dezembro 18, 2012

"Resistências - Quatro novas biografias mostram a multiplicidade da oposição à ditadura militar brasileira.", por Daniel Lopes

PICICA: Vale lembrar a advertência do Carlos Marighela, no momento em que o STF promove um golpe contra a Constituição brasileira.

Os brasileiros estão diante de uma alternativa. Ou resistem à situação criada com o golpe de 1º de abril ou se conformam com ela. O conformismo é a morte.
Carlos Marighella, 1965" 

Resistências

Quatro novas biografias mostram a multiplicidade da oposição à ditadura militar brasileira.

por Daniel Lopes (17/12/2012)
em História, Livros

 
"Marighella: O guerrilheiro que incendiou o mundo", de Mário Magalhães
“Marighella: O guerrilheiro que incendiou o mundo”, de Mário Magalhães

"Luiz Carlos Prestes: O combate por um partido revolucionário (1958-1990)", de Anita Leocadia Prestes
“Luiz Carlos Prestes: O combate por um partido revolucionário (1958-1990)”, de Anita Leocadia Prestes

"Seu amigo esteve aqui", de Cristina Chacel
“Seu amigo esteve aqui: A história do desaparecido político Carlos Alberto Soares de Freitas, assassinado na Casa da Morte”, de Cristina Chacel

"As duas guerras de Vlado Herzog: Da perseguição nazista na Europa à morte sob tortura no Brasil", de Audálio Dantas
“As duas guerras de Vlado Herzog: Da perseguição nazista na Europa à morte sob tortura no Brasil”, de Audálio Dantas

Os brasileiros estão diante de uma alternativa.
Ou resistem à situação criada com o golpe de 1º de abril
ou se conformam com ela. O conformismo é a morte.
Carlos Marighella, 1965

Não tenho nada a esconder. Não sou um criminoso.
Vlado Herzog, 1975

1.

Na única vez que Carlos Marighella foi à casa de Vlado Herzog, quando este estava em Londres, no final de 1968, o guerrilheiro encontrou apenas a mulher de Vlado, Clarice. Marighella e sua companheira, Clara Charf, passaram um curto período na residência, sem que Clarice soubesse suas identidades verdadeiras. Poucos anos depois, Vlado ficou sabendo que sua casa servira de ponto de encontros clandestinos de integrantes da luta armada, e não ficou encantado. Esse episódio é narrado no livro de Audálio Dantas, As duas guerras de Vlado Herzog. O jornalista da TV Cultura ficaria ainda mais arrepiado, escreve Audálio, se soubesse que fora Marighella, o “inimigo número um” da ditadura, quem estivera em sua casa. Os danos para sua esposa, caso o regime tivesse estourado o ponto, teriam sido com certeza bem graves.

Vlado e Marighella representam duas faces distintas da resistência à ditadura militar brasileira. Não apenas por suas próprias pessoas e atos, mas pelo tipo de movimento que inspirariam – Marighella, antes de ser assassinado em 1969; Vlado, após ser assassinado em 1975. Um representou como poucos a resistência civil, liberal, ao regime ilegítimo de 64; outro representou melhor que ninguém a resistência armada. A história deste está contada no imprescindível livro do jornalista Mário Magalhães, Marighella: O guerrilheiro que incendiou o mundo. Ao contrário das obras antes mais famosas abordando o guerrilheiro, escritas por Frei Betto e por Emiliano José, a biografia de Magalhães não foca quase que exclusivamente no período da ditadura militar – a sua é uma história que vai, sempre com fôlego, dos primeiros anos de Marighella, na Bahia, até a emboscada que enfim custou sua vida, em São Paulo. Também ao contrário dos dois autores citados, Magalhães em nenhum momento resvala para a mistificação – nem de Marighella, nem do PCB, nem da esquerda em geral. Assim, o meu maior temor em relação ao livro felizmente não se concretizou. (Nem preciso dizer que não temia que Mário Magalhães aparecesse com racionalizações para os crimes da ditadura.)
É necessário atentar para a trajetória pré-64 de Marighella para entender melhor sua atuação pós-golpe. Por exemplo: para ter a real dimensão do significado de sua ruptura com Luiz Carlos Prestes e o PCB, importa saber o quanto ele havia se dedicado e mesmo sacrificado no passado por ambos. Mário Magalhães conta que, no período da Constituinte de 1946, onde Marighella era parlamentar, este repassava grande parte de seu salário para o Partido Comunista – que na verdade era quem sacava o dinheiro e lhe dava alguma sobra. Aos 34 anos, Marighella preferia não gastar dinheiro em coisas como cinto para as calças e moradia própria – dividia um apartamento de quatro quartos no Catete com cinco pessoas. Isso sem falar nas torturas que havia sofrido da ditadura varguista.

As sérias discordâncias entre Marighella e Prestes começaram antes do golpe militar. Logo quando da renúncia de Jânio Quadros, o revolucionário baiano convenceu-se de que o Partido definitivamente não entendia de “fazer avançar a revolução”. Na conferência nacional do PCB em 1962, ele partiu para o ataque: Prestes existia para os comunistas como um totem, era autoritário no combate a quem pensava diferente e, talvez pior de tudo, defendia àquela altura uma acomodação com João Goulart – que Marighella via como um presidente não suficientemente comprometido com a revolução social.
Essas críticas de Marighella a Prestes tinham alguma procedência. Mas também é preciso perguntar se ele não estaria sendo irrealista em suas expectativas de tolerância ao dissenso vinda de um dirigente partidário, ainda mais de um partido que glorificava o “centralismo democrático” de inspiração soviética. A resposta é sim, Marighella estava sendo irrealista. Mas esse estava longe de ser o maior exemplo de sua ingenuidade e de seu choque com o bom-senso e com a realidade. Choque com o bom-senso já manifesto em sua descabida eleição do governo Jango como um alvo prioritário, no momento em que o presidente recebia a toda hora tiros de canhão da direita. A exceção era sua admiração pelo ministro da Casa Civil, Darcy Ribeiro, que Prestes, por outro lado, via como radical demais.

Como resultado das manobras de Prestes, no final de 1962 o papel de Marighella no Comando Central e na Executiva do PCB passou a ser apenas simbólico. Em 1963, após se encantar em uma viagem à China maoista, ele escreveria em Novos Rumos, veículo comunista, que a chave para a revolução brasileira estava nas massas camponesas. Marighella respeitava o espírito radical de Francisco Julião e suas Ligas Camponesas, utilizadas, desde 1961, como um dos braços da ditadura cubana na região – Havana patrocinou a compra de fazendas para a Liga treinar possíveis guerrilheiros; na teoria diversionista de Fidel, “os Estados Unidos não poderão nos atacar se o resto da América Latina estiver em chamas”. (Além dos quatro livros analisados aqui, minhas outras fontes de informação para esta resenha são basicamente os dois primeiros volumes da série de Elio Gaspari sobre a ditadura brasileira.)

Enquanto Prestes se deixava utilizar como um veículo dos interesses da União Soviética para a América Latina, Marighella preferiu se ligar ao projeto mais inflamatório de Cuba. Na batalha constitucional pela posse de Jango, Preste anotou que Marighella, “ao invés de colocar como questão central as reformas de estrutura [colocava] o problema de luta por um novo poder”, socialista.
Após o golpe militar, como se podia esperar, a aversão de Marighella por meros trabalhos de conscientização e oposição política apenas aumentou. “Para fazer a política convencional”, disse ele, “distribuir material e se reunir às escondidas, prefiro vender gravatas”. Em seu livro de 1966, A crise brasileira, defendeu sem meios termos a insurreição armada: “Trata-se do caminho não pacífico, violento – até mesmo da guerra civil. Sem o recurso à violência por parte das massas, a ditadura será institucionalizada por um período de maior ou menor duração”. Um artigo de sua autoria, no final daquele ano, mostrava que sua relação com o PCB estava por um fio: “Desejo tornar público que minha disposição é lutar revolucionariamente junto com as massas e jamais ficar à espera das regras do jogo político burocrático e convencional que impera na liderança [do Partido]”.

Marighella e a ditadura iam radicalizando suas posições com o passar do tempo. Em 1965, quando ainda havia esperança de que a ditadura fosse durar no máximo dois ou três anos, Marighella chegou a colocar como ponto central da oposição “o problema das liberdades democráticas”. Com a posse de Costa e Silva em 1967, a solução passou a ser “conquistar o poder pela violência e destruir o aparelho burocrático militar do Estado, substituindo-o pelo povo armado”. O revolucionário desancava o projeto de “redemocratização” (ele sempre colocava o termo entre aspas) dos “políticos burgueses”. Em julho de 1967, participou em Havana da Conferência da Organização Latino-Americana de Solidariedade a Cuba (Olas), mas não estava representando o PCB, que aliás não havia sido convidado por Fidel – o ditador, após ter se desiludido com o “nacional-revolucionarismo” brizolista, estava apostando no potencial revolucionário de gente como Marighella. Em meados de agosto daquele mesmo ano, o PCB resolveu puni-lo com a “pena de suspensão do exercício de todos os cargos partidários em que estava investido”.

Sua tese da “guerra revolucionária” almejava tornar inevitável a luta armada. A tese foi aproveitada pela ditadura, para quem, como frisou Elio Gaspari, “o regime constitucional deixava de ser um constrangimento, tornando-se um estorvo”. Com o AI-5 implantado no final de 1968, o regime passou para a ditadura escancarada e Marighella passou de uma vez para as armas. No ápice da criminalidade estatal contra a guerrilha urbana (a vez da guerrilha rural chegaria pouco depois), Marighella perdeu a vida, junto com vários dos que haviam aderido ao projeto de luta armada. As “massas” nunca apareceram para lutar com eles. E, no final das contas, foram “políticos burgueses”, setores liberais, a execrada esquerda reformista (inclusive comunistas, que se desentenderiam com Prestes) e mesmo alguns intelectuais conservadores que agiram decisivamente para derrubar a ditadura, que também derrubou a si mesma.

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