dezembro 10, 2012

"O discurso do analista - Transferência", por Lisa França

PICICA: "Sabemos que a análise opera por aí. O nosso sujeito transferido oferece-nos seu sintoma, sofrendo por não poder gozar dele o bastante. Ele quer mais e quanto mais se apega a seu sintoma, mais ele lhe falha, mais ele cai. Quanto mais fala dele mais se insere no mais de gozar, menos gozo obtém. O final de análise portanto aponta sempre para uma perda de gozo do sintoma." 

O discurso do analista


Transferência


Artigo apresentado durante jornada interna do Corpo Freudiano, núcleo Goiânia, 2011

O discurso do analista
Lisa França

Optei por falar de transferência a partir do discurso do analista de Lacan.

Confesso que comecei esta escrita desanimada.

Sem ser poeta como falar do falado, e do falado tão brilhantemente, como tivemos a oportunidade de ouvir de nossos convidados nos últimos meses?

O escaimento fez-me deixar os livros e as anotações de lado para que o enigma do matema se apresentasse novo outra vez. Para que as letras desprovidas de sentido pudessem colocar meu desejo em movimento. Fui buscar, e lá estava a equação perfeita em sua simplicidade provocando-me, incitando-me a pensar e a falar.

No lugar do agente o objeto a, objeto causa de desejo dirigindo-se a um sujeito, sujeito dividido pela neurose, pela falha, pela palavra que o constituirá.

E pensei, é preciso tão pouco para constituir um sujeito. Basta colocar-se ali no lugar de objeto, não um objeto qualquer, não um morto, mas um objeto causa de desejo, um objeto que deixa sob a barra, no lugar do esquecido, o saber sabido, a teoria que o embasa, que o entronou, o suposto saber que o Outro reconhece-lhe. O saber que vai ficar sob recalque para que o lugar do inconsciente seja priorizado. Saber que autoriza o analista, que o impulsiona, o constitui.

Porque é do Inconsciente que se trata, é este o cenário onde este discurso pode dar-se. Quando Freud propõe a Psicanálise a partir do reconhecimento do Inconsciente, propôs uma subversão nas relações sociais. Era preciso menosprezar a consciência, retirar-lhe da posição de corolário da civilização, das relações sociais. O pudor, a educação, as palavras medidas, o pensar para dizer teriam de ser deixados de lado. Sem cair na barbárie, no jogo real pulsional do corpo, era preciso que as feras fossem soltas que o sujeito do inconsciente, o sujeito dividido, partido, desconhecido alçasse ao lugar da palavra.
 
No lugar do agente, aquele a pequeno, l'autre, o que cairá, o que deseja, deseja ouvir, deseja saber e por isto se cala, cala sua pulsão, cala seu suposto saber e faz semblante. Nenhum pathos mais, isto é muito exatamente a suavidade, diria Werther, o jovem poeta goetheano.

Basta este aniquilamento oportuno, como diria Sartre, para colocar o outro em movimento? 

Alguma coisa acontece, cristalino como o olhar de uma criança. Foi a clínica com crianças que me referendou esta lição. Antes que a análise inicie-se, antes que esta criança ponha-se a falar, ao saber que alguém lhe foi designado, ao encontrar um adulto ali, todo seu, todo ouvidos, todo reverência, sem nada lhe pedir, oferecer ou cobrar, ela descobre-se sujeito, sujeito desejante, e já depois dos primeiros encontros quando ainda não se sabe por onde se caminha, a família dá notícias, os temores noturnos diminuíram, não urina mais na cama, passou a fobia da escola, não acorda aos gritos, não espanca o irmão. Um sujeitinho do inconsciente fez uma afirmação, foi posto em movimento.

No discurso do analista, no lugar do Outro, está um sujeito dividido, um sujeito colocado em ação pelo desejo de análise do analista. Não um desejo de uma relação pessoal, não um desejo de troca de informações e emoções, um desejo de desejo que subverte o tempo, as leis, os interditos. E é deste lugar privilegiado do Outro, lugar da linguagem, do tesouro dos significantes que poderá emergir a singularidade deste outrinho, que poderá aparecer o que estava sob a barra, o significante mestre, o S1 deste sujeito será paradoxalmente a sua produção.

O discurso do analista tem no lugar da produção o S1, a marca do sujeito, sua singularidade. É sob esta ética que esta relação opera, é o um a um da clínica. O sujeito dividido pela palavra, pela castração universal, tem seu traço. Foi cortado de uma forma muito particular, que será a sua produção. O discurso do analista torna possível obter do sujeito, a sua singularidade, sua diferença não mais como recalque, como maldito, mas como um bem dizer, uma obra de arte, no que a arte tem de subjetiva, de genuína, de inovadora, de significante.

Penso que a palavra transferência tão bem cunhada por Freud serve também pra mim como matema. 

É preciso falar mais, há um compromisso, um número de páginas. Vamos então tentar matemizar a transferência. Porque afinal o discurso está ali, colocado, mas é preciso que algo o coloque em operação. É preciso que alguém bata à porta do consultório, que alguém mais acredite que a Psicanálise existe, além do analista.

Quando alguém chega, chega transferido. Já recebeu uma indicação, ou gostou do seu nome na porta, como até já me aconteceu. Veio mediado por sua própria fantasia. Lacan socorre-me outra vez do esgotamento das palavras oferecendo-me a fórmula da fantasia para que possa falar disto como se fosse deveras a primeira vez. O sujeito dividido tem ali à sua frente este losango, este recorte do vazio, esta pipa colorida, ardilosamente construída para subir aos céus, para dirigir nossos olhares pra longe da terra, pra longe do chão. Para que queremos uma pipa, se não para olhar pros céus?

É nela que o analista há de operar. O analista está ali inserido nesta figura geométrica perfeita que faz de um triângulo outro triângulo em espelho, que faz de três outros três, que repete o espelho, que repete o Édipo, que reedita o incesto. Se assim é, quem será a terceira ponta deste triângulo então, quem interditará este filho que me chega, quem impedirá que eu lhe coloque no colo, que o nine, que aplaque seus sofrimentos, que lhe resolva os problemas? Que terceiro é este, que pai é este, que Outro é este senão a fala que vem feito um trovão, o verbo que permito que se faça, porque me calo para a torrente que chega.

Em vez do colo que aconchega, ofereço-lhe um furo, o furo dos meus ouvidos, os buracos por onde poderá depositar sua fala, seu falo, suas palavras. Estou furada, destituída de minha condição de sujeito, de minha fantasia. A pipa, o losango que me constitui, que enche de poesia minha vida, de nada me servirá agora. Não sou mais o sujeito desejante. O filho que me chega não é meu, meu instrumento é outro, é escuro, a cor real do inconsciente. Passo a desacreditar do imaginário, tenho de duvidar da minha própria fantasia e deixar que emirja um outro tipo de laço social, o que me coloca fora da fórmula do sujeito desejante mediado por uma fantasia, sou o objeto resto, o que será descartado, jogado fora.

Estou ali pra fazer furo, para descolorir a pipa, tirar-lhe a materialidade, vazar-lhe, vazar-lhe, vazar-lhe. Mas que operação é esta se não sou eu o sujeito? É porque estou ali tapada pelo losango que o analisante se põe a desconstruir, ele mesmo, a sua fantasia? Será na tentativa de alcançar o meu silêncio? Será que o lugar de objeto causa de desejo faz com que este sujeito se debruce sobre seu losango e vá arrancando-lhe pedaços a pedaços para poder ver o que se esconde através do aro, para vislumbrar o que é que deseja?

Sou o pequeno carretel para este pequeno Hans. Deixo que ele me atire pra longe e me traga de volta na sua tentativa de articular um desejo. Ocupo voluntariamente este lugar do carretel, do objeto a transitório que se articulará à sua fantasia. A clínica também me referenda o valor que existe em ocupar esta posição. A posição do carretel faz-me vítima da repetição. É pela repetição que o analisante vai analisar-se. Mas agora não é uma repetição qualquer e neurótica, não é uma repetição em ato, mas uma repetição mediada pelo simbólico, por isto cada vez menos real, cada vez menos gozosa. Freud relacionou o inconsciente à repetição, e também à pulsão, e é disto que se trata na clínica, portanto não há como chegar-se à pulsão e/ou ao inconsciente sem passar pela repetição. Lacan vai dizer no seminário 11 que é o retorno dos mesmos significantes que dá prova do inconsciente.

Mais uma vez recorro à metáfora do jogo infantil de lançar e recolher o carretel, para falar dos caminhos percorridos na repetição, o carretel vai e volta, mas desvia-se, traça novas idas e novas vindas. Estamos na esfera da linguagem, daquilo que falha, no reino das palavras, portanto dos significantes. A repetição tem aqui uma função simbólica que evita o encontro traumático com o real, mas que por isto mesmo o presentifica. Estamos falando de um objeto causa de desejo, portanto relacionado ao real, posto em ato na transferência, mas também aludindo ao conceito mais de gozar relacionado à repetição.

O "mais de gozar" a que a repetição se relaciona desenvolvido por Lacan no seminário 11 está relacionado ao conceito marxista de mais valia, daquilo que sobra, que anula o objeto natural, faz-lhe símbolo. O que faz símbolo e anula o objeto deixa um resto porque esta operação nunca é bem sucedida. A repetição está pois relacionada também à uma perda de gozo. O que resta aponta para um real não possível de simbolização. Sabemos que a análise opera por aí. O nosso sujeito transferido oferece-nos seu sintoma, sofrendo por não poder gozar dele o bastante. Ele quer mais e quanto mais se apega a seu sintoma, mais ele lhe falha, mais ele cai. Quanto mais fala dele mais se insere no mais de gozar, menos gozo obtém. O final de análise portanto aponta sempre para uma perda de gozo do sintoma. Nesta contemporaneidade tão empobrecida de afetos, de pequenos narcisos isolados com seus espelhos, vejo que ao estabelecer esta única relação de amor, faz com que voltem a desejar mais amores, faz com que na impossibilidade de concretizar com o analista a fantasia, possam reencontrar, renovar fora do consultório o amor posto ali. Do encontro faltoso com o analista, o sujeito pode desejar outros, e se a análise chega a termo, não será mais porque faltosos que deixarão de ser prazerosos e possíveis.

Para encerrar retomo a fórmula do discurso do analista, onde o resultado de sua produção é uma singularidade, um significante mestre, a marca do sujeito que poderá deslizar em uma nova cadeia metonímica. É preciso reinventar outras modalidades de gozo, mais prazerosas, menos mortíferas. É preciso que um sujeito escorra deste corte radical em seu fantasma, mas que não saia derrotado, abatido, é preciso que a transferência garanta-lhe um lugar ao sol. Apesar da impossibilidade, o amor de transferência terá valido a pena.


Referências Bibliográficas


LACAN, J.j (2007- 1991) O Seminário livro 17: O Avesso da Psicanálise. Campo Freudiano do Brasil. Rio de Janeiro. Ed. Zahar.

GOETHE, Lês souffrances du jeune Werther in Roland Barthes, Fragmentos de um discurso amoroso (2007) São Paulo. Martins Fontes.

SARTRE, Esquisse d?une thèorie dês émotions in Roland Barthes, Fragmentos de um discurso amoroso (2007) São Paulo. Martins Fontes.


Fonte: Cinema & Psicanálise

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