julho 04, 2011

"Lutas Sociais e Fetichismo: notas sobre o debate iniciado pelo Passa Palavra (II)", por Elton Flaubert

PICICA: "Diante disto, fica mais claro o porquê do apoio entusiasta de Ivana Bentes ao coletivo Fora de Eixo (FdE). O coletivo, enquanto sujeito positivo, repleto de potência da multidão constituinte pressiona o constituído (a potestas); as novas lutas “pós-fordistas” pressionando o que restou de “fordismo”. O ser, em sua imanência absoluta, pressionando continuamente para a libertação. Por isto, a cultura pós-moderna, pós-fordista é, para ela, mais livre. Não existe o lado de fora, o negativo, a crítica imanente. Não existe o porquê em lutar contra os sutis mecanismos fetichistas da “metafísica” do capital. Não existe de fora e de dentro (e isto não tem nada a ver com a ideia de “rio que corre de longa data” viu...), não existe espaço exterior de negação. A “positividade” autonomista repete, assim, certa linearidade, devido ao argumento central de que as mudanças são sempre reações do instituído as lutas da multidão. (É bom deixar claro, que mesmo assim, o próprio Negri teria algumas dificuldades em identificar no Fora de Eixo, seu “São Francisco de Assis”, o exemplo de militante). Em tempo: Continua repercutindo na rede as respostas ao artigo "A Esquerda Fora do Eixo", do coletivo Passa Palavra. Elton Flaubert apresenta em sua segunda nota uma análise de duas dessas respostas: "A vanguarda da retadaguarda reage", de Ivana Bentes; e "Capitalismo e Cultura Livre", de Pablo Ortellado.

Lutas Sociais e Fetichismo: notas sobre o debate iniciado pelo Passa Palavra (II)

 


Durante as últimas semanas, o artigo “A Esquerda Fora de Eixo”, do coletivo Passa Palavra, suscitou diversas respostas na rede. Dando continuidade a primeira nota, pretendo analisar duas delas: “A vanguarda da retaguarda reage”, de Ivana Bentes; e “Capitalismo e Cultura Livre” de Pablo Ortellado.

Sem esmiuçar os argumentos do Passa Palavra, Ivana Bentes identifica o coletivo como representante da “velha esquerda”, por não experimentar o novo. Dando alguns rodopios, a autora volta sempre aos mesmos pontos, que são estes basicamente: a) o texto do Passa Palavra é fruto de “perplexidade de certos setores da esquerda tradicional com as mudanças e crise do capitalismo fordista e as novas dinâmicas de resistência e criação dentro do chamado capitalismo cognitivo. Crise e desestruturação que tem como horizonte a universalização dos meios de produção e infra-estrutura pública instalada, a constituição de novos circuitos e mercados e a emergência de uma intelectualidade de massa (não mais o “proletariado”, mas o cognitariado) com a possibilidade da apropriação tecnológica por diferentes grupo (software livre, códigos abertos, cultura digital); b) a análise do Passa Palavra é uma tentativa de“despotencializar a cultura digital, o midiativismo e as estratégias de apropriação tecnológicas das redes”; c) o coletivo está viciado nas “velhas estruturas”, e por isso, a partir de uma linha traçada pela autora, encontra-se atrás dos novos modelos, onde disto conclui-se que o coletivo é mais conservador do que o próprio mercado, sendo a “vanguarda da retaguarda”; d) o Fora do Eixo representa a base do novo ativismo, sendo transversal com pauta aberta, heterogênea e em construção, as suas bases são:“autonomia, liberdade e um novo “comunismo” (construção de Comum, comunidade, caixas coletivos, moedas coletivas, redes integradas, economia viva e mercados solidários), e ainda, “Sem demonizar as relações com os mercados, mas inventando e pautando, “criando” outros mercados, fora da lógica fordista do assujeitamento”; e) O Fora de Eixo adapta o modelo de produção cultural ao modelo de funcionamento do capitalismo, “Não mais o capitalismo fordista da “carteira assinada” mas o dos zilhões de free-lancers, autônomos, diplomados sem empregos, sub-empregados, camelôs, favelados, contratados temporários, designes, artistas, atores, técnicos, que ou “vendem” sua força livre de trabalho com atividades flutuantes temporárias, ou se ORGANIZAM e INVENTAM o próprio emprego/ocupação e novos circuitos, como tem feito de forma incrivelmente bem sucedida o Circuito Fora do Eixo, resignificando e potencializando o imaginário de jovens no Brasil inteiro. Uma esquerda pós-fordista que está dando certo, que inventa estratégias de Mídia, que inventa “mercados” solidários, contrariando os anunciadores do apocalipse. (grifos meus)

Diante de tudo isto, e deixando de lado algumas bordoadas estéreis, como: “Falta ao texto um arsenal teórico minimamente a altura das mutações, crises e impasses do próprio capitalismo" (Se discorda do arcabouço teórico que sustenta o texto, aponte-o, esmiúce, faça o enfrentamento direto. Arrogar a ignorância alheia por não estar em consonância com sua “igreja” não diz nada.) ou “Há um enorme ressentimento no texto, mal disfarçado, diante de tanta potência” (De fato, as forças avassaladoras do capital e de seus mecanismos fetichistas, que não se resumem ao fordismo, são muito potentes, os indígenas e o meio-ambiente que (ainda) o digam. Classificar as críticas do texto de ressentidas, sem entrar nas especificidades da argumentação, é mole. Ou melhor, é ideologia. Nisto, o “pós-rancor” nos mostrou o caminho); tentarei analisar as referências teóricas da argumentação da autora, sua relação com a defesa do FdE, e o obscurecimento da forma-valor.

Quanto às referências teóricas, a autora cita três, mas na verdade são quatro: Gilles Deleuze, Félix Guattari, Antônio Negri (e Michael Hardt, co-autor de Império e Multidão). Aqui me deterei mais aos dois últimos, já que o Deleuze/Guattari da autora vem basicamente da influência dos dois últimos. 

Segundo John Holloway, se a posição “autonomista” de Negri, rompe com a análise tradicional marxista, que tratava a luta de classes como subordinada ao desenvolvimento lógico do capital; ao tratar a relação entre trabalho e capital como externa (o capital age em reação as lutas da multidão), ela coloca a luta política numa lógica externa ao capital, jogando o bebê (o capital como ontologia histórica) junto com a água suja. Dito de outra forma existe de um lado o capital (potestas) – poderoso e monolítico – e do outro, a multidão (potência) – igualmente poderosa e monolítica. O primeiro age em reação ao outro, modificando-se a partir da multidão constituinte. A relação entre os dois lados, a subordinação, a forma-valor, o fetiche, são externos.

Certamente inspirados – dentro de certos limites – naquela “afirmação da afirmação” de Deleuze, Negri/Hardt procuram um “sujeito positivo”, a potência da multidão como poder revolucionário. O Império seria então produto da reação as lutas da multidão, que abarcaria tudo, espécie de CMI (Capitalismo Mundial Integrado). A resistência estaria, portanto, no poder da multidão de impulsionar o poder instituído para novos lugares, nunca fora dessa positividade. Potestas reagindo à potência. Seria, “A contínua pressão do ser para a libertação”, presente em “Anomalia Selvagem” de Antônio Negri. Daí, o louvor aos “novos paradigmas”, quase que por si. Este discurso aparentemente muito atraente esconde os mecanismos fetichistas, a negatividade, o inteiramente outro. (É importante observar que Negri/Hardt adotam a imanência, não a crítica imanente, resultando, como notou Holloway e outros críticos, na compreensão do sujeito como positivamente autônomo, e não como desumanizado, diante dos fetiches, espetáculo, etc).

É como se um paradigma passasse para outro (Imperialismo/Império; Fordismo/Pós-Fordismo; Modernidade/Pós-Modernidade; Sociedade Industrial/Sociedade Informacional; Trabalho Material/Trabalho Imaterial) em reação as lutas da multidão, e assim fossemos mais livres. Passagem esta, quase sempre feita de mão pesada, forçando a barra para enquadrar a realidade em identificações reativas. O negativo, a crítica radical, está sempre integrada num mundo de ordem, de passagem de paradigmas. A rejeição passa a ser até mesmo a força condutora da dominação. Ao invés da ruptura, a “destruição criativa” (Mesmo sem tempo ou preparo suficiente para tal, parece-me que existe aí um bom campo para estudar as relações deste tipo de pensamento com a “interversão cínica”, que em sua lógica performativa nunca vai à radicalidade dos conflitos gerados pela lógica do capital). Como afirmam os próprios: “A crise é para o capital uma condição normal que não indica seu fim, mas sua tendência, seu modo de operação”. É a positivação (e a exclusão da dialética) que impede conclusões radicais.

Diante disto, fica mais claro o porquê do apoio entusiasta de Ivana Bentes ao coletivo Fora de Eixo (FdE). O coletivo, enquanto sujeito positivo, repleto de potência da multidão constituinte pressiona o constituído (a potestas); as novas lutas “pós-fordistas” pressionando o que restou de “fordismo”. O ser, em sua imanência absoluta, pressionando continuamente para a libertação. Por isto, a cultura pós-moderna, pós-fordista é, para ela, mais livre. Não existe o lado de fora, o negativo, a crítica imanente. Não existe o porquê em lutar contra os sutis mecanismos fetichistas da “metafísica” do capital. Não existe de fora e de dentro (e isto não tem nada a ver com a ideia de “rio que corre de longa data” viu...), não existe espaço exterior de negação. A “positividade” autonomista repete, assim, certa linearidade, devido ao argumento central de que as mudanças são sempre reações do instituído as lutas da multidão. (É bom deixar claro, que mesmo assim, o próprio Negri teria algumas dificuldades em identificar no Fora de Eixo, seu “São Francisco de Assis”, o exemplo de militante).

Para concluir a este respeito, cito uma passagem de Holloway que estou plenamente de acordo: “Fazer vistas grossas à natureza interna da relação entre o trabalho e o capital significa assim tanto subestimar a contenção do trabalho dentro do capital (e portanto, subestimar o poder do trabalho contra o capital), como subestimar o poder de trabalho como uma contradição interna ao capital (e, portanto, superestimar o poder do capital contra o trabalho). Se se ignora a mútua penetração do poder e do antipoder, esquece-se do tema do fetichismo, então ficamos com dois sujeitos puros dos dois lados”. 

De um lado o capital, do outro a multidão. Sendo que esta se encontra na figura não mediada do militante. Vejamos então, as próprias palavras de Negri/Hardt sobre isso: “A militância atual é uma atividade positiva, construtiva e inovadora. Esta é a forma pela qual nós e todos aqueles que se revoltam contra o domínio do capital nos reconhecemos como militantes.[...] Ela só conhece o lado de dentro, uma participação vital e inevitável no conjunto de estruturas sociais, sem possibilidade de transcendê-las. Esse lado de dentro é a cooperação produtiva da intelectualidade das massas e das redes afetivas, a produtividade da biopolítica pós-moderna. Essa militância faz da resistência um contrapoder e da rebelião um projeto de amor”. (grifos meus)

Voltando a nossa autora, considero sua argumentação, dentro de certos limites: (ainda) “moderna” e “modernizante” (trabalho modernidade, modernização e modernismo de maneira distinta, mas sem separação). A autora demonstra um deslumbramento pelo novo, por sua potência, de maneira quase “apologética”. A empolgação com as novas dinâmicas e modelos estão representados pelo entusiasmo (acrítico) com as ações do coletivo Fora do Eixo. 

A autora tem sempre em mente as mudanças do capitalismo fordista para o pós-fordista (parece-me que seu entendimento destas mudanças não é nada ruim), mas se esquece daquilo que permanece. Caso contrário, não faria mais sentido falar em capitalismo, para identificar algumas estruturas, e sim, designar outro nome. Se o capitalismo mudou, mas continuou sendo capitalismo; existe algo que permaneceu, que permite identificá-lo como tal, que mantém o termo com substância. É o encantamento “pelo que mudou” que impede a autora de vislumbrar o que “permaneceu”. É isto que permite a autora dizer: “Sem demonizar as relações com os mercados, mas inventando e pautando, “criando” outros mercados, fora da lógica fordista do assujeitamento” (grifos meus). Fica claro, que o problema a ser resolvido era o que ela define como “assujeitamento da lógica fordista”, isto superado, o FdE é festejado por “pautar” e “criar” outros mercados, pós-fordistas. 

Diante de “tanta potência”, a crítica – indispensável – para entender com lucidez as formas, os extremos do fenômeno, os limites, e só diante disso, as possibilidades de ação; fenece. O que não ajuda a politizar as novas tecnologias. Pelo contrário, este obscurecimento da forma, ou seja, do capital como ontologia (histórica) e das estruturas capitalistas, reforça o “fetiche automático”, o espetáculo, a racionalidade cínica. Como colocou Ruy Fausto, em “Marx: lógica e política”: “O capital é ‘sujeito que domina’, ‘sujeito automático’, ‘sujeito de um processo’ [...]O operário e o capitalista são ‘suportes’ desse sujeito, e num sentido (mais ontológico do que propriamente lógico) seus predicados. (A rigor, os predicados do sujeito ‘capital’ — seus ‘momentos’ — são o dinheiro e a mercadoria. O operário e o capitalista são suportes do capital, por serem suportes do dinheiro e das mercadorias — inclusive a força de trabalho — enquanto momentos do capital)”. Ou ainda, como nos diz Giovani Alves em seu texto: “Os Fundamentos Ontológicos da Reestruturação capitalista” (link: http://globalization.sites.uol.com.br/os.htm): “Ou seja: o capital é uma forma social, à primeira vista muito mística, que transforma todo conteúdo concreto da produção da riqueza social que surge como mercadoria, numa forma abstrata de riqueza - a forma dinheiro. Dinheiro que se valoriza. Que cria mais dinheiro. Que almeja, com intensa e incansável pressão, "fazer" mais dinheiro. [...] O capital é uma forma sócio-histórica, um modo de sociabilidade humana, que cria (e reproduz) a cisão entre os produtores e suas condições de trabalho, que surgem, para eles, como potências alheias autônomas. É uma relação social de produção que toma forma de coisa, uma quase-físis. É um "fetiche" social, criado pela ação humana, mas que uma vez criado, adquire uma forma objetiva e autônoma, regido por leis próprias (cuja personificação sob a mundialização do capital é representada em nossos dias, pelo capital financeiro)”. 

Sujeito automático esse, que ameaça hoje até mesmo nossa sobrevivência, vide a crise ambiental. Sujeito, que para o bem ou por mal, personifica-se na ação do coletivo-empresa, Fora de Eixo. O que não significa demonização (como às vezes pode aparentar o texto do Passa Palavra), mas entendimento dos limites de sua ação, ou por acaso o quase “automático” desejo de entrar no Mainstream não faz parte do: “fazer o que tem de ser feito”, como por um “feitiço”? O fetiche é o curso do mundo autonomizado, que impõe a sua lógica ao social.

Para Ivana, o texto do Passa Palavra percebe as mudanças estruturais, mas não vai além nas consequências (não se entrega ao novo?), “e funciona como uma caricatura que busca demonizar as novas dinâmicas sociais e culturais pós-fordistas” (grifos meus). Ora, que a crítica do Passa Palavra ora ou outra passa por alguns problemas de mediação, às vezes “demonizando”, sem argumentar o suficiente, eu concordo. Mas, nossa autora, tão empolgada diante de “tanta potência”, não estaria cometendo o mesmo erro, e demonizando qualquer crítica as novas dinâmicas sociais e culturais, como a do texto? Afinal, no esquema paradigmático da reação autonomista, a crítica ao novo paradigma – ainda não instituído – vem a ser sempre do potestas: “A vanguarda da retaguarda”.

Não é a toa que a autora utiliza-se, ora ou outra, das expressões “velha” e “nova” como determinação que desqualifica e qualifica tal esquerda, sem maiores problemas. Expediente este, que nos é tão comum no desejo de renovação das pautas e de outros entendimentos no campo das esquerdas, que sequer nos apercebemos da sutileza da argumentação. Mas é esta determinação que separa um debate sobre: “outros paradigmas e práticas”, “da modernização das esquerdas e dos movimentos sociais”.Que separa a luta como negatividade da positividade do sujeito degradado.

 
Traçada a linha da mudança de paradigmas (a reatividade mantém uma lógica linear), o coletivo Passa Palavra está na “retaguarda” do mercado, por criticar as novas dinâmicas de trabalho e o espírito do novo capitalismo, mantendo o que ela chama de análise maniqueísta da “esquerda fordista” (aqui a autora confunde “alhos com bugalhos”, e coloca toda crítica contra a forma-valor no mesmo saco da lógica fordista, já que se contrapõe ao novo paradigma: o pós-fordismo, e também não conseguiu identificar que a própria visão do Passa Palavra sobre o “fordismo” não é classicamente binária, mas tripartite). É como se as práticas do FdE fossem boas, mais livres, e “repletas de potência” por representarem o novo paradigma, por terem sua ação adaptada ao novo capitalismo.

Seria bom também que, se a pesquisadora Ivana Bentes discorda de maneira tão veemente de certa face da crítica à lógica cultural do pós-fordismo, incluindo-as “no mesmo saco” do maniqueísmo da “esquerda fordista”, que ela pudesse esmiuçar seus argumentos e nos apresentar sua contraposição à estrutura e as particularidades destes com mais substância. Caso contrário, a acusação de simplismos e generalizações (justa até certo ponto) presentes no texto do Passa Palavra torna-se ela própria simplista, superficial e generalizante, que identifica o outroen passant como “ressentido”, “rancoroso” ou “anunciador do apocalipse”.

Considero fundamental o debate em torno das teorias e práticas dentro das esquerdas, e isto, exige além de paciência, menos arroubos de arrogância. Caso contrário, o que vemos é isto: “heresias das lutas sociais” de um lado, “heresias teóricas” para interpretar as novas tecnologias do outro. 

II

Outro artigo que pretendo analisar é “Capitalismo e Cultura Livre” de Pablo Ortellado. O autor, basicamente, aborda três pontos. No primeiro, ele coloca “alguns pingos nos is”, afirmando que a cultura livre não é movido pelo empresariado, e que o texto do Passa Palavra esqueceu-se de problematizar a multiplicidade de agentes. Aonde alguns vieram do campo liberal, outros do campo da esquerda: “Os ativistas liberais queriam persuadir o empresariado de que havia possibilidades de negócio não exploradas e buscava conciliar uma “modernização” da indústria cultural com a democratização do acesso à informação, já que haveria queda na barreira de preços dos produtos culturais. Os ativistas da esquerda enfatizavam o processo de desmercantilização da cultura e a constituição de formas coletivas de produção e distribuição da cultura que retomavam, em nova chave, experiências pré-capitalistas dos bens comuns. O artigo aponta corretamente que houve uma “aliança política tática formada por um programa de oposição às transnacionais da cultura e os oligopólios culturais regionais”, mas está completamente equivocado ao afirmar que se ocultou “a reflexão crítica sobre o que há de surgir em seu lugar.” A discussão sobre as implicações políticas desta aliança anti-velha-indústria e de como lutar para que o processo de transformação em curso se oriente mais para a desmercantilização da cultura e menos para a modernização da indústria por meio de novos modelos de negócio foi o cerne dos debates de toda a esquerda que esteve envolvida no campo da cultura livre.”

Considero este ponto fundamental. Como já foi dito, a “cultura livre” foi fruto de uma aliança tática entre “liberais” (de centro-esquerda) e “socialistas”, digamos assim. Acredito que este diálogo deva ser incentivado, por motivos já colocados na primeira nota. As esquerdas que se posicionam contrárias à mediação da vida pela forma mercadoria/dinheiro, não devem olhar de maneira torta a reivindicações de caráter liberal, pelo contrário, alguns de seus fundamentos vêm de princípios liberais, por isto, a possibilidade de alianças. O diálogo deve ser crítico, fundamentado e ressaltar o “não-idêntico”. Ao invés de afastar quem lhe é mais próximo, deveríamos ampliar o diálogo, fazer a crítica contundente, e tentar revelar os mecanismos fetichistas, que se apresentam há todos os instantes. Considero também, que quando certas ideias liberais “batem no teto”, precisamos mostrar aquilo que a impede, a ausência de certa radicalidade. Como o “ambientalismo liberal” que tende a fracassar ao tentar mediar à lógica de uma força avassaladora, o capital, e suas relações mediadas por mercadoria/dinheiro.

No segundo ponto, o autor concorda que na sociedade fordista a estrutura de classes da sociedade capitalista é tripartite, e não binária; mas pondera que pesquisas revelam que na sociedade pós-fordista, os trabalhadores, em geral, tem acesso a atribuições gerenciais, lançando mão de algumas perguntas: qual o impacto das novas ocupações de nível superior para o sistema produtivo? Caminhamos para novos tipos de hierarquia na estrutura produtiva que não é mais determinada pelo acesso escasso às ocupações profissionais? Quais? Essa delegação de tarefas gerenciais para os trabalhadores modificou efetivamente a natureza do trabalho produtivo cuja essência agora seria simbólica, como querem os autonomistas franco-italianos? (lembrando que, mesmo nos Estados Unidos, onde o processo está mais avançado, 60% da força de trabalho ainda manipula produtos e não símbolos e que esse crescimento americano pode ter tido como contrapartida a ampliação do trabalho industrial fordista nos países semi-periféricos); por que certos tipos de trabalho como o de telemarketing, no coração do setor de tecnologia de informação e comunicação, ainda se organizam de maneira fordista? Eu não conheço respostas satisfatórias para essas e outras questões, mas acho que devemos olhar para este mundo que se transforma e não para o mundo fordista que aos poucos desaparece.

As perguntas do autor são interessantes. Mas gostaria de ressaltar dois pontos: a) precisamos observar o “que mudou”, tanto quanto o “que permaneceu”; b) incomoda-me o entendimento paradigmático, típica entre os autonomistas, que entende a passagem de um mundo monolítico a outro monolítico, como se essa passagem de um “oposto ao outro” (fordista/pós-fordista; material/imaterial; modernidade/pós-modernidade; etc.) já fosse dada (lembra até uma teleologia), não mantivesse relações, permanências ou dinâmicas.

No terceiro ponto, o autor analisa as novas formas de luta que acompanham as modificações na transformação das estruturas de classes. Para ele, “A drástica ampliação do ensino superior e a massificação das tecnologias de informação comunicação, “culturalizaram” as “camadas médias urbanas” o que repercutiu na forma de expressão das suas lutas, inclusive quando tiveram orientação anticapitalista”. 

No geral, concordo com as mediações do autor. Neste ponto, concordo que as novas lutas, principalmente ligadas às classes médias, e de certa forma articulada com as camadas mais pobres, tem uma tendência a se “culturalizarem”. E isto passa politicamente por novas estratégias e lutas. Mas é preciso ter um pouco mais de calma. E resistir a euforia da técnica, do novo por si, desta associação imediata entre luta social e ativismo que está sempre precisando estar em ligação com a lógica cultural do que mudou, sendo desconsiderada a forma social, em que o próprio protesto se apresenta. Senti falta da distinção entre: o pensamento que consegue jogar luzes sobre o contemporâneo, estando ligação a “Experiência” (Erfahrung); e o pensamento que está ligado à lógica destas mudanças, de certa forma, o sujeito positivo do Negri. Incomoda-me acima de tudo, a análise apenas dos fenômenos, desprezando o que há de objetivo, a ontologia (histórica) do capital. É preciso ter cuidado com este argumento que enfoca excessivamente nas mudanças do capitalismo: agrário ao industrial, do industrial ao pós-industrial; e se esquece do que permanece, ou seja, do capital como ser social objetivo, “automático”, “quase autônomo”, erigido pelo fetiche. Veja bem, sendo claro, uma coisa não deve impedir a outra. Tão ruim quanto à análise que só enxerga as mudanças no capitalismo, é a cegueira da que só enxerga a permanência. Venho insistindo desde a primeira nota que uma coisa não impede a outra. Que o entendimento dos limites da ação do Fora de Eixo não significa impedimento de diálogo, mas sim, que este deve ser crítico, fundamentado, reflexivo, que apresente os problemas da forma-valor, e vice-versa. Nenhuma destas lutas mais liberais, que estão aglutinando novos setores da classe média devem ser desprezadas, assim como, devemos ter em mente (ainda, sobretudo) a luta de classes. A questão é que o termo “classe” deve ampliar-se, torna-se negativo. Mas, esta questão pretendo abordar na terceira – e última – nota.

III

Pensando então naquela famosa história que dizia que o trem das novas tecnologias estava passando, e a esquerda ficou parada na estação. Diria que, o problema não é entrar neste trem (trem-bala, se preferirem), por que nele todos já estamos – querendo ou não. Pois bem, trata-se então de invadir, tomar de assalto, a cabine do maquinista, (que já não existe?) – virou autômato, diante dos mecanismos fetichistas (aqui a questão das classes precisaria ser debatido) –, e puxar imediatamente os “freios de emergência” (Walter Benjamin), para que possamos pular para fora e impedir sua marcha em direção ao abismo/progresso. 

Não se trata de “demonizar” a técnica, ao contrário de algumas leituras rasas, mas de entender que: a técnica como uma “força avassaladora”, sem estar a controle e a serviço dos homens, como sujeitos refletidos na história, que decidam como, onde e quando produzem, consumem, trabalham, enfim; vira autômato, volta-se contra seus próprios criadores. A técnica é possibilidade, mas cercada pelo fetiche (tanto em seu caráter objetivo, quanto subjetivo), ela se torna um valor em si mesmo, que só poderá nos levar a destruição, diante de “tanta potência”. A desumanização não vem da técnica e sim dos fins para os quais ela é empregada: a dominação da natureza e dos homens com vistas à acumulação de capital. Nas palavras de Adorno e Horkheimer no prefácio de 1947 a “Dialética do Esclarecimento”: “Se o esclarecimento não acolhe dentro de si a reflexão sobre esse elemento regressivo, ele está selando seu próprio destino. Abandonando a seus inimigos a reflexão sobre o elemento destrutivo do progresso, o pensamento cegamente pragmatizado perde seu caráter superador e, por isso, também sua relação com a verdade.”(grifos meus). Precisamos de práticas cotidianas que levem a vida para além das mediações da mercadoria/dinheiro, com a apropriação (coletiva) direta do nosso fazer. Por isto, não se trata de suprimir simplesmente a desigualdade, o assujeitamento, mas também a igualdade abstrata do valor.


Pontos que serão abordados na próxima - e última - nota: mais sobre a implacável ação do fetiche e a atuação do FdE (cada vez mais visível, com novos depoimentos), lutas negativas, o problemas das classes, a relação deste debate com a eleição francesa de 2008, e um pouco mais de debate teórico.
Fonte: Razão Crítica

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