janeiro 13, 2013

"Ela caiu da janela do sétimo andar", por Bruno Cava

PICICA: "Nesta sociedade, há os suicidas e os suicidados." 

Ela caiu da janela do sétimo andar


Recebeu com entusiasmo a notícia que tinha sido selecionada.

Que grande começo, estagiar ali naquele moderno e enorme prédio envidraçado no centro. Era um dos escritórios mais famosos da cidade, desses que impressiona carregar seus sobrenomes no currículo. Se tudo desse certo, Ana teria agora as credenciais seguras para iniciar a escalada profissional. Não tinha primeiro passo melhor para a carreira. A seleção fora muito difícil e ela tinha consciência de que o desafio apenas começara. Daí por diante seria cobrada e testada todos os dias diante dos advogados mais bem pagos do mercado. Estava ansiosa e confessava o medo aos mais próximos. Cada promoção dependeria do desempenho dela, seria questão de mérito, esforço, eficiência, e dedicação integral à firma. Mas Ana estava decidida. Estava disposta a enfrentar o que quer que viesse, com a obstinação própria da idade e a curiosidade de quem costuma se apaixonar pela vida.

Logo encheram Ana de trabalho. Na mesa que ganhou num canto do andar, com direito até a seu nomezinho, se amontoaram volumes e volumes de processos, petições, recursos, pareceres, pesquisas das mais sofisticadas às mais braçais. Em poucos dias, imergiu no frenesi do ambiente de trabalho. Nos cafezinhos, corredores, happy hours e coquetéis pôde ir conhecendo os colegas, suas histórias e ambições. O privilégio de estar ali era compartilhado com muitos outros estagiários, em número superior, aliás, ao de advogados. Estes a tratavam alternando dureza e condescendência, não deixando de realçar a sua condição subalterna e precária. Nutriam o hábito de contar anedotas de quando haviam sido estagiários, com expressão séria quando diziam que, no tempo deles, a vida do estagiário era muito pior. Diziam que o pagamento do estágio hoje não vai mal, embora pelo menos cinco vezes menor que o dos advogados efetivados.

É assim mesmo: é uma carreira para poucos e é preciso selecionar.

Entre os estagiários, o clima era descontraído,  quase lúdico, mas a competição se insinuava nos gestos mais corriqueiros. De pesquisar processos na internet a elaborar minutas, tudo era avaliado e medido, a eficiência, a desenvoltura. A camaradagem encontrava seu limite no exato momento em que pudesse significar alguma vantagem comparativa para outro competidor. As ambições tinham por base comum um desejo de crescer, ampliar a rede profissional, galgar status. Todos repetiam como o primeiro passo da carreira era o mais importante, e como seria desastroso se queimar no mercado tão cedo.

Subsistia entre os estagiários a crença num sistema implacável de comunicação entre os empregadores, de modo que uma má reputação rapidamente se disseminaria, irreversível. Basicamente, a divisão fundamental deste mundo ocorreria entre winners e losers, hoje em dia sem mais espaço para segundas chances. Portanto, concluía o raciocínio geral, o segredo nesta fase atribulada era se esforçar para não ficar mal com ninguém, agradar as pessoas certas e cumprir ao extremo as expectativas, ainda que impossíveis. De fato, as cobranças cercavam-na por todos os lados, e ela não hesitava em atender da melhor forma possível.

Ana percebeu que em poucas semanas a sua vida estava amoldada à do escritório. O trabalho na firma ditava o ritmo de seus dias, a hora de acordar e dormir, o que comia e vestia, orientava-lhe os estudos, delimitava o padrão de consumo e o círculo de contatos cotidianos. O escritório lhe ensinou novas expressões faciais, impostações de voz e posturas que refletiam a condição de sucesso. Não era fácil, e nalguns momentos ela se preenchia de inseguranças. Mas sim. Ana tinha decidido encarar o desafio e não iria desistir agora, uma vez dentro da cidade de vidro. Começou a notar como os amigos da faculdade e a família a respeitavam mais, e ela não tinha pudor de exibir os novos signos adquiridos da vivência no escritório. Durante o expediente, chegou mesmo a cultivar um gostinho de ver a cidade por cima. Entre uma reunião ou outra, contemplava o zunzum das pessoas indo e vindo pelas ruas caóticas, sentindo-se protegida e reconfortada, entre móveis modernos e um ar condicionado preciso. Estava no lugar certo. Para ela, o escritório era outro mundo, um mundo implacavelmente limpo, lógico e hierárquico. Sempre alguém acima e alguém abaixo, numa pirâmide de cargos e prestígios. Cada andar tinha seus segredos e tótens, seus hábitos próprios, um zigurate de espelhos em direção ao ultradesejado topo de onde disparavam os helicópteros. Mais de uma vez ela sonhou com esse topo.

Desde o dia um, fora assediada pela grande maioria dos homens de lá. O assédio era generalizado e nunca fora segredo para ninguém. A própria Ana já previra muito bem o quão sexualizadas poderiam ser as relações de trabalho em firmas poderosas de ferozes funcionários. Numa sociedade em que a beleza se expõe na vitrine, sua predação é a alma do negócio. O jogo estava por toda a parte, e várias não tinham qualquer pudor em jogar. E jogá-lo para vencer, e sabiam mesmo como jogar, para extrair o máximo de vantagens e puxar o tapete dos outros. Outras fingiam não ver, no íntimo viam. Diariamente, Ana sentia os olhos pousados sobre o corpo, olhares treinados por anos a fio para identificar os formatos, medidas e padrões consagrados para bundas, seios, pernas, quadris, formato do pescoço, da testa, cor dos olhos. Para ver o outro vendo-se com ele, medindo o resultado. Mais de uma vez, pelo reflexo no vidro, flagrou colegas fitando-a, comentando a respeito, fazendo gracinhas. A frequência das ocasiões se multiplicava em função do número de homens juntos.

Antes fosse lascívia. Ana se surpreendeu com a falta de desejo por trás da onipresente moral da predação. Os olhares esquadrinhavam os corpos atrás de moldes. As bocas estavam adestradas a fofocar sobre a relação com os moldes. Os moldes pairavam acima da realidade sensível, como num diálogo mal-lido de Platão. Idolatravam-se os moldes, o que de mais biônico a publicidade havia construído, nunca o que poderia transbordar deles: a mulher mesma. A mulher não existia. A advogada não era mulher. Reinava incansavelmente o mesmo algoritmo social trocado entre homens e mulheres, homens e mulheres aplicando-o nas mulheres. Quem é bonito, quem é feio, quem dava um caldo, quem dava pro gasto? quais eram as magras, as falsas magras, as gordinhas, as gordoilas? e tantos outros mil adjetivos? e quem tinha mais chances de sobrevivência e seleção natural? Toda uma economia cosmética impregnada nas relações humanas. Os signos da beleza eram comerciados quase abertamente, com códigos evidentes. Os estagiários, claro, se viravam como podiam, já que não tinham muitas moedas de troca, e tampouco se permitiriam destruir tão fácil. Quantos, enfim, não cobiçavam uma vaga como estagiário daquele escritório?

Ana não estava disposta a terminar do lado dos losers. Nunca fora santa nem burra. Não se deixaria abater. Era afinal bonita, e raciocinava que se a beleza era tratada como moeda, era uma moeda forte em qualquer país. Neste mundo envidraçado e glamouroso, a feiúra era uma maldição, motor para todo tipo de ressentimento. Ana não viveria essa realidade e não tinha porque se vingar de sua natureza. Sim, havia quem a assediasse diretamente, mas calculava que poderia tolerar, poderia jogar com isso, até o ponto em que estivesse em condições de torcer as relações a seu favor. Era questão de calma, paciência e obstinação, qualidades que ela tinha a certeza lhe sobravam. Durante meses, recebeu cantadas, insinuações, piadas, propostas indecentes, fungadas no cangote, mãos bobas, foi prensada num arquivo, um advogado a fez fazer serão com ele até altas horas, e muitas outros pequenos, porém irritantes gestos cotidianos. Tudo isso ela, em última instância, conseguiu levar na boa, já que não queria, ou talvez tivesse se convencido não existir outro mundo para viver. De qualquer modo, enfrentou a realidade e fez o que pôde.

Até a noite em que, num happy hour, Ana foi vítima de um boa noite Cinderela. Tomara uns drinques suspeitos e um colega que a assediava se aproveitou da situação. Foi bem simples. No táxi de volta para casa, ele forçou caminho no corpo semiconsciente, para o deleite das rodas onde iria detalhar a história mais tarde. Depois ele brincaria, triunfante, como conjugou as duas maneiras certeiras de ganhar uma mulher: ofereça um emprego, ofereça drogas. Ana em momento algum teve qualquer dúvida do que acontecera com ela. Amanheceu muito tarde no dia seguinte, com uma terrível dor de cabeça e a calcinha manchada de esperma. No começo, lembrava-se imprecisamente da violência e do agressor, porém com os dias as memórias coagularam e a cena ficou clara. Lembrou-se até como o taxista acompanhou o estupro pelo retrovisor e não interferiu. Não tinha sido um estupro explosivo, como de Deborah (Elizabeth McGovern) por Noodles (Robert de Niro), em Era uma vez na América. Com ela, aconteceu de maneira dissolvente, num ritmo maquinal e lânguido.

Inicialmente, Ana pensou que poderia superar a situação. Sua força de caráter a faria dar a volta por cima, sem perder o terreno conquistado no escritório. Iria se vingar do agressor e seguir a carreira. Essa crença se despedaçou rapidamente, porque ninguém lhe deu ouvidos. Constatou que o fato, para o escritório, não existiu, não poderia ter existido, e jamais poderia vir a existir. Mesmo seus colegas mais próximos, aqueles que ela considerava seus amigos, desconversavam à introdução do assunto. Entendeu pela primeira vez o que significava plausible deniability: aquilo não poderia ter nada a ver com o trabalho ou o estágio. Aos poucos, começou a ser sitiada por olhares cínicos e conversinhas enviesadas, pelo não-fato de seu estupro, tanto mais insuportável quanto mais negavam realidade a ele. Tornou-se uma ameaça ambulante ao mundo que tinha aprendido a amar e sonhar. A pirâmide agora se convertera num pesadelo. Estava confinada da cidade lá embaixo, perdida nos desígnios inabaláveis da firma e suas paredes de vidro. Não conseguia encontrar saída.

Dentro da garganta, uma bola de pelos havia brotado, formada por uma pasta nojenta de coisas intoleráveis. Todas as pequenas violências acumuladas durante o estágio vieram à tona, cobrando o preço de humilhação. Antes ela adicionava um “mas” diante dos fatos indesejáveis, agora todos os “mas” perdiam a força absolutória. O que antes parecia contornável e menor, agora se mostrava indescritível, causando dor e autorreprovação. A bola de pelos não podia ser vomitada, porque para todos os efeitos ela não poderia existir neste mundo.

Uma manhã, curvada à beira da sacada, pensou em se matar. O pensamento cruzou as orelhas como um raio. Sua voz interna lhe disse “não”. Engasgada, Ana decidiu para si, uma vez mais, não desistir de juntar forças e tentar dar a volta por cima, embora já estivesse desligada do escritório e distante dos amigos. 

Aprumou-se, olhou para uma nuvem e de repente caiu. Mas ela não se jogou, e muito menos se deixou cair. Nenhum impulso ofeliano aqui. Ana foi empurrada.

Nesta sociedade, há os suicidas e os suicidados.
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Ficção inspirada pelos textos de Hugo Albuquerque, no Descurvo, e Ana Rusche, das Blogueiras Feministas.

Fonte: Quadrado dos Loucos

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