abril 30, 2012

"Dilma: quando o consenso pisa na fantasia", por Bruno Cava

PICICA: "Os dilmistas admitem que nem tudo é perfeito. Mas mantêm uma crença granítica que o projeto de Brasil, no cômputo geral, é esse mesmo. Não há alternativa mais à esquerda. Megabarragens, mega-aeroportos, megaeventos, megainvenstimentos, enfim, megacoisas têm de ser feitas para a gente chegar lá. A incontinência quantitativa recheia as mensagens políticas, cada vez mais publicitárias. Dilma aparece como a pessoa capaz de fazer, decidida a fazer, e que faz. Os dilmistas confiam quase cegamente no juízo da presidenta. Se ela erra, é porque estaria mal assessorada, porque teria sido enganada por conselheiros mal-intencionados, por jornalistas mentirosos. A esquerda brasileira tem coração eslavo. Acredita na bondade última do czar*. Como duvidar do compromisso ideológico de alguém com a trajetória da presidenta? A convicção redime automaticamente qualquer ato da liderança e justifica a militância acrítica, convertendo todos os problemas numa primária aritmética de correlação de forças.
 
Dilma: quando o consenso pisa na fantasia


Poucas vezes um governo reuniu tamanho consenso ao redor de si. O governo Dilma surfa no otimismo nacional. Incensada pela grande mídia, paparicada por chefes de estado, premiada, admirada, a presidenta está com a bola toda. Seu modo de governar enfatiza a eficiência, a ordem, a capacidade gestora, a intolerância diante da corrupção, da leniência, do atraso, do mau funcionalismo. Dilma é daquelas pessoas que olha para a frente e anda em linha reta. A única fantasia digna da responsabilidade que assumiu é a casaca de general. A passo firme, sabe pra onde vai e ai de quem se colocar em seu caminho. Não tem muita elucubração de intelectual, é hora de realpolitik: o Brasil tem de continuar crescendo, ocupar a cadeira no rol de grandes nações, distribuir renda, incluir todos em seu projeto social e econômico.  Além (ou aquém) do governo Lula, Dilma foi abraçada pela velha classe média, se rodeou ainda mais de um peemedebismo por assim dizer “sociológico”, e não mexeu com as bases políticas estruturadas pelas igrejas evangélicas, — tudo isso em detrimento da relação com os movimentos sociais e das lutas concretas. Os 64% de ótimo-bom chancelam a combinação de sucesso, confirmada matematicamente também pelos indicadores do IBGE, IPEA e BC.

Os dilmistas admitem que nem tudo é perfeito. Mas mantêm uma crença granítica que o projeto de Brasil, no cômputo geral, é esse mesmo. Não há alternativa mais à esquerda. Megabarragens, mega-aeroportos, megaeventos, megainvenstimentos, enfim, megacoisas têm de ser feitas para a gente chegar lá. A incontinência quantitativa recheia as mensagens políticas, cada vez mais publicitárias. Dilma aparece como a pessoa capaz de fazer, decidida a fazer, e que faz. Os dilmistas confiam quase cegamente no juízo da presidenta. Se ela erra, é porque estaria mal assessorada, porque teria sido enganada por conselheiros mal-intencionados, por jornalistas mentirosos. A esquerda brasileira tem coração eslavo. Acredita na bondade última do czar*. Como duvidar do compromisso ideológico de alguém com a trajetória da presidenta? A convicção redime automaticamente qualquer ato da liderança e justifica a militância acrítica, convertendo todos os problemas numa primária aritmética de correlação de forças.

No caso do Ministério da Cultura, por exemplo, vários ativistas insistem em despender esforços para entender o que se passa na cabeça de Dilma; como convencê-la, por dentro do governo, do erro que é Ana de Hollanda; como mostrar por A + B dos despropósitos dessa gestão diante das realizações de outrora, no governo Lula. Ora, passados um ano e quatro meses tentando “derrubar a ministra”, — sob o assentimento quase paternal da grande imprensa, — será que esses ativistas não conseguem perceber que se trata de um subproduto da política do governo e do desenvolvimentismo dilmista, e não uma falha contingente? Analisar intenções neutraliza a capacidade de análise. A rigor, examinar o foro íntimo, a esfera de convicções e intenções de uma pessoa, é tão inútil quanto tentar descobrir o que se passa na cabeça de um caranguejo.

É, no mínimo, paradoxal. Com a crise, os governos da Europa e Estados Unidos têm por pesadelo virar algo como o Terceiro Mundo. O grande medo incutido nas populações estaria na alta civilização ocidental “regredir” à condição de sociedade favelizada, violenta e extremamente desigual. Esse medo preenche o tecido social de pulsões xenófobas e racistas, chocando mais uma vez o ovo da serpente. Mas até filósofos mais radicais derrapam ao equiparar brasilianização com favelização. A esquerda européia, com raras exceções, simplesmente não enxerga a potência gerada na América Sul, com seu devir de raças e sua antropofagia, principalmente na década passada. Foi necessária uma mobilização geracional muito além da Esquerda para que a Praça Tahrir, a mais árabe das revoluções, pudesse chegar a Madri, Londres e Nova Iorque. O devir-sul do mundo contagia e acaba se afirmando, apesar das barreiras, desdéns e miopias de partidos e grupos organizados da esquerda. Por outro lado, igualmente míope e desdenhoso, o governo Dilma se limita a pretender ser como o Primeiro Mundo. O projeto de Brasil é chegar lá, no futuro primeiromundista, no exato momento histórico em que esses regimes capitalistas fracassam a olhos vivos. Como se o planejamento de Brasil e brasileiro, — um projeto econômico e antropológico, — estivesse orientado à Europa e ao europeu de cinquenta anos atrás, desconsiderando toda a dinâmica da crise global. Enquanto surgem novos processos e subjetividades, novas bases materiais para ousar o máximo existencial, o modelo dilmista reproduz a mesma lógica economista e desenvolvimentista, uma racionalidade que já é passado. O norte não quer ser o sul e o sul quer ser o norte, enquanto todo o problema talvez esteja exatamente em querer ser como o norte.

O mal do consenso costuma ser a falta de imaginação.
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* Devo o insight ao amigo Hugo Albuquerque, do Descurvo, que passou um agradável fim-de-semana no Rio, entre noites de boemia e longos papos eslavófilos. O Hugo é um blogueiro franzino, mas tem uma Rússia dentro de si.

Fonte: Quadrado dos Loucos

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