julho 21, 2011

"A tal vontade política", por Bruno Cava

PICICA: "Tem gente que realmente acredita que ao cidadão de bem basta acordar pra trabalhar todos os dias, cuidar da família, respeitar a lei, ficar na sua e votar uma vez a cada dois anos. Não e não. O voto, na realidade, é um momento qualificado de uma atuação cotidiana que, no acúmulo e sinergia de todos, constitui a democracia. Daí a relevância das marchas de 2011 no Brasil, em si mesmas, como centelhas de uma outra percepção do que seja política. Talvez a recessão mundial de 2008-09, mais esse imenso fracasso do capitalismo, tenha, finalmente, despertado muita gente. Que, se não agirmos por conta própria, além de governos e partidos, não pode haver democracia real. Afinal, ainda segundo Maquiavel, “o povo é mais prudente, menos volúvel e, num certo sentido, mais judicioso que o príncipe.”"

A tal vontade política
Os governos cuja sorte depende da sabedoria de um só homem têm curta duração, porque sua virtude se extingue com a vida do príncipe, raramente seu vigor se restabelece com o sucessor.” – Maquiavel
Junto com correlação de forças, é uma das expressões mais banalizadas. Se a primeira tem sido usada para desculpar qualquer tomada de posição dos governos, a segunda incorre no erro simétrico. Não abriu os arquivos da ditadura? Falta de vontade política. Não realizou a reforma agrária? Falta de vontade política. Um Brasil Banda Larga foi neutralizado? Falta de vontade política. Fome na África? Falta de vontade política. E assim sucessivamente, à náusea, a vontade política como o principal problema.
Como se a ação política estivesse posta em função do arbítrio do titular do poder. Como se a decisão surgisse do nada, do firmamento das boas intenções diretamente à cidade dos homens, mediada pela consciência do governante, a única variável. Como fosse possível aplicar o dever-ser ao ser, realizando um possível idealizado. Como se a ação política, para ser eficaz, não estivesse vinculada a uma cadeia de causas e efeitos, numa determinada realidade histórica, numa matriz complexa de vontades, forças e estratégias. Basta o grupo no poder querer e zás, já é. Para quem reduz, como a grande imprensa, avontade política a essa platitude mistificadora, não se equivoca quem lhe sugere a correlação de forças como instrumento analítico.
O governante não tem vontade política. Para chegar ao poder, é obrigado a partilhar lençóis com todo o bloco histórico que o antecede e o condiciona, de mil maneiras abertas ou veladas. Uma vez no poder, se vê na contingência de negociar o tempo todo, para conservá-lo. A tratar com um espectro ideológico muito mais vasto do que o professado, inclusive na campanha eleitoral. Porque manter-se no poder implica recear e desbaratar conspirações e, por conseqüência, ser forçado a preocupar-se, sobretudo, consigo próprio, e a enganar a multidão mais do que a salvaguardar. Não há espaço para voluntarismo.
Quem confia a sua liberdade à vontade política dos governantes está prestes a perdê-la. Esperar vontade política já constitui erro de princípio. Não adianta votar no candidato ou partido X ou Y, se, no dia seguinte da posse, sentarmos no sofá achando que agora está resolvido. O cidadão que crê que só é cidadão na hora do voto vai decepcionar-se sempre. O transcorrer do mandato de seu candidato e partido não passará de uma inexorável desilusão, em relação a promessas e expectativas de campanha, e mesmo a uma acreditada consciência política. Esse desencanto acabará por incentivar a desmobilização e a paralisia teórico-prática e, por vezes, o refúgio amargurado dos “idealistas” na academia e seus rituais vazios.
Tem gente que realmente acredita que ao cidadão de bem basta acordar pra trabalhar todos os dias, cuidar da família, respeitar a lei, ficar na sua e votar uma vez a cada dois anos. Não e não. O voto, na realidade, é um momento qualificado de uma atuação cotidiana que, no acúmulo e sinergia de todos, constitui a democracia. Daí a relevância das marchas de 2011 no Brasil, em si mesmas, como centelhas de uma outra percepção do que seja política. Talvez a recessão mundial de 2008-09, mais esse imenso fracasso do capitalismo, tenha, finalmente, despertado muita gente. Que, se não agirmos por conta própria, além de governos e partidos, não pode haver democracia real. Afinal, ainda segundo Maquiavel, “o povo é mais prudente, menos volúvel e, num certo sentido, mais judicioso que o príncipe.”
Nenhum mandato é o ano zero da história. Na democracia representativa, não tem jeito. Todo mandato majoritário acaba viciado, atravessado por ambiguidades e conflitos, contradições e limitações. A questão reside em como o grupo no poder se apropria dessa situação pastosa e multicolorida e, a partir dela, consegue conferir um sentido libertador. Um sentido que é, antes de qualquer outra coisa, a subversão da própria matriz institucional conservadora em que se inscreveu quando fora eleito e decidiu jogar o jogo. Isso é possível? O debaterevolução x reforma incide aqui. Até que ponto é possível, com políticas governamentais, por dentro do poder, por dentro do regime capitalista, é possível desativar instituições tão conservadoras e reacionárias?
Para Slavoj Zizek, “se você não tem idéia sobre o que colocar no lugar do estado, não tem o direito de subtrair-se e retirar-se do estado: a verdadeira tarefa consiste em como fazer o estado funcionar de um modo não-estatal.” Não se trata, portanto, de tomar distância do estado e apenas fortalecer o movimento,ou abraçar o estado como a via principal da mudança, seja chegando a ele pelas eleições ou outras vias. A proposta do filósofo esloveno é radicalmente transformá-lo por dentro e por fora, “mudando a sua relação com a base”.
Por isso, mais que rupturas utópicas a partir da vontade política, primeiro há todo um trabalho de construção democrática, de empoderamento da base, de quem realmente é mais judicioso e menos volúvel e, por conseguinte, pode sustentar mudanças duradouras e profundas. Nesse sentido, políticas que disseminem condições concretas de exercício da cidadania, como: renda universal, mídia multitudinária, inclusão racial, fortalecimento de uma cultura de resistência, difusa e articulada em rede, entre outras.
Em vez de vontade política, é preciso buscar a força política. O príncipe só governa contra uma ordem social conservadora quando reúne forças para tal, de modo contínuo. Esse força não vem somente das eleições, seja qual for a quantidade de votos. Tampouco de pesquisas de popularidade, na medida em que, ante uma imprensa antidemocrática, a opinião pública muitas vezes está contra o povo. E sim de uma permanente mobilização das forças vivas sociais, de revolta e indignação, a partir dos cidadãos e seus movimentos e marchas e mídias livres, que determinem e mesmo imponham as políticas de (seu próprio) empoderamento.
Neste contexto, mesmo votando em certo candidato e certo partido, como opção entusiasmada ou recalcitrante, nada mais coerente do que, uma vez governo, fazer-lhe críticas, ainda que severas, e construir por fora dele e mesmo contra ele, em tudo aquilo que ele não demonstrar força política. E exatamente para forçar-lhe a agir no sentido libertador, contra todas as injunções e ameaças, contra todo o lastro histórico de exclusão e desigualdade. Aí consiste, quem sabe, a verdadeira virtude política do governante: saber utilizar-se e mesmo concitar essa força social, navegando nas ambiguidades, atuando nessa brecha fugidia entre a vontade política e a correlação de forças.
Para pegar ainda outro tópico do pensador florentino, somente o tumulto da multidão, a imanência conflitiva da democracia real, esse drama de revoltas e indignações, somente aí pode haver vontades radicalmente políticas e transformadoras, somente aí se explicam o atrevimento desmedido de uma Antígona, a determinação férrea de um Lênin, a crença inabalável de um São Paulo.

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