abril 17, 2012

"O mal-estar da cultura livre", por Bruno Cava


O mal-estar da cultura livre
PICICA: "O fato é que, na passagem para o governo Dilma, os apparatchiks das secretarias culturais e militâncias orgânicas se uniram às abelhas rainhas e velhos caciques do cepecismo-zona-sul, a dita “classe artística”, para acabar com a zona (autônoma temporária) do ministério. Em suma, sucedeu a restauração. Daí por diante, a história do MinC que todos conhecem tem sido a submissão às concepções mais retrógradas simultaneamente de cultura, política e economia. É um projeto nada autista e muito bem articulado ao realismo do atual governo, onde não há alternativa senão desenvolver a economia nacional para fazer caixa e, no final das contas, distribuir o que sobrar. O resto é fantasia."

Durante o governo Lula, o ministério da cultura abrigou um campo muito produtivo de experimentação política. Antes, não é tão injusto dizer que o MinC não passava de balcão de negócios para os tubarões da Lei Rouanet e os amigos dos amigos. Na esquerda, era visto como bijuteria, como um setor de poucos recursos destinado a agradar a “classe artística” e parentes mais ilustrados. Nada sério. Com os ministros Gilberto Gil e Juca Ferreira, os recursos não só aumentaram, como foram parcialmente democratizados. O programa Cultura Viva, cujo carro-chefe foi a política dos Pontos de Cultura, propiciou um campo de produção que passou a reconhecer a realidade multiestratificada de cultura, economia e política. Conceitualizada por Célio Turino, a política dos Pontos inovou como gestão transversal e colaborativa de pólos produtivos, multiplicando pontos de vista, ao mesmo tempo em que viabilizou uma base de renda aos trabalhadores da cultura. Indo além do paradigma da sustentabilidade e de todas as transcendências do Artista-Deus, as políticas nos anos Lula incentivaram a produção cultural num sentido generoso e profundo, como processo social imanente de imaginação, combinação e propagação de sentidos e vidas, como proliferação de incubadoras para a geração de alternativas de sociedade. A produção cultural não como assunto para profissionais e empresários, ou empreendedores criativos, mas de todos e para todos, por meio das infinitas redes e emaranhados que se atravessam e nos constituem.
Evidentemente, o do-in antropológico na própria esquerda não agradou à Esquerda, a tradicionalmente instalada nos partidos e governos. Isso já vem acontecendo desde a passeata contra a guitarra elétrica, passando pelo ostracismo de Gláuber e Sganzerla, até chegar ao criticoativismo de uspianos anti-tropicalistas. O fato é que, na passagem para o governo Dilma, os apparatchiks das secretarias culturais e militâncias orgânicas se uniram às abelhas rainhas e velhos caciques do cepecismo-zona-sul, a dita “classe artística”, para acabar com a zona (autônoma temporária) do ministério. Em suma, sucedeu a restauração. Daí por diante, a história do MinC que todos conhecem tem sido a submissão às concepções mais retrógradas simultaneamente de cultura, política e economia. É um projeto nada autista e muito bem articulado ao realismo do atual governo, onde não há alternativa senão desenvolver a economia nacional para fazer caixa e, no final das contas, distribuir o que sobrar. O resto é fantasia.
Abrangente convergência de protagonistas permitiu que algo como o MinC de Lula pudesse existir, num contexto governamental constrito pela camisa de força da correlação de forças e tendencialmente conservador. Mas, de 2003 a 2010, ele aconteceu. Um dos elementos mais visíveis dessa convergência se deu sob o guarda-chuva da cultura livre (e falarei mais sobre guarda-chuvas). A cultura livre, se é possível sintetizar, consiste numa agenda política que visa a liberar a circulação, a remixagem, a difusão e o consumo de bens culturais, saberes, conhecimentos e informações. Ela se desdobra em várias frentes de atuação, do software livre à lógica open source,  da abertura do espectro de rádio à internet banda larga universalizada. Dentre os inimigos imediatos da cultura livre, perfilam o copyright, as patentes, o direito rígido de autor, os oligopólios de frequências de rádio e bandas de internet, os códigos fechados de programas e algoritmos, e todo o empresariado cultural que lucra atravessando e explorando o processo social das culturas vivas. No Brasil, durante o governo Lula, a cultura livre escandalizou a “classe artística” e a indústria cultural que a sustenta. Uma e outra, representadas pelo ECAD (logo, o MinC de Dilma), repartem entre si o saque da sociedade a título de propriedade imaterial. A pauta anticultura livre prossegue com o combate à pirataria, a criminalização do movimento social de download e a de todos os usuários da internet que compartilham democraticamente os conteúdos.
Podem-se distinguir vários protagonistas no agrupamento denominado cultura livre. Tem o pessoal do Creative Commons (CC), um processo de licenciamento (possivelmente) mais flexível que o copyright, cuja grande referência é o Lawrence Lessig. Os comuns criativos seriam bens onde não reina a escassez e, portanto, não haveria sentido em reproduzir na cultura o modelo proprietário e restritivo dos bens materiais. Tem também uma galera mais focada na questão digital, que se pauta pela luta contra o controle das redes por estados ou imperialista, pelo compartilhamento e software livres, bem como pela universalização do acesso à internet e ao hardware pelos cidadãos. Julian Assange e o Wikileaks são referências importantes, além do Anonymous e, no Brasil, o militante Sérgio Amadeu.
Cruzando essas órbitas, também grupos que se organizam economicamente como novo modelo de negócios. Adotando o CC, a flexibilidade de gestão e a concepção de cultura como cadeia produtiva, trata-se de um híbrido de empresa e coletivo, que se propõe a existir dentro das novas potencialidades. Essa fauna “político-cultural-econômica” (doravante, “biopolítica”) cresceu e se multiplicou, na medida em que o movimento social de cópia e compartilhamento livres pôs em crise a lógica até então prevalente do negócio. A atmosfera de final de expediente da indústria cultural talvez tenha sido melhor expressa em Artista Igual Pedreiro(2008), da banda Macaco Bong. Manifesto até no título, as músicas do álbum arrasam a terra para propor o recomeço, tijolo por tijolo (como diriam os Arctic Monkeys), da edificação da música brasileira: uma nova. Contra o glamour do Deus-Artista e sua entourage de críticos nostálgicos, eis a geração que, espremida por tantos constrangimentos e interdições, precisa abrir senda aqui e agora, porque quer viver seu tempo histórico. E vai mesmo.
Até aí, tudo bem. A convergência no MinC do governo Lula singularizou uma experiência multifacetada, intensamente produtiva. As ambivalências, ambiguidades e frinchas se sucederam como resultado dessa riqueza mesma. Em termos oswaldianos, a contribuição milionária dos erros moveu a problemática para mais além, apesar de tudo. Finalmente, o campo da cultura galgou uma dimensão transversal, potencialmente relevante a todas as políticas públicas. Mas quando o galho frutifica e cai no chão, a raposa não hesita em avançar. Veio a restauração, encabeçada pela ministra Ana de Hollanda e o ECAD. Nesse cenário, uma leitura em voga aponta para a necessidade de estender e fortalecer a convergência da cultura livre. A ideia de liberdade como guarda-chuva para as diversas experiências biopolíticas, a fim de hackear o estado e o mercado, reunir mais protagonistas e parceiros, possivelmente mandatários e movimentos sociais organizados. A curto prazo, para reocupar o MinC, derrubando a atual ministra. A longo prazo, para tomar o poder e mudá-lo de dentro. De modo semelhante a que se tenta afirmar a nova música brasileira, afirmar o novo estado brasileiro.
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Em 2011, as marchas da liberdade foram as primeiras a provocar o choque entre a mencionada convergência e uma militância por assim dizer mais dura, de parcela da esquerda fora do poder. Num ano marcado por intensos protestos de rua e ocupações urbanas, a chegada à cena do agrupamento nutrido no MinC lulista (e em verbas captadas no estado e mercado) rapidamente se converteu numa grande polêmica. Exprimindo descontentes da Esquerda Dura, o coletivo Passa Palavra (PP) denunciou numa série de textos o coletivo-empresa Fora do Eixo (FdE) e a Casa da Cultura Digital. As palavras foram às brasas. Seguiram-se centenas de intervenções online e pelo menos quarenta artigos diretamente sobre a questão.
Basicamente, o Passa Palavra os acusa de se comportar como um vírus.
Como se sabe, o vírus se compõe de um ácido nucléico autorreplicante (RNA ou DNA) e uma capa proteica. A capa serve de disfarce para o vírus infectar as células. Uma vez dentro, o vírus libera o RNA e força a célula a trabalhar para ele e reproduzi-lo. São parasitas intracelulares e ficam inertes até hackear outro organismo, num processo onde o segredo está na capacidade de enganar. Contrariamente ao que se pensa, o mundo do vírus é extremamente diversificado.“Os vírus representam a maior diversidade biológica do planeta, sendo mais diversos que bactérias, plantas, fungos e animais juntos.” (Wikipídia)
O PP acusou o FdE de ser um vírus, com a capa proteica de ativismo descolado e o RNA de empresa capitalista. O FdE disputaria redes de movimento para parasitá-las. Estaria infectando o campo da esquerda, atrás de vítimas incapazes de perceber a sua malícia. Mas como, se não rola grana? Para parasitar a imagem de rebeldia, a estética alternativa ou indie, a força simbólica de movimentos da geração, como o 15-M e o Occupy. Uma vez colada a marca sobre o imaginário, vertem as verbas de publicidade, da parte de empresas interessadas em colar seus produtos à riqueza simbólica associada. Não à toa se interessem, principalmente, por marchas e ativismos em áreas abonadas das metrópoles, já que ali, potencialmente, estará o público consumidor dos produtos alternativos, de estilos de roupas, cervejas cool e festivais de rock. Impressionante como o fetiche da gestão horizontal de redes rapidamente se esgota num empreendedorismo parasitário com ar de radical chic. Essa acusação encorpa se forem analisadas certas falas do próprio FdE. A ideia de meme, por exemplo. O meme é o que pega, fragmentos que se replicam e disseminam descontroladamente. É um símbolo forte que subitamente está em todo o lugar, como um jingle que não sai da cabeça, ou um vídeo inusitante no youtube, ou uma sacada audiovisual, e às vezes isso nasce das coisas mais banais. Ora, essa é a lógica mesma da publicidade, que representa conteúdos, que presentifica a ausência e, por isso, sobrevive de uma falta induzida. É esvaziar a materialidade das relações sociais e vender o espetáculo das marcas e estilos: capital = exploração da vida, e simbólico = representativo. E o gene egoísta? Por causa disso, falar em “ressignificação” é sempre muito pouco: fica no plano simbólico. Você pode achar o meme mais viral do universo e ainda assim não sair do looping (embora possa ficar rico).
Por outro lado, os grupos da cultura livre não têm problema em se ver como vírus. Vários também se consideram vírus, com a capa proteica do estado e do mercado, e o RNA de revolução, de novas lutas. O FdE disputaria as redes de financiamento do estado e do mercado para parasitá-las. Estaria infectando os campos do poder constituído, atrás de vítimas incapazes de perceber a sua malícia. Afinal, rola grana, muita grana. Como os vírus, esse horizonte de afirmação biopolítica ficaria inerte sem sugar as energias produtivas e reprodutivas do próprio capitalismo. Uma luta dentro e contra. A inspiração virótica da turma, obviamente, é o MinC de Gil e Juca, que começou a hackear o estado brasileiro com o DNA dos movimentos 2.0. Nesse sentido, a acusação do PP é esquerdista, purista e sectária. Não percebem como organizar a produção já é política e não pode haver resistência senão pelo interior dos circuitos de valorização capitalista e dos aparelhos de captura. E daí que o FdE abraça impudentemente a linguagem do comércio e da mercadoria? É o pastiche irreverente contra toda austeridade do alto modernismo (velhaguardista!), contra a monotonia da emancipação humana e suas passeatas à francesa. É sempre triste o apelo à superioridade moral do esquerdismo, com seus miseráveis sacerdotes do sofrimento universal.
Ano passado, nos calores de um ano que não acabará tão cedo, o Quadrado dos Loucos interveio nesse debate tão movediço. Tentei derrapar pela tangente da dupla dicotomia. De um lado, os dicotômicos submarxistas: puros x impuros; do outro, os dicotômicos futuristas, analógicos x digitais. Os dois lados óbvios da contenda estão míopes. Em síntese, procurei sair das dualidades infernais, muito preliminarmente, pela via de Marx, para afirmar que o FdE, como expressivo de uma nova composição, é as duas coisas. Simultaneamente, seus agentes parecem executivos workalcoholics de uma multinacional, sempre atrás de mais negócios e parcerias; e parecem leninistas disciplinados, como numa vanguarda coesa; em ambos os casos a efígie do Partido/Empresa acima de tudo, investidos de sua subjetividade, o guarda-chuva sob o qual tá junto tá junto. São vários vírus num ecossistema mais complexo. Onde há capital, habemus resistência e reexistência. A relação do capital opera com dois pólos, duas subjetividades em confronto, mas as coordenadas desse confronto são tão múltiplas quanto as formas de viver e produzir na sociedade.
Nesse ponto o leitor deve estar se perguntando se a postagem vai concluir novamente como fazia o Padre Vieira, barroco e retórico, mas sem se comprometer com nada. Os dois lados contestaram este blogue. Os primeiros, sempre invocando o verdadeiro compromisso com a classe trabalhadora, acusam o QdL de se autoenganar burguesamente com pós-modernismos. Os segundos, que como bons empresários conhecem o ofício e não se interessam por “abstrações” (a menos que favoravelmente publicitárias), afirmam que falta generosidade por parte de certos yntelektuais.
Onde traçar a linha? Por mais molecular e sambista, não haveria uma ou umas linhas? Onde a contracultura se converte em ideologia liberal e ranço antimilitante? Onde o tropicalismo e a Esquerda rangem? Como articular a defesa dos comuns e da produção do comum, com o avanço capitalista e empresarial nesse campo? Onde a cultura livre se atrofia como culturalivrismo, a cultura digital como digitalismo? Como se orientar no plano multiestratificado da cultura, política e economia, isto é, da biopolítica, com suas velocidades alucinadas e suas perplexidades, sem perder de vista a urgência das lutas? Em que ponto, se pode dizer que a resistência e a reexistência são mais fortes do que a exploração e a captura? Onde termina a revolução e começa a contrarrevolução? Como subir a montanha e, ao descer, dar uma resposta a quem ficou? Adam Smith, Saint Simon, Karl Marx, André Breton, o fio vermelho, o salto do elétron?
Temas da segunda parte do artigo, quando pretendo abordar o terceiro gênero que irrompeu da querela e uma “das coisas mais importantes que saíram nos últimos tempos“, o texto O Comum e a Exploração 2.0, pela rede Universidade Nômade.

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