janeiro 24, 2012

"Concordia. Quando o grande come o pequeno", por Astrid Lima


Concordia. Quando o grande come o pequeno


PICICA: "Em um certo sentido é uma perfeita metáfora italiana, Um navio que afunda, um capitão que festeja, um sistema humano imóvel."

Por Astrid Lima

No livro de ficção científica, Mortal Engines, o autor descreve um futuro pós apocaliptico onde as cidades se movem pelo planeta à procura de outras cidades para serem engolidas. Essas estruturas autônomas consomem tudo o que encontram pelo caminho, aplicando o princípio de que cidade grande come cidade pequena. No livro essa realidade é chamada de darwinismo urbano.
Observando as dimensões do navio de cruzeiros Concordia, naufragado a poucas centenas de metros da ilha do Giglio, na costa italiana, a comparação com as cidades de Philip Reeve é inevitável.
E os números são impressionantes. O Concordia é o maior navio de cruzeiros italiano. Tem 290 metros de comprimento, 52 metros de altura e quase 40 de largura, 1500 cabines e pode hospedar 3.700 mil passageiros. A tripulação é de 1.200 pessoas. Com todo o conforto e ofertas de diversão incluídos como casino, discoteca, tela gigante de projeção, piscinas, saunas, salões de tratamento de beleza, ginástica, cobertura de cristal semi-móvel. Atrações e distrações que relegam em segundo plano os itinerários turísticos da terra firme.
Um verdadeiro mundo à parte. Uma pequena cidade flutuante que obedece às rígidas leis de navegação mas que mantem um código mais ou menos informal que nos últimos dias têm revelado um protocolo marinheiro tão incrível quanto imprudente.
Mas vamos por passos. Os cruzeiros promovidos pela sociedade Costa não são para turistas milionários. Com poucas centenas de euro é possível realizar a viagem dos sonhos pelo Mediterrâneo, festejar o aniversário de casamento, a aposentadoria tanto esperada ou a lua-de-mel perfeita.
E é gente comum, os clientes da companhia que não é mais italiana, comprada 10 anos atrás pela multinacional estadunidense Carnival Corporation & Plc. Uma classe média alargada típica da Europa que conseguiu construir no pós-guerra uma real distribuição de renda. Então advogados e empresários podem dividir a mesa ao lado de um professor de segundo grau em um dos restaurantes de duvidosa decoração Concórdia.
Ao que parece era um hábito desses navios “fare l’inchino” (abaixar-se para agradecer) às ilhas e cidades costeiras por onde passavam. O apito do navio era recebido com a saudação de moradores, barcos e turistas na terra. Era um jogo de mútua colaboração para o deleite do turismo.
Mas a excessiva segurança provocada pelo costume, uma certa arrogância criada pelo poder que investe um capitão e, ao que tudo indica, uma série de ausências de decisões transformou um acidente anunciado em uma tragédia.
E, detalhe alucinante, o alarme partiu não do capitão ou da tripulação mas foi dado por uma das turistas que, sentindo o impacto, seguido pelo blackout e pela economia de informações, chama a filha, pede que ela alerte a policia que, por sua vez, chama a Guarda Costeira.
Na era da internet, das fotografias baixadas em tempo real, das filmagens amadoriais feitos com o celular é possível construir a cronologia dos eventos que provocou o afundamento de um dos maiores navios do mundo, praticamente na praia.
E esse foi o primeiro erro. Passar numa área perigosamente próxima da ilha, com rochas perfeitamente indicadas nos mapas náuticos e com uma profundidade de poucos metros. Naquele trecho nem mesmo as lanchas da Guarda Costeira navegam.
O capitão queria fazer uma homenagem ao chef que é da ilha de Giglio e a um capitão aposentado, velho amigo. As informações veiculadas dizem que o navio mantinha uma alta velocidade desobedecendo as regras para os trechos de mar com obstáculos. Para ter uma idéia o máximo que pode atingir o Concórdia é 23, 2 nós e no momento do impacto ia a 16. Uma freada que criou os primeiros ferimentos entre os passageiros, boa parte nos restaurantes.
Por uma inteira hora a informação dada era que o navio havia um problema elétrico e, como demonstrado no vídeo, os tripulantes diziam aos turistas de estarem tranquilos e voltarem às próprias cabines:
Segundo as testemunhanças desses dias o capitão teria ficado 40 minutos no telefone com a base de emergência da companhia naval sem dar nenhum tipo de instrução à tripulação.
Algumas especulações apontavam para a necessidade de uma estrategia que evitasse de pagar seguros salados. Outros ainda insistem sobre o estado de sobriedade do capitão que teria bebido em companhia de uma jovem moldava - funcionária/bailerina de Costa Crociera - até poucos minutos antes que subisse ao timão.
Lembro do Zenzão, um barco regional de um caro amigo que viaja pelos rios amazônicos e que, entre outras coisas, tem um sonar para monitorar o fundo dos rios. No Concordia seja gps que outros aparatos de navegação teriam sido desligados. O capitão queria fazer uma façanha. Demonstrar que o gigante dos mares era domado.
O resto é história mais ou menos acertada: a tripulação decide de prender o comando, parte das “scialuppe” de salvamento que poderiam ter sido armadas nos dois lados antes que o navio tombasse, em boa ficaram bloquedas. Os salvavidas distribuidos inicialmente eram para medidas de crianças. Cria-se confusão entre as prioridades de socorro para crianças, idosos, pessoas com deficiências físicas
Com a cadeia de comando quebrada, coordenar-se com o socorro externo foi dificil. A registração de uma telefonada entre um comadante da Guarda Costeira e o capitão do navio é dramática. O comandante com um tom entre exasperado e desesperado gritava ao capitão que tornasse à nave, que o seu lugar era ali, coordenando a evacuação. “Volta pro navio, porra!” é uma das frases que ficaram famosas.
Mesmo quem não entende o italiano pode perceber a voz ausente do capitão Schettino e aquela do comandante Di Falco da Guarda Costeira. E sim, Schettino simplesmente havia abandonado a própria nave. Uma desonra inaceitável para os homens de mar.
Nessa odisséia vão citados os tripulantes que mesmo tendo cargos menores (garçons, cozinheiros, músicos, o médico de bordo e até mesmo o vice prefeito da ilha) tiveram um papel fundamental para evitar uma catástrofe agora maior, arriscando a própria vida para salvar aquela de 3 mil pessoas.
Neste momento oficialmente as vítimas são 15 e 17 ainda estão desaparecidas. A atenção agora é em relação ao desastre ambiental, aos óleos e outras substâncias altamente poluentes. Com a chegada do mal tempo o outro risco é que o navio desabe no precipício de 80 metros.
Algumas lições nacionais, e não só, já podemos tirar dessa tragédia.
Em um certo sentido é uma perfeita metáfora italiana, Um navio que afunda, um capitão que festeja, um sistema humano imóvel. É impossível não pensar aos 20 anos da era berlusconiana, à dramática situação de destruição de um pais encantado por um timoneiro obcecado pelo/por poder.
Mas essa grande cidade flutuante que vende sonhos a bom preço é uma nota importante também para pensar sobre avidez desenvolvimentista em geral e, em particular, aquele baré. Nos navios que circulam cada vez maiores nos nossos rios transportando pessoas e mercadorias - uma vale a outra - e no potencial desastre ecológico e humano que representam.
É uma advertência sobre o poder, a sua insensatez, falsa segurança e covardia. Que na hora do pega pra capá é o primeiro a escapar.
É uma lição que demonstra que ser “grande”, “maior”, “super” não é sempre a medida mais sensata.
É uma nota de sos para o encontro das águas, todos os nossos encontros de águas.
“O mar não perdoa a arrogância dos homens”, lembra o médico de bordo. E nem o rio.
No lugar do gigante das águas eu, na dúvida, prefiro o Zenzão.

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