dezembro 16, 2012

"Que fazer das fronteiras?" (Passa Palvra)

PICICA: "O Passa Palavra tem alertado, numa já numerosa série de artigos (veja aqui), para a situação muito perigosa em que um abandono da zona euro precipitaria os trabalhadores."

Que fazer das fronteiras?


A classe trabalhadora beneficia de melhores condições de luta no interior da zona euro, por ser um espaço multinacional. É neste sentido que devemos pressionar, para não cairmos na armadilha de um capitalismo de Estado e de um fascismo estabelecido à esquerda. Por Passa Palavra

O Passa Palavra tem alertado, numa já numerosa série de artigos (veja aqui), para a situação muito perigosa em que um abandono da zona euro precipitaria os trabalhadores.
1.
 

A adopção de um escudo desvalorizado e sem credibilidade internacional confinaria a economia portuguesa num quadro nacional, o que, no actual contexto de transnacionalização, implicaria a estagnação económica. Procurámos repetidamente demonstrar que essa estagnação económica seria gerida, neste como noutros países, sob a forma de um capitalismo de Estado, exigindo modalidades políticas autoritárias.

Ao mesmo tempo, e tal como o Passa Palavra tem insistido, o abandono do euro e a adopção de uma moeda nacional desvalorizada deixaria a classe trabalhadora portuguesa numa situação económica ainda pior do que aquela em que hoje se encontra. Perante os obstáculos que seriam erguidos às relações económicas com os outros países e perante a tradicional estagnação da produtividade nas empresas nacionais, o corte dos salários seria a única via para a acumulação do capital dentro das fronteiras portuguesas. E de nada vale argumentar que o rebaixamento salarial já está hoje em curso por imposição da Troika (Comissão Europeia, Banco Central Europeu e Fundo Monetário Internacional), porque João Valente Aguiar demonstrou com números (veja aqui) que o abandono do euro implicaria uma queda ainda mais catastrófica das condições de existência da classe trabalhadora.
E assim os trabalhadores, defraudados nas suas esperanças e tanto mais indignados quanto essas esperanças lhes haviam sido demagogicamente inspiradas por forças sindicais e políticas que se anunciavam como defensoras dos seus interesses, entrariam em choque com os novos patrões e as novas autoridades, trazidos pelo escudo e pelo capitalismo de Estado. Sem crédito externo, sem investimentos estrangeiros e com uma produtividade tradicionalmente muito baixa, restaria ao capitalismo de Estado português uma única via, a da repressão e da contenção salarial.

Este recrudescimento dos confrontos de classes seria óptimo e poderia dar o sinal para um arranque da luta anticapitalista, não fosse o facto de em Portugal a base da classe trabalhadora estar desorganizada e politicamente frágil. Por contraste, a burocracia sindical portuguesa está bastante forte. Aliás, a regra é que quanto mais débil for a iniciativa política da base, tanto mais forte politicamente será a burocracia sindical.

É certo que a Confederação Geral dos Trabalhadores Portugueses (CGTP) se vê confrontada com uma diminuição de efectivos, como aliás tem sucedido nos sindicatos de praticamente todos os países. Já quase sem indústrias, restam à CGTP a administração pública e as empresas do Estado. Apesar disto, não existe em Portugal nenhuma instituição com uma capacidade de mobilização para manifestações de rua comparável à da CGTP. E o Partido Comunista Português (PCP), a força política hegemónica naquela central sindical, dispõe de várias dezenas de milhares de militantes com um grau de disciplina incomparavelmente superior ao de qualquer outro partido. Além desta capacidade de actuação, a CGTP e o PCP contam com importantes ramificações na polícia, através da Associação Sindical dos Profissionais da Polícia (ASPP), e no exército, através da Associação Nacional de Sargentos (ANS).

Se esta disparidade de forças entre, por um lado, a classe trabalhadora, desprovida de organizações de base, e, por outro lado, a burocracia sindical e política, fortemente organizada, já se verifica hoje, mais grave ainda seria depois da instauração de um capitalismo de Estado no quadro de uma economia nacional e nacionalista. Num artigo publicado há pouco (veja aqui) mostrámos como em economias de escassez, em que uma parte considerável dos salários tende a ser paga não em dinheiro mas em géneros e serviços, é fácil encher os sindicatos de filiados desde que se atribua à central sindical o encargo de repartir os géneros e serviços. Foi o que aconteceu na União Soviética e nada impediria que o mesmo modelo fosse aplicado num capitalismo de Estado português.

São estes os motivos que nos levam a alertar contra o abandono do euro e contra a adopção de um escudo depreciado:

- em primeiro lugar, isso implicaria um rebaixamento das condições de vida dos trabalhadores muito mais grave do que o actual;

- em segundo lugar, isso provocaria uma agudização dos confrontos entre classes numa correlação de forças muito mais favorável aos capitalistas de Estado do que aos trabalhadores.

2.

 

É certo que há quem pense — ou, pelo menos, quem afirme — que um capitalismo de Estado instaurado à esquerda serviria os interesses dos trabalhadores porque seria controlado pelos representantes desses trabalhadores. Mas todo o problema consiste em saber quem controla os representantes. Se já nas democracias ditas representativas, como estas em que vivemos em Portugal e no Brasil, o facto de os governantes e os deputados serem eleitos de tantos em tantos anos nunca constituiu uma garantia de que exprimam a vontade de quem lá os colocou, menos ainda em regimes autoritários. As burocracias sindicais e as burocracias dos partidos de esquerda são representantes dos trabalhadores por inerência, por razões de ordem estritamente metafísica, tal como o clero é representante de Deus na terra. Péssimo para os trabalhadores, o capitalismo de Estado é excelente para a burocracia e a tecnocracia que nele se instala em nome dos trabalhadores.

Num texto publicado no Vias de Facto (veja aqui), e cuja riqueza de conteúdo está em relação inversa ao número de palavras empregues, Miguel Serras Pereira enunciou uma regra fundamental: «que para ser anticapitalista a luta tem de começar por ser democrática (tanto nos seus objectivos como na sua organização, ou regime que instaura), e que o grau de anticapitalismo de um movimento se mede pela democratização que instaura por onde passa e está, a começar pelas suas próprias fileiras».

A esta primeira regra acrescentamos uma segunda regra, enunciada por Mário Pedrosa, um brasileiro muito inteligente e cosmopolita, e que certamente por isso não é tão conhecido quanto devia: «Onde a liberdade individual é subjugada? No setor mais importante da vida moderna, no local do trabalho, na oficina, na fábrica, na emprêsa. Como é possível reinar aí a autocracia e a liberdade em outras partes?» (em A Opção Imperialista, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1966, pág. 347).

Isto significa que o anticapitalismo só começa onde o autoritarismo estatal, em vez de se reforçar, depara com contra-instituições baseadas em princípios de organização opostos; e só começa quando nas empresas, em vez de ocorrer uma simples passagem da propriedade privada para propriedade do Estado, ocorre uma remodelação profunda das relações sociais estabelecidas no processo de trabalho. Não se trata de ciência livresca. São lições decorrentes da repetida experiência dos trabalhadores, que somaram graves derrotas para as aprendermos. Ora, um capitalismo de Estado, sobretudo instaurado nas condições que temos enunciado, constituiria o oposto tanto da democratização interna das relações políticas, evocada por Miguel Serras Pereira, como da democratização interna das relações de trabalho, evocada por Mário Pedrosa.

É para este conjunto de perigos que o Passa Palavra tem alertado, e perante isto perguntam-nos o que é que propomos. Tentámos responder em dois artigos (veja aqui e aqui), mas, pelos vistos, não foi suficiente. Regressemos à questão por outro viés.

3.

 

Pensamos que a classe trabalhadora beneficia de melhores condições de luta no interior da zona euro por se tratar de um espaço multinacional, ideologicamente mais aberto a uma superação dos nacionalismos do que o são os espaços estritamente nacionais, e onde as fronteiras são permeáveis e os contactos físicos são mais fáceis. Além disso, sendo o euro uma das moedas de reserva mundiais, a manutenção de um país na zona euro ergue um poderoso obstáculo ao nacionalismo económico, para cujos pressupostos demagógicos e consequências nocivas temos repetidamente alertado.

Mas para que a classe trabalhadora aproveite este quadro é indispensável que ocorra uma alteração no rumo das lutas. Em vez de se reclamar o abandono do euro, na ilusão de que isso traria o fim da austeridade, torna-se necessário exigir transferências compensatórias das economias mais prósperas para aquelas que se encontram em situação gravemente deficitária. Ora, para que essas transferências compensatórias possam ocorrer e comecem a fazer parte dos mecanismos económicos normais é necessário que a zona euro não se limite a ser uma união monetária e se converta numa verdadeira união fiscal. Mas para que a zona euro progrida rumo a uma união fiscal é indispensável que ela avance em direcção a uma união política. Só assim as transferências compensatórias entre as economias europeias mais prósperas e as menos prósperas serão tão óbvias como o são hoje as transferências entre as regiões mais e menos desenvolvidas de um mesmo país.

Assim, as transferências compensatórias devem ser o programa imediato; a união fiscal deve ser o quadro a curto-médio prazo; e a união política deve ser o quadro a médio-longo prazo.

Não se trata de uma exigência de direita, mas de um dos elementos clássicos, por exemplo, da pauta da esquerda na América Latina, seja pela via do perdão da totalidade ou de parte das dívidas externas, seja pela via do aumento dos investimentos na cooperação internacional para o desenvolvimento. Mesmo hoje, com o crescimento económico do Brasil, o tema ainda brota em documentos e plataformas políticas.

É para aquele quadro institucional que devemos pressionar, se não quisermos cair na armadilha de um capitalismo de Estado e de um fascismo estabelecido à esquerda, de onde nos será muito difícil sair.
4.

 

Devemos estar conscientes de que o processo de unificação fiscal e política europeia já está a ocorrer e muito provavelmente irá realizar-se. Se nos próximos anos a situação económica da periferia meridional da zona euro melhorar relativamente — ou, se preferirmos, piorar menos — os gestores, tanto governamentais como empresariais, terão base política para avançar nesse processo de unificação. Esta base política tornar-se-á mais sólida se as instituições internacionais de controlo bancário forem providas de autoridade e de poderes de fiscalização suficientes para refrear os excessos de crédito que agravaram a crise iniciada em 2008.

O maior perigo que se ergue perante o processo de unificação fiscal e política europeia é a convergência entre a extrema-direita nacionalista e a esquerda nacionalista, que em conjunto mobilizem trabalhadores e pequenos e médios patrões, todos eles desesperados com a situação económica, e provoquem o descalabro do euro e a balcanização da Europa.

Mas se não cabe à classe trabalhadora servir uma vez mais de massa de manobra para a instauração de um capitalismo de Estado à direita ou à esquerda, não lhe cabe também servir de base de apoio ao programa europeísta tal como ele é concebido pelos gestores capitalistas mais lúcidos. Nas actuais circunstâncias e na actual correlação de forças, parece-nos que a classe trabalhadora deve usar em seu próprio benefício as dificuldades e as contradições que o capitalismo atravessa. E os trabalhadores ganham muitíssimo mais em lutar no quadro de uma integração europeísta do que no quadro de uma fragmentação nacionalista, pelas seguintes razões:

- porque os custos económicos serão menores;

- porque o estabelecimento de relações internacionais, sem as quais a classe trabalhadora não existe enquanto classe, é mais fácil num processo que tenda à unificação política europeia;

- porque, de imediato, a opção europeísta permitirá aos trabalhadores concentrarem-se nos efeitos mais sensíveis da exploração — a descida dos salários, a precariedade do trabalho, o desemprego;

- porque, a prazo, se pressionarem nos seus próprios termos um processo de unificação fiscal e política, os trabalhadores poderão impor condições práticas vantajosas para o desenvolvimento de uma organização de base em que se coloque o programa de uma democratização interna das relações políticas e de uma democratização interna das relações de trabalho.

5.
 

Mas uma estratégia de luta desenvolvida no quadro da institucionalização das transferências compensatórias, da união fiscal e da união política não poderá ser prosseguida dentro de limites nacionais. Esta estratégia terá de ocorrer desde início num plano internacional.
Será a internacionalização da luta uma utopia a tal ponto irrealizável que impossibilite aquela estratégia?

Vejamos. No dia 14 de Novembro houve uma greve dita geral e europeia. Mas não foi europeia, limitou-se a ocorrer simultaneamente em vários países europeus, o que é muito diferente e, neste caso, é mesmo o contrário. Será que a CGTP é tão pobre que num país cuja largura oscila entre 112 quilómetros e 218 quilómetros não consiga fretar autocarros [ônibus] para transportar contingentes de grevistas para o país ao lado, ou do país ao lado para este, numa demonstração física de solidariedade? Ora, foi isto mesmo que sucedeu quinze dias depois, a 29 de Novembro, na manifestação dos estivadores, em que estiveram presentes delegações de mais sete países europeus (Bélgica, Chipre, Dinamarca, Espanha, Finlândia, França e Suécia), tanto do Norte — só existe um país europeu que chegue mais ao norte do que a Finlândia — como do Sul — dificilmente se arranja um país europeu ao sul de Chipre. Este é um começo, mas começa-se sempre por algum lado.

A questão não é de meios, mas de vontade política.
Fonte: Passa Palavra

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