agosto 24, 2011

"“Poucos jornalistas hoje são honestos”, diz Miltom Hatoum" (Fazendo Media)

PICICA: "Para ele, o grande problema do baixo índice de leitores no Brasil e a quantidade de analfabetos no país está umbilicalmente relacionado à escola pública e ao projeto educacional interrompido pelo golpe militar em 1964. Em relação à mídia, sua visão é de que está cada vez mais difícil exercer um jornalismo independente por dentro das corporações. Confira a entrevista, que também fala sobre literatura latioamericana."


“Poucos jornalistas hoje são honestos”, diz Miltom Hatoum




O escritor Miltom Hatoum, na Livraria da Travessa, no Rio de Janeiro, durante a 7º Quinzena de Literatura Latinoamericana. Foto: Eduardo Sá.

Um dos expoentes da literatura brasileira contemporânea, Milton Hatoum, amazonense que vive em São Paulo, fala ao Fazendo Media o que pensa sobre a mídia e literatura brasileiras. Ele é autor de quatro romances premiados, sua obra foi traduzida em 10 línguas e publicada em 14 países. Seu primeiro livro, Relato de um certo Oriente, ganhou o prêmio Jabuti em 1989.


Para ele, o grande problema do baixo índice de leitores no Brasil e a quantidade de analfabetos no país está umbilicalmente relacionado à escola pública e ao projeto educacional interrompido pelo golpe militar em 1964. Em relação à mídia, sua visão é de que está cada vez mais difícil exercer um jornalismo independente por dentro das corporações. Confira a entrevista, que também fala sobre literatura latioamericana.


Gostaria que você, como escritor, falasse sobre a literatura brasileira contemporânea no sentido da relação do escritor com a política?


Eu não consigo ler todos os livros que saem, mas a questão da política é que a minha geração cresceu sob a ditadura, não nasceu sob a ditadura. Toda a minha juventude, por exemplo, foi vivida no regime militar. Do ano do golpe, quando eu tinha 12 anos, até o dia que eu saí para morar no exterior, em 1979, foram 17 anos de vida no regime militar. Então alguma coisa da minha militância, da minha juventude, eu tentei reconstruir nos meus romances. Meu primeiro romance quase não tem relação ao regime militar, o Relato de um certo Oriente, mas os outros sim. Mas meus romances não são romances políticos. Eu acho que no Dois irmãos e Cinzas do norte, a política aprece como plano de fundo. Mas não há um gesto humano que não seja político, é difícil dissociar a vida das pessoas da política, no sentido amplo. Porque a nossa vida é o tempo todo um questionamento sobre as coisas, e na medida em que você critica, e a palavra crítica tem a ver com crise no seu étimo latino, você está fazendo um gesto político.


Eu acho que há bons romances políticos no Brasil, e Reflexos do Baile, de Antônio Callado, é um deles. É um dos romances políticos que mais me impressionaram no Brasil. E há também outros grandes romances políticos na América Latina, talvez o mais ambicioso seja Conversa na Catedral, do Vargas Llosa. É um grande romance político na época em que ele era um escritor bem mais à esquerda do que é hoje. Mas há também grandes romances históricos que apontam para a política, como O século das luzes, do [Alejo] Carpentier, e O Reino deste mundo, dele também. Mas no Brasil, curiosamente, não há muitos romances sobre a ditadura. Eu acho que há mais relatos jornalísticos, de depoimentos, ou de ficção que mais parece um jornalismo adaptado que um romance propriamente dito. Acho que falta um romance sobre aquela época, e é difícil escrever um romance político porque você corre o risco de escrever um romance ideológico, tomar partido.


Mas você se referiu ao Callado e ele era um cara considerado de esquerda, tomava posições. O Quarup, por exemplo, também é um romance político.


Mas Reflexos do Baile não é um romance que toma partido, é um romance que interroga o tempo todo e com muita ironia inclusive. Para mim é o melhor romance dele, melhor que o Quarup, que tem altos e baixos, podia ser mais conciso. Tem também um traço ideológico que é um pouco datado talvez, embora seja um romance com muito interesse. Mas Callado foi o jornalista que mais se aproximou do grande romance político, mas eu falo que é difícil porque se for uma literatura com uma simpatia política ela empobrece. Tudo que é explicativo na arte fica empobrecido. Então, trabalhar com as contradições sem cair no viés ideológico é um desafio.


Por que você diz que falta ao Brasil um intelectual e jornalista honesto como Antônio Callado?
Porque poucos jornalistas hoje são honestos. De um modo geral o jornalismo virou também uma corporação, então é difícil, muitos jornalistas exercem uma auto censura. O politicamente incorreto só serve a direita, então é preciso pensar nisso. Mas há vários jornalistas, por exemplo, no Oriente Médio, que é onde eu vejo o caráter dos jornalistas, como o Robet Fisk, que são um poço de honestidade. Agora, todos aqueles americanos, toda a cobertura americana, é completamente manipulada e tendenciosa. E os jornais brasileiros compram muitas matérias de institutos americanos de direita, para quê serve isso? Isso não é jornalismo, é opinião da direita americana, pentágono, não é jornalismo.


Você já traduziu o intelectual Edward Said, que em seu clássico Orientalismo critica muito a abordagem da mídia em relação ao oriente. Qual o seu ponto de vista pessoal sobre isso?


Eu acho que ele escreveu um ótimo livro sobre isso chamado Culpando as vítimas, sobre como o jornalismo dito ocidental manipula as notícias do Oriente Médio, sobretudo ao que se refere à questão palestina. Isso é gritante, porque basta pensar hoje quando se fala dos ditadores árabes, que de fato o são e sempre foram aliados dos Estados Unidos e dos países europeus. Então, o que estão fazendo com a Líbia não fazem com a Arábia Saudita, por exemplo, nem com o Qatar e a Jordânia, países autoritários, monarquias corruptas.


O calcanhar de Aquiles dos jornalistas que tratam assuntos internacionais é a questão palestina. Eu acho que ali é uma ocupação tipicamente colonialista movida por um estado beligerante e ocupante, em conluio com os colonos fanáticos que têm uma leitura totalmente literal e desvirtuada dos textos sagrados. É uma questão de injustiça, é um país que podia conviver em paz com os palestinos. Mas agora foi protegido pelos Estados Unidos, então é como se as vítimas palestinas valessem menos, não fossem humanas. Por que os governos do mundo ocidental não se revoltaram com a última guerra de Gaza, que matou 1.400 palestinos, dos quais 300 crianças? Acho que é uma grande injustiça da mídia, mas grande parte dela manipula mesmo.


Na história da Academia Brasileira de Letras, tirando o Guimarães Rosa, quase todos os escritores eram jornalistas. Você se veria trabalhando na mídia brasileira como repórter, com seus pontos de vista mais críticos?


Eu acho o jornalismo crítico importante, o que dá crédito ao leitor é falar a verdade. Na medida em que o jornalista é cúmplice do poder, ele já não é mais um crítico desse poder, da realidade. Hoje em dia é difícil você ser um jornalista independente, a ponto de criticar não só a direita mas também a esquerda. Porque ela também comete excessos, é legítimo, por exemplo, criticar Cuba. Há censura em Cuba, não há liberdade de imprensa, mas se você se fixar só nisso eu acho um erro: quem é crítico obsessivo de Cuba parece que não tem um olhar crítico para as brutalidades, intervenções e a desfaçatez de poderes de outros países. Para dizer a verdade você tem que criticar o poder tanto do império quanto dos governos de exceção. Isso para mim é o que o Edward Said fazia, e foi por isso que eu traduzi interpretações do intelectual.


"Hoje em dia é difícil você ser um jornalista independente, a ponto de criticar não só a direita mas também a esquerda", afirma Hatoum. Foto: Eduardo Sá.

Como você vê essa ascensão da tecnologia entre a internet e o livro?


Eu me sinto um dinossauro, sou da época do livro e jamais viveria sem uma livraria. Seria deprimente viver num mundo sem livros. Há uma diferença muito grande entre o livro eletrônico e o livro de papel, uma diferença até sensorial, visual. Eu não sou contra a tecnologia, mas se ela foi feita para acabar com o livro de papel eu acho execrável. Não tenho nenhum problema em dizer que abomino você terminar com um objeto que simbolizou uma cultura durante 500 anos. Eu acho que os dois podem conviver.


No ponto de vista de criação você acha que influi no processo?


Eu acho que não. O Kafka será o Kafka em qualquer suporte, seja em papel ou na tela. Os americanos conseguem inventar coisas incríveis, mas também conseguem inventar uma tecnologia sofisticada até para destruir. Então se a tecnologia for destrutiva, eu acho abominável. Aliás, foi o único país que testou a bomba atômica no planeta, destruiu duas cidades.


E hoje são eles os que mais criticam os outros países que têm bombas atômicas…


Eles têm o maior arsenal de bombas nucleares do mundo. E os outros países não podem ter, como o Irã, o oriente, mas eles têm. Isso eu acho que é uma forma de dominar o mundo. Mas voltando para o livro eletrônico, e é bom frisar isso, na Europa não se fala nisso. Na França, Alemanha e outros países é uma coisa que não entrou com a força que entrou nos Estados Unidos. Então eu acredito que os livros eletrônicos vão servir muito para o leitor de best sellers, o leitor de aeroporto, mas não acredito que alguém que queira ler Dostoievski ou Proust prefira. Você está falando com alguém que escreve a mão ainda.


Quem é o melhor escritor da América Latina?


Nos anos 70, quando eu li os grandes contistas latinoamericanos, eu percebi que o Machado de Assis era, sem nenhum ufanismo ou nacionalismo literário, o maior escritor latinoamericano do século XIX. Num momento em que a literatura hispanoamericana ainda estava mais imbuída dos romances que queriam valorizar o próprio país, o Machado já tinha dado um salto para o século XXI.


Como é escrever num país com grau tão alto de analfabetismo?


As razões de ter um público de qualidade reduzido ou escasso eu acho que tem a ver com a escola pública. Essa é a minha resposta mais direta, mas há muitas outras razões que eu não conheço. A interrupção que houve na escola pública, e estou pensando em Darcy Ribeiro e Anísio Teixeira, no começo da década de 60. Nessa interrupção e na abolição da grade de ciências humanas na grade curricular, o que houve com essa geração que cresceu nos anos 70 e 80, a migração para a escola particular, quando na minha época escola particular era um desprestígio. Houve aí uma lacuna, e isso aconteceu no Chile, na Argentina, Uruguai, nas ditaduras todas. Porque a primeira coisa, e nisso os militares foram inteligentes, eles foram brutais nessas questões da educação pública. Até hoje o meu quase conterrâneo Jarbas Passarinho canta de galo, acha que eles fizeram muito bem. Fez uma cachorrada, criou o AI-5, toda essa brutalidade.


Mas eu acho que há uma diferença grande entre o Brasil e a Argentina, por exemplo. Outro dia eu li uma entrevista da Biatriz Sarlo, da crítica argentina, e dizia que há cem anos atrás já existia uma rede de bibliotecas públicas incrível em qualquer vilarejo na Argentina. Eu fiquei surpreendido quando houve uma compra de 1.200 exemplares do meu romance em espanhol nas bibliotecas públicas da Argentina. Pô, é o sonho do escritor, você ter o seu livro numa biblioteca pública para que os jovens possam ler e ter acesso. Apesar do populismo e da baixeza política latinoamericana, a educação pública na Argentina funcionou. E apesar da interrupção da ditadura, ainda existe um público leitor considerável lá, ao contrário do Brasil. Talvez seja uma desesperança que passa pela idade, porque você fala o tempo todo da educação pública e os avanços são tão pequenos, quase imperceptíveis… Mas uma coisa deve acontecer porque o Saramago é um best seller no Brasil, e ele não é um escritor fácil, talvez haja um encanto da língua portuguesa arcaica.


E a juventude nesse contexto da leitura?


Hoje o jovem corajoso é o que abre O Grande Sertão Veredas e mergulha, vai embora. É o jovem que abre O Processo do Kafka ou Luz em Agosto do Faulkner e vai até o fim, esse é um jovem corajoso. É preciso se desarmar das imagens da internet e toda a parafernália da TV, então não é o livro eletrônico. A figura desse leitor, em qualquer circunstância, esse leitor recluso, ensimesmado, que se concentra num livro, isso às vezes é desencorajador porque é cada vez mais difícil de encontrar. Para a minha geração a leitura era uma atividade quase que predominante. Eu penso na Manaus dos anos 60 que não havia Tv, a minha infância e minha primeira juventude as pessoas liam, e liam nas escolas. As bibliotecas também eram boas, esse contato com o livro era um contato natural. E nos últimos 10 anos é mais difícil, eu olho para  as pessoas e todos estão completamente enlouquecidos e ninguém mais está ligando para a literatura.

Fonte: Fazendo Media

Nenhum comentário: