junho 19, 2012

"Direitos humanos e vida nua na era da guerra sem fim (trecho de “Figuras da violência”)", por Idelber Avelar

PICICA: "A América Latina nunca foi uma arena entre outras no desenvolvimento da tecnologia da dor. Sob Bush, testemunhou-se a culminação de um modelo que sistematicamente usou a América Latina como laboratório da crueldade e lugar de produção da vida nua. A epítome da posição emblemática da América Latina na manufatura das técnicas de imposição de sofrimento é esse mais insólito dos territórios, Guantánamo. Situada simultaneamente dentro e fora dos EUA, dentro e fora da América Latina, dentro e fora de Cuba, dentro e fora da própria humanidade, Guantánamo é um lembrete de que a situação dos direitos humanos no continente sempre incluiu uma redefinição constante dos limites do humano, num contexto em que o estado de exceção se tornou permanente. Algumas nações (EUA, Israel) exercitam a prerrogativa de decidir onde se situam esses limites, quem terá ou não terá “direitos humanos”, onde termina e começa a própria humanidade. Pensar os direitos humanos hoje é pensar o legado desses territórios paralegais, localizados aquém ou além das fronteiras da humanidade." 

Direitos humanos e vida nua na era da guerra sem fim (trecho de “Figuras da violência”)

Publico abaixo um trecho do livro Figuras da violência, que será lançado nesta quinta-feira, a partir das 18:30h, na Livraria da Vila da Fradique Coutinho, em São Paulo

Passado o seu sexagésimo aniversário, a Declaração Universal dos Direitos Humanos continua sendo pisoteada, talvez hoje mais universalmente que nunca. Poucos documentos combinam tanto prestígio e tanta irrelevância. Poucos são tão amplamente reconhecidos e, ao mesmo tempo, tão desrespeitados. Ao completar 60 anos em 2008, não só a tortura havia sido legalizada na democracia estadunidense, como se revelara que as mais altas lideranças do governo Bush haviam tido reuniões dedicadas a decidir quais métodos de tortura usar sobre qual prisioneiro. Que a tortura nunca foi alheia ao que chamamos democracia já era sabido desde muito antes de Bush Jr. e da “guerra ao terror”, e foi bem fundamentado com o trabalho de Page DuBois sobre Grécia, analisado no capítulo 1 deste livro. Mas que a chamada maior democracia do mundo se transformasse na principal liderança na produção e orquestração de justificativas para a tortura certamente era um quadro inédito.


A singular combinação de acontecimentos que caracterizou a administração Bush se apoiou na consolidação da noção de “guerra ao terror”, essa mais abusiva das apropriações do conceito de guerra. A tortura agora se transformava em política estatal explícita. É essa mesma explicitação que deve ser objeto de análise. Imagine um casal que mantém um acordo de que ambos tolerarão aventuras extra-conjugais do cônjuge. Se um deles, num determinado momento, decide revelar a existência de um caso, não há dúvidas de que o outro teria motivos para se preocupar: “ora, se o acordo é que as aventuras são livres, por que você está me contando isso?” O fato novo não é que os EUA passaram a torturar, mas a dizer que torturavam. Como apontou Slavoj Žižek, se vocês sempre torturaram sem dizer nada, o que significa o fato de que agora assumem publicamente que torturam?


Os atos de tortura continuaram a ser perpetrados dentro e fora das fronteiras americanas, mas sua fundamentação dependia de um território localizado simultaneamente dentro e fora dos EUA, dentro e fora da América Latina. Refiro-me, claro, a Guantánamo, escolhida pela administração Bush para ser uma espécie de morada da vida nua, termo usado pelo pensador italiano Giorgio Agamben para designar a vida empurrada para além dos limites do humano, que pode ser morta mas não sacrificada, ou seja, a vida cujo desaparecimento já perdeu todo valor sacrificial.


No dia 20 de setembro de 1996, o Pentágono liberou para leitura pública sete manuais preparados pelo exército americano e usados entre 1987 e 1991 para cursos de treinamento de inteligência na América Latina e na Escola das Américas mantida pelo exército no estado da Geórgia. Esses documentos constituem um capítulo central da história da institucionalização da tortura. Eles revelam boa parte da história do papel dos EUA como promotor de formas cruéis de punição mais além de suas fronteiras. Há que se reconhecer, no entanto, que o que se viu nos anos da administração Bush foi uma operação sem precedentes, coroada pelo aparato de vigilância terrorífico desenvolvido por Dick Cheney e Donald Rumsfeld, que repetidamente humilhou Colin Powell e outras figuras “moderadas” do exército. Se é verdade que a justificativa discursiva da tortura já era política externa explícita dos EUA desde, pelo menos, o KUBARK, o manual de interrogatório de contra-inteligência produzido pela CIA em 1963 (e se é verdade que essa história inclui manuais utilizados no treinamento dos contra da Nicarágua nos anos 80, levando diretamente aos documentos da era Bush), também é correto que a tortura nunca havia estado sob os holofotes como tema de debates razoáveis e racionais na televisão– a moral e a legitimidade de nossa aplicação da tortura sobre os outros, os “terroristas” sendo, claro, um premissa tácita.


Enquanto que em anos anteriores, o discurso sobre a tortura, pelo menos o acadêmico, com frequência era apresentado como esfera do irrepresentável e do indizível, o fato contemporâneo é que a tortura passou a ser, nos anos Bush, parte do domínio do dizível nas conversas de cozinha. Já não é possível se referir à tortura como uma espécie de alegoria da indizibilidade.


A América Latina nunca foi uma arena entre outras no desenvolvimento da tecnologia da dor. Sob Bush, testemunhou-se a culminação de um modelo que sistematicamente usou a América Latina como laboratório da crueldade e lugar de produção da vida nua. A epítome da posição emblemática da América Latina na manufatura das técnicas de imposição de sofrimento é esse mais insólito dos territórios, Guantánamo. Situada simultaneamente dentro e fora dos EUA, dentro e fora da América Latina, dentro e fora de Cuba, dentro e fora da própria humanidade, Guantánamo é um lembrete de que a situação dos direitos humanos no continente sempre incluiu uma redefinição constante dos limites do humano, num contexto em que o estado de exceção se tornou permanente. Algumas nações (EUA, Israel) exercitam a prerrogativa de decidir onde se situam esses limites, quem terá ou não terá “direitos humanos”, onde termina e começa a própria humanidade. Pensar os direitos humanos hoje é pensar o legado desses territórios paralegais, localizados aquém ou além das fronteiras da humanidade.


Um colóquio que se reuniu em 2008 na Universidade de Minnesota pediu aos convidados que apresentassem trabalhos sobre “os direitos humanos na América Latina”. O primeiro deslocamento que me pareceu produtivo estabelecer na pauta do colóquio foi a substituição da preposição. No chamado primeiro mundo, uma coleção de discursos instala-se confortavelmente no interior do tema dos direitos humanos “na” América Latina, ou “na” África, ou “no” mundo árabe. Uma certa divisão de trabalho intelectual confere a acadêmicos, políticos, jornalistas ou ativistas do primeiro mundo a tarefa de checar o rendimento das nações periféricas no quesito respeito aos direitos humanos. Essa divisão do trabalho sub-repticiamente pressupõe um lugar de enunciação não contaminado para o sujeito encarregado da vigilância. Por mais valiosa que seja a bibliografia jornalística ou social-científica ali produzida, nota-se a frequente reiteração de uma mesma cegueira: a incapacidade de perceber os vínculos entre os abusos dos direitos humanos no chamado terceiro mundo e uma ordem global na qual os países ricos cumprem papéis nada inocentes. Tomemos o relatório da Human Rights Watch de 2005.


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A continuação deste texto está no livro Figuras da Violência: Ensaios sobre ética, narrativa e música popular, que será lançado nesta quinta-feira, a partir das 18:30h, na Livraria da Vila, na Rua Fradique Coutinho, em São Paulo.

Fonte: Outro Olhar

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