maio 19, 2012

"Luta Antimanicomial: Podres poderes - A razão do mais forte", por Ana Marta Lobosque

PICICA: Divido com meu leitores esse achado arqueológico virtual. Trata-se de um texto da nossa querida Ana Marta Lobosque, psiquiatra, psicanalista e doutora em Filosofia, em que ela desmonta a instituição manicomial e a instituição psiquiátrica (ambas não vivem uma sem a outra), criticando àquela época a instituição histórica da internação compulsória. Leia também a 'critica' ao texto dessa militante antimancomial por um conhecido pena de aluguel refratário à produção de novos saberes e da renovação do conhecimento, que na pia batismal recebeu o nome de Reinado Azevedo. Clique aqui para ler a indigitada criatura. Abaixo o texto de Ana Marta.

Luta Antimanicomial: Podres poderes - A razão do mais forte

Teoria e Debate nº 15 - agosto/setembro/outubro de 1991

publicado em 13/04/2006

O fim dos manicômios é, acima de tudo, uma exigência de cidadania. A recusa de questionamento por alguns psiquiatras revela a má-fé de uma corporação que não quer perder seus privilégios.

por Ana Marta Lobosque*
A desinstitucionalização é a transformação das relações reificadas de poder, nós pensamos que a loucura tem muito a ver com isso; não apenas a que está dentro dos manicômios, mas a que está fora também, a loucura é a expressão de uma relação de poder errada, que não consegue se desenvolver nem se modificar. 
(Franco Rotelli, psiquiatra diretor do Serviço de Saúde Mental de Trieste. Itália).
A instituição manicomial tem sido questionada pela sociedade brasileira. Atos de grande importância neste sentido têm sido sustentados pelo PT: a intervenção da prefeitura de Santos num grande hospital psiquiátrico, por exemplo, e, mais recentemente, o projeto de lei do deputado federal Paulo Delgado (PTMG) que institui a progressiva desospitalização no tratamento das doenças mentais no país. A participação da sociedade civil nesse questionamento é essencial; daí nosso interesse em intervir no debate.
De início uma observação: questionar a instituição manicomial é questionar também a instituição psiquiátrica. Cronologicamente, os manicômios como recurso da sociedade para lidar com a loucura, separando os loucos dos outros cidadãos e internando-os, são anteriores à psiquiatria. O asilo de loucos surgiu antes da psiquiatria, e sem ele não haveria a psiquiatria tal como a conhecemos hoje. A expressão instituição psiquiátrica merece, aliás, um exame mais detido.
Tomemos como exemplo a prática social da Medicina. Ela inclui evidentemente aspectos técnicos - conhecimento sobre a constituição do corpo, seu funcionamento, distúrbios etc. Mas quando falamos da instituição médica, estamos nos referindo, principalmente, às regras que definem as relações dos médicos entre si e com o conjunto da sociedade.
O mesmo se pode dizer com relação à instituição policial: há um nível técnico que consiste em conhecer, por exemplo, o manejo de um revólver e um nível institucional que consiste em definir em nome de que há de se fazer uso do mesmo revólver; ou seja, em que circunstâncias se justifica o uso "em nome da lei". A polícia está autorizada a usar armas para proteger a sociedade de indivíduos ou grupos que querem se impor à força - e muitas vezes acaba por colocar a força, que lhe foi delegada por todos, a serviço de alguns. Cabe à sociedade como um todo o espinhoso problema da regulamentação do uso da força, a saber: como fazer valer a prioridade da razão com relação à força, uma vez que a posse da força permite ignorar a razão? Como limitar o uso da força de acordo com a razão?
Não foi gratuitamente que utilizei até aqui o exemplo da polícia: pretendo me referir, em se tratando dos impasses entre razão e força, ao parentesco existente entre instituição psiquiátrica e instituição policial.
Nós, psiquiatras, não gostamos de assumir este parentesco com a instituição policial; preferimos insistir em parentescos mais nobres como, por exemplo, com a Medicina. O fato é que entre as instituições médica, policial e psiquiátrica pode haver diferenças de status, mas não, diferenças éticas essenciais. Nesse aspecto, todas são produto da organização social em que se inserem e refletem a maior ou menor incidência da lei nessa organização.
O parentesco entre psiquiatria e polícia se dá pelo compromisso de ambas com a manutenção da ordem social; a psiquiatria interna os doidos que perturbam a ordem, como a polícia prende os assaltantes. Por isso mesmo, ambas correm o mesmo e enorme risco de confundir a noção genérica de ordem social com a concretude da ordem vigente, isto é, com uma determinada ordem social. Mais ainda: os psiquiatras, assim como a polícia, chegam a ter interesse em que a sociedade congele uma determinada correlação de forças e para isso alguns chegam a abusar da arma que têm na mão. Assim como a sociedade outorga à polícia o porte de armas para exercer a sua função, ela nos outorga, aos psiquiatras, o manejo da internação compulsória: o poder do psiquiatra de internar à revelia, o dito louco.
O projeto de lei do deputado Paulo Delgado, que determina o fim da instituição manicomial como tal, refere-se a tal arma, quando fala em poder de seqüestro dos psiquiatras.
Alguns psiquiatras disseram-se magoados por terem sido chamados de sequestradores. É bom, então, esclarecer o que significa poder de seqüestro: ele se revela no exame das condições necessárias para se internar um cidadão num manicômio, de acordo com a legislação vigente no Brasil desde 1934. É preciso, apenas, que alguém da família do dito louco ou da comunidade solicite sua internação em uma instituição e que um psiquiatra, a ela ligado, assine abaixo. Mais nada. Se houver acordo entre o demandante da internação e o psiquiatra, a "vítima" pode gritar, espernear, afirmar que não é louca - tendo ou não razão, é internada assim mesmo,
Qual a participação técnica do psiquiatra, e do seu saber sobre a loucura na decisão da internação compulsória? Evidentemente há um saber psiquiátrico sobre a loucura. Uma avaliação efetiva deste saber, de sua construturação e de seus impasses seria matéria para um outro artigo. Aqui, queremos assinalar que não foi preciso esperar pela constituição deste saber, que é relativamente recente, para determinar quem são os loucos - a sociedade sempre soube identificá-los muito bem. O manicômio, a Casa dos Loucos, já estava construído e habitado, quando nós psiquiatras assumimos a designação de governá-lo.
Assim, o que se espera da psiquiatria não é que ela diga quem são os loucos - isto sempre se soube. O que se deve exigir da psiquiatria é que ela formule com mais clareza a questão entre loucura e liberdade: como se explica que o louco não possa ser livre para dispor de si? Cabe aos psiquiatras um trabalho teórico que permita avançar nessa questão - que permita fundamentar, racionalmente, a decisão de internarmos os loucos contra a vontade deles; que nos permita, nesse ato, subordinarmos a força à razão.
Entretanto, a experiência de trato com os loucos nos permite algumas afirmações. A começar pela eventual necessidade de internação compulsória: existem casos, momentos e situações em que não há alternativa senão internar à força, medicar à força, porque ultrapassam concretamente o limite da possibilidade de convívio social e constituem um risco para a sobrevivência do sujeito. Mas podemos também afirmar que tal impossibilidade é sempre transitória e que a internação compulsória deve ser considerada e manejada como medida de exceção, revista no mais curto período de tempo possível; e que o prolongamento dessa internação não se justifica por supostos benefícios terapêuticas. Podemos afirmar que é sempre possível restituir o louco à condição de cidadão e ao convívio com outros cidadãos.
Para melhor definir as possibilidades deste convívio, voltemos a tratar de instituições e leis. Se toda instituição é regida por regras sociais, seu funcionamento pode e deve ser questionado pela sociedade. A recusa de questionamento por alguns psiquiatras revela a má-fé de uma corporação que não quer perder seus privilégios. Já é tempo de aprendermos a deliberar acerca de questões institucionais. A maior parte das críticas de psiquiatras ao projeto de lei do deputado Paulo Delgado, por exemplo, não vem acompanhada de propostas concretas, de emendas ao projeto. Assim, o que parece incomodar é a própria existência de um projeto de lei na área, ou seja, o fato de determinados setores da sociedade civil, através de um representante parlamentar, procurarem colocar um limite legal no poder até então concedido a uma corporação. É preciso saber que todo tecnicismo esconde má-fé e não se deixar intimidar pelo "discurso da.competência" técnica.
Também é tempo de percebermos que as regras determinantes de um funcionamento institucional não são produto de consenso entre as partes - elas resultam de conflito entre posições diferentes. Instituir a democracia é criar condições para que os conflitos não se resolvam na base da briga de foice; é criar uma forma de convivência social, dada pela submissão da força à razão - e, com certeza, a negação do conflito, a negação das diferenças, não é a solução que buscamos.
Para concluir, é importante mencionar que além do conflito entre razão e força existe, na questão manicomial, o conflito que parece opor razão e loucura. No caso razão versus força, vale observar que não são pólos opostos de um conflito; são, sim, terrenos distintos, onde ocorrem distintas soluções - a da palavra e a da porrada. Já os conflitos entre razão e loucura, que embora possam ser, em última instância, resolvidos à força, têm no interior do discurso, seu terreno decisivo; cada vez mais, é no interior do discurso que se procura forçar a razão - e os loucos têm sofrido, na carne, as conseqüências disso. Como pensar, sem forçar a barra, o tipo de impasse que a loucura cria para o exercício da razão? Como reconhecer que as razões ocultas no discurso do louco concertem às questões da liberdade para todos nós?
Ao menos, não nos esqueçamos: loucos e não-loucos, partilhamos todos da condição de habitantes de um país, onde a grande maioria da população não tem acesso à arbitragem dos conflitos pela lei. Loucos e não-loucos,'precisamos encontrar recursos para fazer vigorar a cidadania e para questionar a razão daquelas posições que se impõem à força.

* Ana Marta Lobosque é psiquiatra e militante do Movimento Nacional dos Trabalhadores em Saúde Mental.
Fonte: Fundação Perseu Abramo

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