fevereiro 26, 2012

"O Artista de Michel Hazanavicius", por Leandro Calbente

O Artista de Michel Hazanavicius
PICICA: "Descartado pela indústria e abandonado pelo público, o grande George Valentin começa a se transformar num astro do passado. É nessa perspectiva que o filme pode ser visto como uma bela metáfora sobre o atual estágio dos embates em torno da cultura do compartilhamento que se formou na internet. Ela também aparece como uma grande inovação tecnológica, capaz de afetar não apenas a forma de produção artística, mas também o conteúdo desses artefatos culturais. Só que nesse caso, o mais significativo é a forma como essa transformação afeta os próprios pilares da indústria cultural."
No centro da trama de O Artista existe uma reflexão sobre a inovação. Esta aparece na resistência de um consagrado ator do cinema mudo diante do surgimento dos primeiros filmes falados. George Valentin consolidou uma carreira de sucesso no cinema dos anos 20, dominando com maestria a gramática de um cinema sem fala, no qual o jogo corporal era fundamental para a construção do sentido da cena. Porém, sua posição de estrela é ameaçada com a introdução de novas técnicas cinematográficas. O som não é apenas uma mudança tecnológica na forma dos filmes, mas uma profunda reorientação na forma mesma de atuação e manifestação artística. O corpo perde seu papel privilegiado na construção do sentido, sendo ultrapassado pela fala e seus discursos. Aquele que dominava a gestualidade do cinema mudo se depara com a ameaçadora necessidade de reaprender as regras da arte. Valentin percebe a ameaça, mas incapaz de reagir diante dela, escolhe o caminho mais simples: a recusa. Para isso, investe todos seus recursos na produção de um novo filme mudo, acreditando que sua figura estelar bastaria para atrair o público e o sucesso. O problema de Valentin é que ele não percebe o quanto sua posição de estrela é fulgaz, compondo apenas uma pequena peça na engrenagem de uma indústria cultural em plena formação. Seu estúdio pode facilmente dispensá-lo. A nova tecnologia cinematográfica é acompanhada pela criação de novas estrelas. A recusa diante da inovação não significa um gesto de resistência, mas simplesmente a anulação de qualquer potência criativa do artista. Descartado pela indústria e abandonado pelo público, o grande George Valentin começa a se transformar num astro do passado. É nessa perspectiva que o filme pode ser visto como uma bela metáfora sobre o atual estágio dos embates em torno da cultura do compartilhamento que se formou na internet. Ela também aparece como uma grande inovação tecnológica, capaz de afetar não apenas a forma de produção artística, mas também o conteúdo desses artefatos culturais. Só que nesse caso, o mais significativo é a forma como essa transformação afeta os próprios pilares da indústria cultural. Os grandes conglomerados tradicionais de conteúdo são desafiados por novas empresas, ligadas à internet e ao compartilhamento de informações, que passam a controlar parcelas significativas dos ganhos que normalmente eram aferidos nos direitos autorais de filmes, músicas e livros. Basta ver a divulgação recente dos lucros estrondosos que foram alcançados por sites como omegaupload. Diante dessa inovação tecnológica, vemos também inúmeros artistas que se portam como profetas do passado, se manifestando contra a livre circulação da cultura na internet. Da mesma forma que o desesperado Valentin, esses artistas vociferam contra as novas formas de produção e circulação, lembrando sempre o quanto isso ameaça a “verdadeira” arte e como isso poderá num futuro próximo matar a literatura, a música ou o cinema [1]. São como velhas engrenagens de uma máquina que já está parando de funcionar, mas insistem em prolongar o máximo da agonia dessa velha forma de fazer arte. Nesse gesto, o que conseguem é apenas esvaziar as possibilidades de luta e de abertura de outros caminhos para a produção cultural. É claro, pode-se facilmente colocar uma objeção nesse argumento. Nesse caso, precisamos recuperar outra figura importante do filme, a nova cara do cinema falado, Peppy Miller. Ela também se torna uma estrela do cinema, substituindo as velhas figuras do cinema mudo, que se recusam ou se mostram incapazes de se adaptar ao novo mercado. Por que, então, ela não é apenas uma nova engrenagem no maquinário da indústria cultural, tão substituível quanto as peças anteriores? Sim, ela pode até ser, mas no interior desse maquinário que se abrem novas possibilidades de resistência e inovação. A captura nunca é completa. O desdobramento final do filme segue justamente nessa direção. É Peppy que consegue dobrar as estruturas da indústria cultural e realizar uma espécie de ligação entre o passado e o futuro do cinema, possibilitando o retorno de Valentin às telas do cinema. Esse retorno não assume a forma de uma mera transposição do velho, num gesto inautêntico e vazio. Na realidade, o que acontece é uma verdadeira transformação da forma de fazer cinema, possibilitando um dobrar, ainda que temporário, das rígidas regras de produção industrial. Nada mais atual. A cultura do compartilhamento, com suas possibilidades de superar, ainda que momentâneas, os rígidos controles da indústria cultural, é o campo de luta por excelência da arte contemporânea. É nesse campo que as possibilidades de inovação e transformação se manifestam com mais vigor e força. Por isso, que o lamento nostálgico daqueles que querem apenas reviver o mundo moribundo dos direitos autorais é tão nefasto e empobrecido.
[1] Sobre esses lamentos, não custa lembrar a incrível resposta que uma escritora espanhola recebeu quando disse que pararia de escrever por causa dos seus livros compartilhados na internet. O texto em português, você encontra aqui, recomendo a leitura:http://calopsitaescapista.wordpress.com/2012/01/28/957/

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