconfiguração capitalista, do fordismo ao pós-fordismo, é fundamental. Nisso, o Passa Palavra acerta. Forte no diagnóstico, mas por enquanto insuficiente em como resistir. Deve-se passar, agora, ao segundo estágio. O que fazer. Como imergir nesse movimento, sem medo ou ressentimento, e contribuir para dar-lhe um sentido libertador? Como caçar o capitalismo de dentro, já que a relação social é antagonista? Porque se há trabalho vivo ali, habemus proletariado. Quem são os aliados e parceiros nessa luta? Como entrelaçar-se com eles, dialogicamente, ajudar a “sistematizar seus anseios e construir uma pauta que movimente todos numa direção comum“?

Decerto jamais com conclusões peremptórias, que apontam o dedo ao diferente para acusar-lhe de inimigo ou traidor de classe. A crítica constrói quando explora as condições de possibilidade da superação do que existe. E não como dialética puramente negativa, que tende ao diletantismo e à paralisia prática. Não há como contornar, em todo esse formidável esforço do Passa Palavra, certo tom sectário e até mesmo auto-indulgente. O que, aliás, o MinC com Gil e Juca menos adotou, uma vez ocupado pelos movimentos sociais que fazem a luta do trabalho e por dentro dele.

Fonte: Quadrado dos Loucos

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