abril 13, 2012

"A fantasia do desenvolvimentismo", por Bruno Cava

A fantasia além do desenvolvimentismo
 


PICICA: "Se os tijolos completam a parede da burrice mais convencional e de toda a mediocridade circundante, este é um tempo-chave para poetas, filósofos e cineastas. Para a húbris de quem não se adapta. E que saibam atirar pedras, pois a fantasia também veste botas."

Nos tempos de Lula, se ouvia que a tônica do governo era a mudança. Veio Dilma e essa deixou de ser a palavra que melhor define. Agora é crescimento. Ouve-se o tempo todo a palavra crescimento. Continuar crescendo se tornou quase uma obsessão  nas falas da presidenta, ministros e apoiadores.

A impressão é que o governo Dilma se guia por uma prancheta, alimentada de dados pelo Banco Central, IBGE e IPEA, e a partir dela aplica uma equação de primeiro grau. Basicamente: a gente aumenta o PIB em x % ao ano, paga as contas, sustenta alguma agenda social e administra, com eficiência, o que sobrar. Assim, a gente vai tirando o país do atraso e leva os milhões que faltam à classe média. E vai se reelegendo com os indicadores, pois o projeto é de longo prazo. Em 20 anos, seremos um país de primeiro mundo, respeitado lá fora e digno de orgulho aqui dentro. Eis o caminho. E conhecido o caminho, o caso é acabar com a corrupção, a ineficiência e o amadorismo, os nossos maiores problemas. Ou seja, problemas técnicos. Nada que uma gestão honesta e trabalhadora, determinada a superar o passado, não possa resolver. A política está resolvida no principal. Este é um governo sério, firme, tem uma boa equipe, e vai se aliar com quem for preciso contanto mantenha o controle global sobre o navio. Não somos intransigentes,  e sabemos fazer política como tem de ser feito, na correlação de forças. Não há alternativa à esquerda.

O discurso mais arcaico se conjugou com o mais futurista. O milenarismo do Brasil Eldorado, — utópico como Brasília e tão antigo quanto os portugueses da Ordem de Cristo, — caminha de mãos dadas com o ímpeto modernizante do velho positivismo, seja ele medioclassista-udenista, economicista-cepalino ou socialista-estatista. Dentro da fórmula mestre, tem espaço para a diversidade, a sustentabilidade, para o politicamente correto e a cultura como perfumaria, — desde que não se conteste o principal. Fora da fórmula, se é classificado como fora do tom, amador, fantasioso, anacrônico, pífio — ou simplesmente criminoso e, no limite, terrorista. Sucede um tom com conotações morais e moralizantes que define o discurso, a prática e a postura do governo e do que o governo espera dos cidadãos. É a antropologia do brasileiro piccolo-piccolo-borghese, que acorda cedo e paga os impostos e deseja o melhor para os filhos e acha o suprassumo do engajamento ético indignar-se com os políticos que roubam (e isto é o máximo que consegue elaborar no escasso tempo de vida livre). Aos novos brasileiros em suas breves ascensões sociais, deve-se confiar no governo, e trabalhar, trabalhar, trabalhar. Um republicanismo cívico cujo progressismo se limita a cidadãos que votam, têm emprego e gozam de direitos reconhecidos. E basta de abstrações! Primo mangiare, dopo filosofare!

É como se não estivesse em curso a maior crise mundial desde a quebra da bolsa de 1929. Como se a crise fosse um problema dos outros. Estaríamos imunes, ou melhor, seríamos os grandes beneficiários da crise. O espaço nacional como o nosso lugar oculta o fato que não pode existir um capitalismo nacional, brasileiro. O nacional-brasileirismo elude a posição contingente que ocupamos. A economia do globo é uma só, atravessada por tendências e contratendências, que buscam se compensar. A crise global se instaura quando os lucros astronômicos da classe rentista não podem mais ser sustentados. Cessado o butim, essa classe se reestrutura sob a direção superior de seus gênios e think tanks. Os grande financistas passam a sondar, como salvação da lavoura, outros mercados, em extensão e intensivamente. E nessa atividade de prospecção, identificam as enormes jazidas humanas da América do Sal e do Sol. Onde o homem é barato, a polícia é militar e governos firmes fabricam o consenso, o orgulho e o medo, — necessários para organizar e garantir a exploração do trabalho. Jazida humana e governo firme, o binômio que confere confiança aos mercados, isto é, garantias que o butim pode continuar e se aprofundar, sem grandes comoções. O estado sempre foi o método mais privado do ganho. Os fluxos de dinheiro-poder escoam do norte para o sul, para fortalecer a governabilidade mesma de que precisam para voltar a lucrar suas fábulas. E assim são mobilizadas as populações ao trabalho, e assim é forjada a antropologia ao homem nacional: cidadão honesto e trabalhador que assiste à TV, sem devir de raças. As elites internacionalistas e os governos nacionalistas impõem desenhos globais a histórias locais, numa subjetividade bombardeada de breve ascensões, delgadas autoestimas e muita comunicação de massa.

Não é verdade que os fluxos de dinheiro-poder determinam fluxos de subjetividade e não há saída da sinuca. As pessoas não são ratos de Pavlov movidas por percepções e necessidades imediatas. Quanto melhor, não é pior, como resmunga o esquerdismo, que quer mais é ver o terceiro mundo explodir. Não. Quanto melhor, melhor e quanto pior, pior. Se é conferida a chance de a pessoa querer, ela vai querer mais e sempre mais. Em contextos de crescimento econômico, proliferam dissidências, insatisfações, indignações, desejos que ficam pelo caminho, sintetizados em projeto de Brasil e brasileiro. Nesse contexto, a generalizada crítica ao desenvolvimentismo tem de ir muito mais além. Essa ficou fácil demais. Está sendo reabsorvida pelo papo malthuseano da sustentabilidade, do decrescimentismo, da catástrofe. As muitas economias verdes prometem redimir a desigualdade social. Nada mais conservador. Destruir o nacional-desenvolvimentismo não significa deixar as coisas como estão. Não se pode ceder a ideia da superabundância, de um regime amazônico-tautegórico de produção, saturado de socialidade e virtualidades de ser, que é a única força capaz de devastar a economia e abrir o agora ao comunismo.

A construção da alternativa ao Brasil Maior, este Brasil de Dilma, depende de uma remodelação muito mais profunda que trocar o governo, criticar o desenvolvimentismo ou mesmo assumir as opressões e minorias como operadores de uma política dos excluídos. O jogo pode ser mais alto, e os desejos reais da geração nos concedem as bases para ousar mais alto. Não há que se falar em mais esquerda, com seus projetos incapazes. É voltar à prancheta na imanência dos movimentos. É questão de métrica, de como des-medir a abundância e des-travar o excesso, des-quantificar e re-qualificar: o reenvolvimentismo aprofundado e a esquizoanálise altermundista. Isso já está aí, debaixo de nossas pupilas. É reatualizar a própria noção de viver bem, como fazem os indigenistas sul-americanos e ameríndios, na experiência do comum. A boa vida qualitativa e o boa-vida que recusa o trabalho explorado. É rearticular a relação entre governo e movimento, que vem sendo sucessivamente rompida no Brasil, na Argentina, na Bolívia, no Equador, — onde podíamos, até pouco tempo atrás, depositar o nosso otimismo. Se os tijolos completam a parede da burrice mais convencional e de toda a mediocridade circundante, este é um tempo-chave para poetas, filósofos e cineastas. Para a húbris de quem não se adapta. E que saibam atirar pedras, pois a fantasia também veste botas.

Fonte: Quadrado dos Loucos

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