julho 29, 2012

"Exercício de escrita da Oficina do Ocupa Nise", por Sindia Bugiarda

PICICA: Aterrorizada pelo medo de não poder acolher a mulher que sentia dor, busquei o olhar do menino no carro e ele olhava pela janela, como se não tivesse nada haver com aquilo. Ele me deixava sozinha com a mulher que tinha dor. Foi quando senti que a mulher que tinha dor cheirava a perfume. Minhas mãos tocaram seu rosto. Tudo era pele, cabelos, olhos roxos, esparadrapo e lamento. E havia também o latente desejo de enlouquecer. É possível tocar a vida pulsando? EM TEMPO: Macacos me mordam. O moço à esquerda, com a cruz no peito, já esteve no Amazonas. Muito parecido com uma simpática figura que conheci antes do seu irmão levá-lo para o Rio de Janeiro.

Exercício de escrita da Oficina do Ocupa Nise



Estou indo longe demais. O alerta apareceu nos primeiros passos. Linhas 457 e 239. Da zona sul direto para Engenho de Dentro. Engenho de dentro para fora, uma valsa: dentro fora, dentro fora, dentroforadentroforadentro a rodopiar.  Vertigem: “Cavalos são bichos selvagens. Não se doma um cavalo pela força, mas pelo espirito”, a velha mulher sussurrava em meus ouvidos sem parar.  Até que percebi: sou um cavalo em disparada, que morreu numa praça pública, babando espuma, cansado de tanto desejar.

“Você precisa cuidar da sua espiritualidade”, o menino no carro disse em tom de bofetada. Espiritualidade? Espiritualidade é corpo, respondi raivosa. Ele concordou ao mesmo tempo em que jogou uma mulher ferida em meu colo. Era uma jovem mulher que dizia ter tanta raiva de si mesma que bateu a cabeça na parede, inúmeras vezes, até sangrar. Seus olhos estavam roxos de dor. Ela disse querer enlouquecer e deitou a cabeça em meus ombros. Aterrorizada pelo medo de não poder acolher a mulher que sentia dor, busquei o olhar do menino no carro e ele olhava pela janela, como se não tivesse nada haver com aquilo. Ele me deixava sozinha com a mulher que tinha dor. Foi quando senti que a mulher que tinha dor cheirava a perfume. Minhas mãos tocaram seu rosto. Tudo era pele, cabelos, olhos roxos, esparadrapo e lamento. E havia também o latente desejo de enlouquecer. É possível tocar a vida pulsando?

Aquele momento se concretizou muito depois, no exato instante em que o homem de uma perna só e três corpos me perguntou: o que você sabe sobre o amor? Estou viva, então sei do amor, lhe respondi ressabiada. O homem sem pernas sorriu da resposta certeira em tom de pergunta. Se estou viva sei do amor? Era óbvio, o homem de uma perna só e três corpos era um deus que podia pisar na terra, deus pleno em corpo, deus cansado de subir os degraus, deus cujos músculos não suportavam mais o peso dos passos. Mas ele seguia impiedoso: O que você sabe do amor? 

Mais uma vez, busquei o menino no carro, ele ainda olhava pela janela. Ele fazia de propósito, era filho da velha mulher que seguia me enlouquecendo com seus sussurros: “cavalos são bichos selvagens. Não se doma um cavalo pela força, mas pelo espirito”.  Um homem que cura com planta se aproxima. Peço um cigarro. Fumo. Vomito. Mexericas. Fecho os olhos para enxergar e vejo o preciso momento em que uma mulher de longos cabelos loiros, se transforma em borboleta, o exato segundo em que ela sai do casulo e voa. “Espiritualidade é corpo, tem que cuidar”, o menino no carro agora olha para mim. Choro e toco meu corpo no rosto da jovem mulher ferida em meu colo. Sim, posso acolher a mulher ferida que sente dor e deseja enlouquecer.


[1] Nise: baca cuja habilidade é se metamorfosear em multidões. Esse texto registra sua passagem como velha mulher, menino no carro, mulher ferida, homem de uma perna só e três corpos, homem que cura com planta, mulher de longos cabelos loiros que se transforma em borboleta, a mulher ferida que sente dor e deseja enlouquecer.

Fonte: Sindia Bugiarda

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